Paulo Pachá: Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média européia
Tempo de leitura: 5 minPOR QUE A EXTREMA DIREITA BRASILEIRA AMA A IDADE MÉDIA EUROPÉIA
No Brasil de Jair Bolsonaro, o novo governo e os grupos de extrema direita estão propagandeando uma versão fictícia da Idade Média européia para legitimar sua agenda reacionária.
Por Paulo Pachá, na Pacific Standard Magazine, sugerido por Zé Maria
No dia da posse de Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, Filipe Martins, um blogueiro político próximo à família Bolsonaro, twittou sua celebração pessoal da vitória de Bolsonaro: A Nova Ordem está aqui. Tudo é nosso! Deus vult!
Os observadores seriam perdoados por se perguntarem por que “Deus vult” – Latim para “Deus deseja”, um grito de guerra medieval associado à Primeira Cruzada – está reaparecendo no Brasil do século 21.
Nos últimos anos, a linha “Deus Vult” foi apropriada pela extrema direita na Europa e nos Estados Unidos, e agora se tornou um slogan para a extrema direita no Brasil.
Na verdade, Martins já havia vinculado explicitamente esse grito de guerra às Cruzadas quando ele twittou no dia do segundo turno das eleições: A nova Cruzada é decretada. Deus vult!
Em 3 de janeiro, Bolsonaro nomeou Martins como assessor especial presidencial para assuntos internacionais.
No Brasil de Bolsonaro, o novo governo e grupos de extrema direita estão propagandeando uma versão fictícia da Idade Média européia, insistindo que o período era uniformemente branco, patriarcal e cristão.
Este revisionismo reacionário apresenta o Brasil como a maior conquista de Portugal, enfatizando uma continuidade histórica que molda os brasileiros brancos como verdadeiros herdeiros da Europa.
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Desta forma, através de uma visão genética da história, a extrema direita enquadra a história brasileira como essencialmente ligada ao próprio passado medieval imaginariamente puro de Portugal.
A maneira mais comum de expressar essa associação é proclamar a chamada tradição judaico-cristã como o principal pilar da cultura brasileira.
Tal retórica serve para indicar que o Brasil é uma nação cristã e, como resultado, é uma orgulhosa parte da civilização ocidental.
O estado brasileiro vem impulsionando essa narrativa histórica desde o século XIX.
Portanto, afirmar as ligações identitárias do Brasil com a Idade Média européia é também afirmar um conjunto de projetos políticos conservadores antigos e muito específicos.
Em seu discurso de posse, Bolsonaro prometeu ‘unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, opor-se à ideologia de gênero e preservar nossos valores’.
Sua referência à suposta “tradição cristã” do Brasil foi similarmente um marco de seus discursos durante a campanha.
Em setembro passado, durante um comício de campanha em Campina Grande, Bolsonaro disse a seus partidários: “Dado que somos uma nação cristã, Deus acima de tudo!” (Mais tarde, no mesmo discurso, ele acrescentou: ‘Nada mais desse conto do estado secular! É um estado cristão’.)
Finalmente, o slogan de Campanha de Bolsonaro era ‘o Brasil acima de todos, Deus acima de tudo’ – um toque religioso no slogan nazista Deutschland über alles.
A centralidade dessa ideia sobre uma “tradição judaico-cristã” é generalizada entre os grupos de extrema direita brasileiros.
Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre [MBL], eleito representante do Congresso em 2018, destacou a mesma ideia durante uma entrevista de 2017, dizendo a um entrevistador: Em nossos vídeos [MBL], falamos sobre os pilares da civilização ocidental, que são a filosofia grega, o direito romano e a religiosidade judaico-cristã.
Essas ideias têm força social entre os eleitores de direita e a população em geral no Brasil.
Um documentário de 2017 chamado Brazil: The Last Crusade foi produzido e lançado no YouTube pela organização de extrema direita Brasil Paralelo (“Parallel Brazil”), um canal com mais de 700.000 assinantes; o documentário agora tem mais de 1,5 milhões de visualizações.
O primeiro episódio, “A Cruz e a Espada”, apresenta uma breve história da civilização ocidental na Idade Média.
Repleto de islamofobia, o episódio centra-se na conquista árabe da Península Ibérica e nas Cruzadas, destacando o papel dos Cavaleiros Templários na história europeia e portuguesa, incluindo a chamada Reconquista.e a expansão no exterior.
Os cineastas enfatizam como a conquista portuguesa e o domínio colonial estabeleceram a herança européia como a essência mais profunda do Brasil, ligando a nação futura ao legado da Idade Média européia.
De fato, a ideia da civilização ocidental é uma construção política recente, destinada a legitimar processos políticos e históricos específicos, o imperialismo e o colonialismo entre eles.
Ao retratar a Idade Média européia como o verdadeiro passado da nação, a extrema-direita branqueia sua própria história e a crueldade de sua prática política, especialmente (mas não apenas) a persistência de racismo ativo, misoginia, homofobia e intolerância religiosa.
O racismo é um elemento estrutural da sociedade brasileira. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão em 1888.
Em 2017, 70% de todos os assassinatos no Brasil vitimizaram os afro-brasileiros. Mais de 60% dos presos no Brasil são negros.
Da mesma forma, a violência de gênero e a misoginia são fatos centrais da vida brasileira: o Brasil é o quinto país mais perigoso do mundo em mortes violentas de mulheres.
Além disso, o Brasil é uma das nações mais perigosas para as pessoas LGBT, com dezenas de assassinatos homofóbicos registrados a cada ano.
Finalmente, a intolerância religiosa tem aumentado nas últimas décadas. A maioria da população brasileira se identifica como cristã (principalmente católica e evangélica), mas existe uma imensa diversidade na prática espiritual.
Os adeptos das religiões afro-brasileiras são os principais alvos dos atos de intolerância.
Nesse contexto, o Brasil oferece um terreno fértil para uma versão imaginada da Idade Média européia que a extrema direita apresenta como branca, patriarcal e cristã.
Ao enfatizar a relação entre o Brasil e Portugal, a extrema direita apaga a importância dos povos indígenas e africanos na história do Brasil e ignora suas contribuições sociais, culturais e econômicas.
Neste passado imaginário, Portugal não é enquadrado como uma potência colonial distante, mas como a “pátria mãe” que deu aos brasileiros uma língua e cultura europeias.
Gilberto Freyre notoriamente desenvolveu o mito de uma democracia racial no Brasil: a coexistência pacífica das “três raças”. Na versão de extrema-direita da história, estamos de volta a uma visão ante-freiriana: um passado limpo e branco para o Brasil.
No entanto, o objetivo dos demagogos que se apropriam da Idade Média européia dessa maneira não é apenas reconstruir o passado.
Como os historiadores sabem, o presente e o passado estão ligados; reescrever a história do Brasil também é pressionar por um projeto específico para o futuro.
Como disse Bolsonaro durante sua campanha em Campina Grande: Vamos construir um Brasil para as maiorias! Minorias devem se curvar para as maiorias! A lei deve existir para defender maiorias! Minorias devem se adaptar ou simplesmente desaparecer!
A plataforma política de Bolsonaro é construir um país em que o cristianismo conservador desfrute de um domínio incontestado, a família patriarcal seja a sede do autoritarismo doméstico e o racismo, a homofobia, a misoginia e a intolerância religiosa estejam codificados na vida cotidiana.
Cumprindo suas promessas de campanha, o governo Bolsonaro já encerrou importantes políticas públicas que ofereciam proteções a grupos marginalizados.
A melhor maneira de descrever o governo de Bolsonaro é como uma reação reacionária: uma reação conservadora agressiva aos modestos passos progressivos que o Brasil adotou nas últimas décadas.
Examinando quão importante é a idéia de uma Idade Média européia pura e branca para a extrema direita brasileira, podemos vislumbrar os princípios fundamentais que guiarão este governo e o movimento social mais amplo que lhe dá força.
Nesse sentido, é importante ressaltar que a extrema direita brasileira (incluindo o governo Bolsonaro) não quer “tornar o Brasil medieval de novo”, mas sim evocar um conjunto de idéias sobre a Idade Média européia como um passado idealizado que forneça elementos para a construção de um futuro nobre.
O uso da Idade Média pela extrema direita é um problema global, com surtos específicos nos EUA e na Europa Ocidental.
Futuros cruzados brasileiros sabem disso.
Paul Joseph Watson, de extrema-direita inglesa, entrevistou Martins logo após a vitória de Bolsonaro no primeiro turno das eleições.
Da mesma forma, em 2018, tanto Martins quanto Eduardo Bolsonaro, o filho do presidente, estavam em contato com o organizador americano de extrema-direita Steve Bannon.
Eduardo Bolsonaro chegou a se gabar de que ele e Bannon estavam unindo forças “contra o marxismo cultural”.
Há trabalho a ser feito no Brasil, mas também em todo o mundo acadêmico. No ensino e na erudição, os medievalistas devem se opor à extrema direita e dispensar esses mitos.
A nova Idade Média “global”, baseada em olhar para além da Europa Ocidental e abraçar as verdadeiras complexidades de um mundo multiétnico e polireligioso, com sujeitos ativos de diversos gêneros, terá que enfrentar a supremacia branca global.
Paulo Pachá é professor assistente de história medieval na Universidade Federal Fluminense no Brasil.
Comentários
Joao
Kkk extrema direita kkkkkkk
Zé Maria
Confundiu carro da família como de bandido.
Confundiu o guarda chuvas com fuzil.
Confundiu a furadeira com uma arma,
mas a cor vcs nunca confundem ….
Sempre preto , sempre !
https://twitter.com/fafarioss/status/1115137347232907264
Zé Maria
https://pbs.twimg.com/card_img/1115027480438611970/dhlaCXTt?format=jpg&name=600×314
https://pbs.twimg.com/card_img/1115237034501783552/up0j6YgO?format=jpg&name=800×419
https://twitter.com/MarceloFreixo/status/1115261071932252160
https://twitter.com/erikakokay/status/1115229062367260672
https://twitter.com/taliriapetrone/status/1115238540265361408
Um homem Negro dirigindo um Sedan no RJ
só pode ser assaltante e deve ser metralhado
com uma rajada de 80 tiros por um
destacamento do Exército na Vila Militar.
Mesmo que esse negro fosse um trabalhador
e estivesse dirigindo, para levar a esposa,
o filho de 7 anos e a afilhada de 13 anos,
para um Chá de Bebê.
Os Militares Racistas das Forças Armadas
continuam brincando de matar negros,
“por engano”, para proteger as famílias
brancas ‘de bens’ dos bairros nobres.
O entregador Daniel Rosa, de 29 anos, filho do músico Evaldo Rosa dos Santos, de 51 anos, fala sobre o estado do irmão, de 7, que viu o pai morrer.
O menino estava no carro da família, alvo
de mais de 80 tiros disparados por militares
na Estrada do Camboatá, em Guadalupe,
Zona Norte do Rio, na tarde deste domingo [7].
Na ocasião, Sérgio Gonçalves de Araújo, de 59 anos,
sogro de Evaldo, também foi baleado.
A mulher e a afilhada do músico, porém, nada sofreram.
Chorando muito, ele [o filho mais velho da vítima]
disse estar revoltado com o que aconteceu e afirmou:
— Eles (os militares) têm que ser presos.
Como pode fazer uma coisa dessas?
Meu pai era um cara do bem, nunca fez uma maldade
contra ninguém. E morrer assim? Com o carro cheio de tiros.
Essa gente não pode ter arma na mão. São despreparados.
Vou à Alerj e onde mais for necessário.
O presidente Jair Bolsonaro disse que o Exército veio
para proteger a gente e não para tirar vidas.
Quero uma resposta dele também.
O entregador é filho de criação de Evaldo.
A viúva do músico, Lúcia Santos, que ele
chama de tia, está a base de remédios,
segundo ele.
Luciana, em entrevista ao jornal O Globo, afirma que
mesmo depois de o companheiro ter sido atingido,
os militares seguiram disparando totalizando os 80 tiros.
“Eles ficaram de deboche. Por que o quartel fez isso?
Eu falei para ele: ‘calma, amor, é o
Ele só tinha levado um tiro. Vizinhos começaram a socorrer.
Mas eles continuaram atirando e vieram com arma em punho.
Fui botando a mão na cabeça e gritando:
‘moço socorre meu marido’.
Eu perdi meu melhor amigo”, disse.
A Ponte falou com um familiar logo após a execução:
“Estava tendo tiroteio em Guadalupe, então eles [militares] acharam que era do carro.
Eles atiraram e uma familiar minha, que pegou o filho dela
e ele estava no carro, gritou: ‘É carro de família’.
Não tinha vidro fumê, foi execução.
Eles atiraram, só teve tempo dos outros saírem do carro,
menos o marido dela, que estava de motorista.
Depois que o tiro acertou, eles continuaram acertando.
Tem vídeo mostrando quantos disparos foram, foi execução”,
explica.
https://twitter.com/MidiaNINJA/status/1115246642519785473
https://ponte.org/exercito-prende-10-militares-que-fuzilaram-carro-com-80-tiros-no-rj/
https://www.msn.com/pt-br/noticias/brasil/tudo-indica-que-ex%C3%A9rcito-fuzilou-carro-por-engano-diz-delegado/ar-BBVJ0tp?ocid=st
antipaneleiro
Sugiro a estas bestas da civilização medieval judaico-cristã voltarem a utilizar os números romanos e abandonar todo o conhecimento científico adquirido dos muçulmanos: a álgebra, a química, a ótica, e inclusive o aristotelismo. Vamos lá bolsonários: calculem a porcentagem de PTistas na sociedade brasileira usando apenas números romanos.
Edgar Rocha
Que fique muito claro para o leitor: A Idade Média não é nem nunca foi nada disto que esta elite mentirosa tenta espalhar.
Vejo este resgate do medievalismo por parte da direita uma resposta a um processo de desconstrução da produção histórico-cultural dos últimos tempos na Europa. Processo este baseado no resgate da cultura medieval e nos fatos históricos que comprovam de uma vez por todas a complexidade daquele período.
Graças ao avanço da ideologia burguesa a partir do século XVI na Europa, o processo de depreciação sobre a chamada “Idade das Trevas” mascarou a verdade sobre um período riquíssimo, com valores e histórias de luta que jamais interessariam aos agentes da nova sociedade crescentemente aburguesada do período colonial. Estas revelações claramente objetivaram retirar das mãos da direita conservadora a construção da narrativa sobre a Era Medieval, narrativa esta que buscou instrumentalizar a historiografia tradicional e submetê-la ao imaginário construído com o intuito de depreciar o período em suas mais elevadas manifestações. Para o grande público, a Idade Média ora é vista como um período obscuro, atrasado e aterrorizante, ora como uma época onde se podem resgatar os valores que interessam aos que desejam fortalecer o pensamento conservador. de uma forma ou de outra, quem sempre sai ganhando com isto é o statu quo
Não podemos nos esquecer, no entanto, que a narrativa enganadora difundida pelos ultraconservadores se baseia em meias verdades, ou verdades distorcidas em benefício dos que tentam justificar seu poder.
De fato, o Brasil é herdeiro direto da Idade Média. Mas, não da pureza estrutural do feudalismo arquetípico somente. Nos ligamos à Era de Ouro da Península Ibérica. Um período repleto de nuances advindas do convívio entre árabes, cristãos, pagãos e judeus num mesmo território. Período este que, embora conturbado por conflitos políticos-religiosos, foi também tempo de um esforço das camadas populares para a construção de uma sociedade pacífica, mestiça, repleta de agentes sociais que defendiam valores ainda hoje considerados utópicos. Uma sociedade que criou, de maneira torta e pouco idealizada, parâmetros de convívio e um pacto social capazes de garantir um mínimo de paz e solidariedade em tempos difíceis de peste e guerras. Uma Era em que surgiu a figura mais irreverente e insolente em relação aos fundamentalismos: a benzedeira, herdeira direta das antigas bruxas de Évora, catalizadoras do conhecimento popular de todas as culturas com as quais teve contato, construtora de uma percepção de mundo espiritual e social que ainda hoje, graças ao Bom Deus, influenciam muitas mentes e espíritos em toda a América Latina, em especial no povo brasileiro. Carregam consigo os valores construídos por um povo oprimido, cujas folias e festas revelam arroubos de inclusão e superação de diferenças, levantando a poeira do chão e pedindo as bênçãos para as forças que regem os ciclos naturais. Nas sanfonas nordestinas ainda ressoam os baixos profundos das gaitas galegas, misturadas no Brasil ao batuque árabe, africano e ao pulso indígena de suas danças religiosas.
Um povo que de forma torta ansiava pela paz destituída por Roma e seus aliados das elites locais, vez por outra subvertidos por figuras como Afonso X de Castela e Izabel de Aragão. Pelas frestas do fundamentalismo, rogavam aos santos e a Deus por intervenção em favor dos mais oprimidos:
“Pero que seja a gente
D’outra Lei e descreuda
Os que à Virgen mais amam
A estes ela ajuda”
(Cantiga de Santa Maria – Afonso X – o Sábio)
A elite brasileira, assim como a portuguesa em sua maioria, ainda mantém suas pretensões pouco auspiciosas de membros honorários, capachos de uma metrópole distante. Já o povo constrói uma civilização percebida por Antônio Cândido como uma espécie de cultura de convergência. Aquilo que diz respeito a todos permanece, o que destoa, é aos poucos abandonado.
Eis aí, o futuro reservado ao bolsonarismo.
Zé Maria
Conceição/Azenha.
No final do último parágrafo,
a expressão “terá que assumir”
dá melhor significado à oração,
se for substituída por “terá que enfrentar”.
Conceição Lemes
Realmente, Zé Maria. Obrigadíssima. Já alterei. abs
Zé Maria
Valeu! Grande Jornalista Conceição Lemes!
Um Abraço Camarada
Zé Maria
O Negacionismo Histórico Como Arma Política
Está em curso no Brasil um revisionismo histórico com base na negação e na manipulação de fatos.
Ele é promovido por seguidores da “nova direita” e pelo próprio governo Bolsonaro.
Por Clarissa Neher, na Deutsche Welle (DW)
Há um revisionismo histórico, com fins políticos, em curso no Brasil.
Ele é baseado na negação e manipulação de fatos e é promovido por integrantes do governo Jair Bolsonaro e seguidores da “nova direita”.
Dizer que não houve golpe em 1964 e que o nazismo foi um movimento de esquerda, como afirmou o próprio presidente, são apenas alguns exemplos.
Esses exemplos, segundo especialistas ouvidos pela DW Brasil, fazem parte de uma estratégia maior, de um movimento que busca legitimar os seus projetos políticos a partir de uma visão distorcida da historiografia acadêmica praticada por historiadores no Brasil e no mundo com base em métodos científicos.
Promovido pelo ideólogo Olavo de Carvalho e seus seguidores, entre eles o chanceler Ernesto Araújo e o deputado federal Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, esse negacionismo histórico é carregado de teorias de conspiração, imprecisões e omissões.
Manipulação da história
O negacionismo histórico foi se espalhando por páginas conservadoras nas redes sociais.
E, aos poucos, foi se incorporando ao discurso bolsonarista.
Em julho de 2018, isso ficou claro quando o então candidato a presidente Bolsonaro chocou os brasileiros ao culpar os africanos pelo tráfico negreiro.
‘Se você for ver a história realmente, o português não pisava na África, era [sic] os próprios negros que entregavam os escravos’, disse Bolsonaro numa entrevista à TV Cultura.
A declaração, que vai contra as pesquisas historiográficas produzidas sobre o tema nas últimas décadas, simplesmente ignora a responsabilidade de portugueses no tráfico negreiro ocorrido entre os séculos 16 e 19 e omite que o modelo de escravidão comercial que promoveu a colonização das Américas foi criado pelos europeus.
A transformação da escravidão por europeus num negócio gerou conflitos no território africano e expandiu a prática a números gigantescos.
Estima-se que 12,5 milhões de africanos escravizados foram traficados por europeus a partir de 1501.
O Brasil foi o destino do maior número, 5,5 milhões.
Destes, mais de 667 mil teriam morrido durante a viagem.
O país foi ainda o último do continente a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888.
“A História tem sido manipulada por setores desta ‘nova direita’ com o objetivo principal de legitimar os seus projetos políticos.
O que orienta a narrativa sobre o passado que esses grupos e indivíduos produzem não é o rigor acadêmico, nem os princípios da divulgação científica, da história pública ou do ensino de História, mas um projeto político”, afirma o historiador Bruno Leal, da Universidade de Brasília.
Esse revisionismo histórico, baseado unicamente na deturpação de fatos, teria como alvo tudo que é percebido como uma ameaça à ideologia destes grupos.
“Esse processo de deslegitimação chega a questionar os próprios métodos científicos ou a ciência como um paradigma de explicação da sociedade.
Temos atualmente a situação em alguns casos de discutir se a Terra é ou não redonda.
A História é o elo mais atacado por essa extrema direita”, diz a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O falso passado conciliador
Para a historiadora Maria Helena Rolim Capelato, que já presidiu a Associação Nacional dos Professores Universitários de História, esse negacionismo releva posições autoritárias e preconceituosas.
Durante este processo de produção de uma versão distorcida da História, que é vendida ao público como sem tabus e voltada para recuperar heróis nacionais que supostamente teriam sido esquecidos, os revisionistas se apegam a uma visão historiográfica do século 19 e ignoram a própria complexidade histórica.
Com o desenvolvimento da disciplina, de acordo com historiadores, a História passou a olhar de forma crítica para personagens tradicionais, como a família real, e começou a estudar figuras que ficaram esquecidas por muito tempo.
Neste ano, por exemplo, a escola de samba Mangueira levou para a Sapucaí algumas destas figuras, como Luísa Mahin, que articulou levantes e revoltas de escravos na região da Bahia no início do século 19.
“A disciplina deixou de olhar somente para as grandes figuras e passou a ter uma visão da sociedade como um todo.
Já não é mais uma história laudatória e acrítica”, argumenta o historiador Paulo Pachá, da Universidade Federal Fluminense.
E, segundo Leal, que fundou o site Café História, são justamente essas novas perspectivas da análise do passado que incomodaram setores mais conservadores da sociedade, por produzirem efeitos no presente, como na Comissão Nacional da Verdade e nas políticas de ação afirmativa e de direitos das mulheres.
“Para esses setores, mais vale um falso passado conciliador que a dor latente de um passado cheio de falhas que ainda deixa marcas em nosso presente. Esses grupos entenderam que a manutenção de seus privilégios historicamente construídos depende fundamentalmente do controle da narrativa sobre o passado”, destaca o historiador.
Série de documentários
Teses deste revisionismo foram condensadas numa série de documentários produzidos por um canal simpático à extrema direita e à linha de pensamento de Olavo de Carvalho no Youtube.
Em seus vídeos, o grupo Brasil Paralelo alega querer apresentar uma História ‘livre de narrativas ideológicas’, porém, segundo historiadores ouvidos pela DW Brasil, faz justamente o contrário ao não mencionar as fontes de onde vieram as informações citadas pelo narrador.
O historiador Thiago Krause, da Unirio, destaca ainda que, entre os entrevistados, não há especialistas e pesquisadores reconhecidos na área.
“Como parte deste processo de conquista de corações e mentes, é construída uma visão de mundo extremamente hermética e sem qualquer base acadêmica”, acrescenta Krause.
Além de apresentarem uma história baseada em narrativas do século 19, historiadores destacam que há omissões e até mesmos erros na série…
“O processo histórico real é muito mais complexo do que o que aparece na narrativa do documentário e da nova direita em geral”, afirma Pachá, especialista em História Medieval, que analisou o interesse deste grupo por esse período no artigo: *(Por que a extrema direita brasileira ama a Idade Média europeia)*.
Em outro episódio, a série glorifica a miscigenação, apresentada de forma simplista como uma virtude do Brasil.
O narrador chega a afirmar que o sangue dos brasileiros seria “o tratado de paz da humanidade”.
O mesmo vídeo trata a “cultura” como algo trazido para o país pelos portugueses.
“Ao fazer essa visão simplista para valorizar a cultura ocidental, minimizam a importância dos africanos e indígenas, além da exploração e violência.
Neste sentido, essa narrativa pode ser perigosa, porque está subestimando a opressão característica da sociedade brasileira que se baseou no racismo e na desigualdade”, argumenta Krause, que é especialista em História colonial.
Santos acrescenta que a miscigenação foi fruto de uma relação de poder violenta e que precisa ser analisada historicamente de forma crítica, e não romantizada.
“A miscigenação é a falácia da democracia racial no Brasil. Ficar apenas na parte lírica disso é negar essa história de violência e opressão.
Os primeiros mestiços são frutos de estupros de mulheres indígenas e depois de africanas escravizadas”, ressalta a historiadora.
Confrontação de professores
O revisionismo tem aparentemente chamado a atenção de cada vez mais brasileiros. O canal Brasil Paralelo possuiu atualmente mais de 810 mil inscritos (foi a essa página que, em entrevista, o chanceler Araújo disse que o nazismo era de esquerda). Alimentado por discursos sobre uma suposta “doutrinação ideológica”, esse ataque ao conhecimento tem se voltado contra professores.
“Tenho visto com muita preocupação grupos que se identificam como uma ‘nova direita’ definindo os professores e professoras em geral, mas com destaque para os de História, como um grande inimigo da sociedade.
Para afirmar sua autoridade, esses grupos desautorizam e deslegitimam o trabalho do professor”, afirma Leal.
O historiador vê neste processo uma tentativa de interromper o desenvolvimento de uma geração crítica e questionadora.
“Colocar os alunos e a sociedade contra o professor é uma maneira eficiente de parar esse processo emancipador”, acrescenta.
Além da desvalorização de profissionais da educação, esse revisionismo histórico impede o debate e inibe o conhecimento baseado em metodologias científicas.
Krause afirma que essa deslegitimação do saber também serve para a consolidação da extrema direita no país.
https://www.dw.com/pt-br/o-negacionismo-hist%C3%B3rico-como-arma-pol%C3%ADtica/a-48060402
Leia também:
https://www.washingtonpost.com/posteverything/wp/2017/06/06/islamophobes-want-to-recreate-the-crusades-but-they-dont-understand-them-at-all
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