
BERLINDA ALONGADA
Por Manuel Domingos Neto*
Diz-se do julgamento de oficiais pelo STF: “isso nunca aconteceu antes”; “pela primeira vez, generais golpistas estão presos”…
O que representam esses “ineditismos”? Para onde isso nos levará?
No julgamento, poucos integrantes do esquema golpista figuram no banco dos réus. A ideia de “ineditismo” é relativizada caso se considere que, tal como no passado, grandes atores da trama criminosa, inclusive seus mentores intelectuais, ficarão isentos de responsabilidades.
Apreciações sobre o julgamento compreendem ainda exclamações sobre a “burrice”, a “ignorância”, o “despreparo”, a “brutalidade”, a “covardia” e o “cinismo” dos réus.
É hilariante ver valentões acuados, baixando a voz, gaguejando, tropeçando nas palavras, embaralhando o raciocínio, cometendo atos falhos, exibindo tiques nervosos, apelando para justificativas ridículas, oferecendo argumentos para a acusação…
Quando o juiz explica que os acusados não precisam se ater à verdade, imagino risadas de Shakespeare.
Como esperar dignidade de canalhas presunçosos? Como esperar impassividade de espertalhões contumazes cientes de que serão condenados?
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Não há razão para esperar compostura diante do destroçar da aura de poderosos conferida por galões, insígnias, posturas, ritos e gestos marciais.
Daí para ilações equivocadas é um pulo. Muitos passam a caracterizar os fardados como burros, ignorantes, despreparados, desonestos, interesseiros e covardes.
Não é justo, nem frutífero, nem inteligente desclassificar o soldado.
Por que agastar-lhe o amor-próprio e exacerbar seu espírito de corpo? O que a democracia ganha com isso?
Nos quartéis, só os mais inteligentes e habilidosos fazem carreira.
Desonestos, covardes e ambiciosos sem escrúpulos constituem minoria.
A maioria é composta de pessoas dignas, sérias e preocupadas com o soldo.
As deformações nas fileiras são de outra ordem e estão fora do julgamento em curso.
Na raiz do golpismo endêmico está a atribuição constitucional de que, às Forças Armadas, cumpre a defesa de uma entidade abstrata designada pátria.
Assim, tudo e qualquer coisa pode ser percebido como missão do militar, inclusive a traição aos interesses brasileiros.
Talvez a condenação dos golpistas desestimule aventuras autoritárias. Talvez.
Mas a condenação dos réus e a degradação da imagem das fileiras não eliminarão noções de superioridade inculcadas no cotidiano dos quartéis por meio de apostilas, de palavras-de-ordem, do cancioneiro e de discursos em efemérides.
O fundamental seria o controle da autonomia corporativa pelo poder político, tema sempre minimizado.
Comandantes devem zelar pela imagem de suas fileiras com empenho igual ao que precisam devotar à preservação da hierarquia e à disciplina.
Sem a confiança e o respeito da sociedade, as tropas estarão sempre frágeis.
O principal responsável pela imagem das Forças Armadas deveria ser o chefe de Estado, a quem cumpre exercer o comando supremo.
Entretanto, a exacerbação da autonomia corporativa ao ponto de o militar reclamar para si o papel de criador da nação (ou seja, da sociedade), dilui essa responsabilidade.
Enquanto a Força Terrestre declarar-se “Exército de Caxias” (ou seja, de um oficial que alicerçou sua carreira eliminando brasileiros insurretos), não haverá comunhão espiritual entre a sociedade e o quartel.
Nenhuma autoridade pode ser efetivamente exercida sobre autodesignados representantes dos pais da pátria.
Não houve, no Brasil republicano, chefe de Estado, incluindo Getúlio e os generais-ditadores, que tenha exercido de fato o comando supremo das fileiras.
A comparação de quadros históricos é sempre problemática, mas é razoável estabelecer que as fileiras nunca viveram desgaste tão prolongado.
A berlinda em curso resulta da busca de protagonismo político iniciada após a vitória eleitoral de tendências reformistas reunidas em torno de Lula, lá se vão mais de duas décadas.
O ativismo político de chefes militares ganhou plena visibilidade há cerca dez anos, quando o Comando do Exército deu sinal verde para o início da campanha eleitoral de Bolsonaro em unidade militar. Não sendo demitido e preso, logo em seguida, coagiria o STF para que encarcerasse Lula.
Desde então, o conjunto do aparelho militar foi engolfado em processo político medonho, lastreado pelos milhões de militantes que compõem a “família militar”.
Consequentemente, passou a ser objeto de críticas desgastantes, acirradas após o inacreditável 8 de janeiro de 2023.
Hoje, o capitão Bolsonaro e alguns oficiais respondem na Justiça por crime contra a ordem democrática. Alguns podem até ser expulsos com desonra, prolongando-se o repertório de “ineditismos”.
Aliás, há chefes militares torcendo por isso. Muitos brasileiros pensariam que os tumultos vividos nos últimos anos seriam obras de poucos.
Mas, efetivamente, viveremos sob o ramerrão do intervencionismo militar enquanto a autoridade política não se sobrepor ao quartel.
Precisamos de uma reforma militar orientada por uma nova concepção de Defesa Nacional.
O mundo está explosivo, precisamos defender o Brasil.
Passa da hora de uma Conferência de Defesa Nacional que aponte para a mudança do Artigo 142 da Constituição.
Esse é o primeiro passo para que os fardados saiam da berlinda sem fim e o chefe de Estado assuma, finalmente, o Comando Supremo.
*Manuel Domingos Neto é doutor em História pela Universidade de Paris. Autor de O que fazer com o militar – Anotações para uma nova Defesa Nacional (Gabinete de Leitura).
*Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
Comentários
Zé Maria
Excerto
“Passa da hora de uma Conferência de Defesa Nacional
que aponte para a mudança do Artigo 142 da Constituição.”
.