JN tem de driblar governo para informar que Brasil supera Itália em mortes, remetendo à epidemia que militares esconderam nos anos 70

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Da Redação

O Jornal Nacional, da TV Globo, teve de fazer sua própria contagem, a partir de dados fornecidos pelas secretarias estaduais de Saúde, para atualizar os números da pandemia de coronavírus no Brasil.

É que o Ministério da Saúde, hoje comandado por um general, Eduardo Pazuello, que colocou outros 22 militares na Pasta, passou a atrasar a divulgação dos dados, que inicialmente acontecia às 17 horas.

Pela segundo dia consecutivo, o JN não obteve os números do Ministério.

Mas, desta vez, tinha uma carta na manga: o levantamento do G1, que registrou 1.349 óbitos nas últimas 24 horas.

Logo na abertura do telejornal, o apresentador William Bonner explicou como foi ficando mais difícil obter informações oficiais sobre a pandemia no Brasil.

Em 17 de março, o presidente Jair Bolsonaro disse a apoiadores diante do Palácio do Alvorada que o Brasil não teria o mesmo destino da Itália:

Agora a Itália é uma cidade… é um país parecido com o bairro de Copacabana, onde cada apartamento tem um velhinho ou um casal de velhinhos. Então são muito mais sensíveis, morre mais gente.

Mas agora, com 34.039 mortes, o Brasil superou a Itália.

Com os números das últimas 24 horas, o Brasil só está atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido em número de mortes e atrás dos EUA em número de casos.

Porém, como demonstrou o JN, a curva do Brasil está em plena ascendência, diferentemente do que acontece na Europa e nos Estados Unidos.

O presidente Jair Bolsonaro militou ativamente durante semanas pelo fim do isolamento social, contando com manifestações semanais de seus apoiadores em Brasília e outras cidades.

A ação do Ministério da Saúde, agora comandado por militares, faz lembrar o que aconteceu durante a ditadura militar com uma grande epidemia de meningite que matou milhares de brasileiros e foi alvo de censura.

Escolas fechadas, hospitais lotados, eventos cancelados: o Brasil da meningite de 1974

André Bernardo, do Rio de Janeiro para a BBC News Brasil

Aulas suspensas e eventos esportivos transferidos, algumas das consequências da atual pandemia do novo coronavírus, já marcaram a história recente do Brasil, por conta de outra doença: a meningite.

Em 1974, durante o período da ditadura militar, o Brasil enfrentava a pior epidemia contra a meningite de sua história. O país já tivera dois surtos da doença — um em 1923 e outro em 1945 –, mas, nenhum deles tão grave ou letal.

Isso porque o Brasil foi vítima não de um, mas de dois subtipos de meningite meningocócica: do tipo C, que teve início em abril de 1971, e do tipo A, em maio de 1974.

Para evitar o contágio, o governo tomou medidas drásticas: decretou a suspensão das aulas e suspendeu eventos esportivos. Os Jogos Pan-Americanos de 1975, que estavam marcados para acontecer em São Paulo, tiveram que ser transferidos para a Cidade do México. Hospitais, como o Instituto de Infectologia Emílio Ribas, ficaram superlotados.

A que viria a ser a maior epidemia de meningite da história do Brasil teve início em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Logo, a população mais carente começou a se queixar de sintomas clássicos, como dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.

Em novembro daquele ano, o que parecia ser um surto restrito a uma determinada localidade logo se alastrou e, aos poucos, ganhou proporções epidêmicas. Dali, não parou mais.

Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes. Algo semelhante só se via no “Cinturão Africano da Meningite”, área que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia.

Das regiões mais carentes, a epidemia migrou para os bairros mais nobres. Até julho daquele ano, um único hospital em São Paulo atendia pacientes com meningite. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas tinha 300 leitos disponíveis, mas chegou a internar 1,2 mil pacientes.

“Não houve quarentena porque o período de incubação da meningite é muito curto”, explica a epidemiologista Rita Barradas Barata, doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo (USP) e professora da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.

Na época, Rita trabalhava como aluna do internato em medicina no Emílio Ribas. “O atendimento foi além de sua capacidade máxima. Trabalhávamos muitas horas por dia”, recorda.

De agosto em diante, outras 26 unidades passaram a fazer parte de uma rede de atendimento a pacientes com sintomas de meningite. “Depois de um ou dois dias recebendo tratamento injetável, os casos mais leves eram transferidos para outras unidades, onde recebiam a medicação oral. Já os pacientes mais graves permaneciam no Emílio Ribas”, complementa a médica.

Até então, uma pequena parcela da população, quase nula, sabia da existência da epidemia. O governo procurou escondê-la ao máximo, segundo explica quem acompanhou o caso de perto.

“Assim que surgiu, foi tratada como uma questão de segurança nacional, e os meios de comunicação proibidos de falar sobre a doença”, afirma a jornalista Catarina Schneider, mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora da tese A Construção Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S. Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira (1971-1975). “Essa tentativa de silenciamento impediu que ações rápidas e adequadas fossem tomadas”.

Durante os anos da ditadura, alguns temas foram proibidos de serem divulgados — através de notícias, entrevistas ou comentários — em jornais e revistas, rádios e TVs. A epidemia de meningite que castigou o Brasil na primeira metade da década de 1970 foi um deles.

Sob o pretexto de não causar pânico na população, a censura proibiu toda e qualquer reportagem que julgasse “alarmista” ou “tendenciosa”, sobre a moléstia.

Em 1971, quando foram registrados os primeiros casos, o epidemiologista José Cássio de Moraes, doutor em Saúde Pública pela USP e professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa, integrava uma comissão de médicos de diferentes áreas, como epidemiologistas, infectologistas e sanitaristas.

Juntos, detectaram um surto da doença e procuraram alertar as autoridades. Não conseguiram. Em tempos de ‘milagre econômico’, o governo se recusou a admitir a existência de uma epidemia.

“Os militares proibiram a divulgação de dados. Pensavam que conseguiriam deter a epidemia por decreto. Se eu não divulgo, é como se não existisse. Não sabiam que o vírus era analfabeto e não sabia ler Diário Oficial”, ironiza o médico.

Dali por diante, médicos de instituições públicas foram proibidos de conceder entrevistas à imprensa. O jeito era dar declarações em “off” para jornalistas de confiança, como Demócrito Moura, do Jornal da Tarde.

Mesmo assim, as poucas matérias publicadas, alertando a população dos riscos da meningite, eram desmentidas pelas autoridades.

“Ao governo não interessava a divulgação de notícias negativas. Negar a existência da epidemia foi um erro porque facilitou sua propagação e atrasou a adoção de medidas necessárias ao seu combate. Numa situação dessas, quanto mais rapidamente essas medidas forem adotadas, menores serão as perdas de vidas e os danos à economia”, afirma o historiador Carlos Fidelis Ponte, mestre em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Medo

Em 1974, quando a verdade veio à tona, pelo menos sete Estados totalizavam 67 mil casos — 40 mil deles só em São Paulo. A população, quando soube da epidemia, entrou em pânico.

Com medo da propagação da doença, as pessoas evitavam passar na frente do Emílio Ribas. De dentro de carros e ônibus, fechavam suas janelas. Na falta de remédios e de vacinas, recorriam a panaceias milagrosas, como a cânfora.

“Naquela época, não havia rede social, mas já existiam ‘fake news’. A boataria atrapalhou bastante”, recorda José Cássio.

O governo suspendeu as aulas e mandou os estudantes de volta para casa.

Quando era registrado algum caso nas dependências das escolas, as autoridades sanitárias passavam formol nas mesas e carteiras. Em algumas cidades, as escolas públicas foram transformadas em hospitais de campanha para atender os doentes.

Nos hospitais, a epidemia sobrecarregou especialistas em doenças infecciosas. Médicos de outras áreas, para evitar a contaminação, usavam capacetes, óculos e botas. Outros, ao contrário, atendiam pacientes sem qualquer tipo de proteção. Um terceiro grupo preferiu mudar para o interior, com suas famílias.

Uma das primeiras medidas foi prescrever sulfa. Na esperança de deter o avanço da epidemia, a população passou a tomar o antibiótico por conta própria. “O estoque acabou rapidamente e a bactéria ficou resistente”, recorda José Cássio.

Todos os dias, a comissão médica da qual o médico fazia parte procurava atualizar os números e divulgá-los no quadro de avisos do Palácio da Saúde, onde funcionava a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Os setoristas da área até tinham acesso às informações, mas não podiam divulgá-las.

Os números de casos e de óbitos são contraditórios. O estudo A Doença Meningocócica em São Paulo no Século XX: Características Epidemiológicas, de autoria de José Cássio de Moraes e Rita Barradas Barata, calcula que, no período epidêmico, que durou de 1971 a 1976, foram registrados 19,9 mil casos da doença e 1,6 mil óbitos.

Já a edição de 30 de dezembro de 1974 do jornal O Globo divulgou que, só naquele ano, a epidemia deixou um saldo de 111 mortos no Rio Grande do Sul, 304 no Rio de Janeiro e 2,5 mil em São Paulo.

Ministério censurado

Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presidência no lugar do general Médici. Para ministro da Saúde, ele nomeou o médico sanitarista Paulo de Almeida Machado.

Naquele ano, a jornalista Eliane Cantanhêde, então na revista Veja, conseguiu uma exclusiva com o ministro, em Brasília. Pela primeira vez, uma autoridade admitia publicamente que o Brasil vivia uma epidemia. Mais que isso. Ele alertou sobre os riscos da meningite e ensinou medidas de higiene à população.

De volta à redação, Cantanhêde começou a bater a matéria e a enviá-la, via telex, para a sede da Veja, em São Paulo. Dali a pouco, ficou sabendo que a entrevista tinha sido censurada. Motivo? “Não havia vacina para todo mundo”, explica Eliane. “As pessoas não sabiam o que era meningite. Muitas delas morriam e, por falta de informação, não sabiam do quê”.

No dia 26 de julho de 1974, o jornalista Clóvis Rossi também teve um de seus textos censurados. No espaço reservado ao artigo A Epidemia do Silêncio, a direção da Folha de S. Paulo se viu obrigada a publicar um trecho do poema Os Lusíadas, de Luís de Camões.

“Desde que, há dois anos, começaram a aumentar em ritmo alarmante os casos de meningite em São Paulo, as autoridades cuidaram de ocultar fatos, negar informações e reduzir os números a proporções incompatíveis com a realidade”, alertou Rossi no artigo censurado.

Naquele mesmo ano, o governo brasileiro assinou um acordo com o Instituto Pasteur Mérieux e importou em torno de 80 milhões de doses da vacina contra meningite. “O laboratório francês precisou construir uma nova fábrica porque a que existia não comportava uma produção tão grande”, relata o historiador Carlos Fidelis. “Foi a partir dessa emergência que se criou, na Fiocruz, a fábrica de fármacos, a Farmanguinhos, e a de vacinas, a Bio-Manguinhos”.

Vacinação

Em 1975, o Brasil deu início à Campanha Nacional de Vacinação Contra a Meningite Meningocócica (Camem). Foi quando, para estimular a ida em massa da população aos postos de saúde, o governo passou a divulgar os números da doença.

“A letalidade da meningite é de 10%, mas, no auge da epidemia, caiu para 2%”, afirma Rita Barradas Barata. “O diagnóstico era feito de maneira precoce e o tratamento com antibiótico reduzia o risco de morte”.

Em apenas quatro dias, foram aplicadas 9 milhões de doses na região metropolitana de São Paulo. Logo, estenderam a campanha para outros municípios e estados.

A imunização não era feita com seringa e agulha e, sim, com uma “pistola” injetora de vacina. “Conseguimos uma cobertura vacinal de quase 90% da população”, orgulha-se José Cássio.

Além de superlotar hospitais e de fechar escolas, a epidemia de meningite teria causado outros “estragos”. Um deles é a transferência dos Jogos Pan-Americanos de 1975, da cidade de São Paulo para a do México. Bem, pelo menos essa é a versão oficial. A extraoficial é contada pelo advogado Alberto Murray Neto.

“Em 1975, o número de casos já tinha reduzido e o que se dizia é que a epidemia estava controlada. Em tese, a meningite não seria um impeditivo para os Jogos”, revela Alberto.

Seu avô, Sylvio de Magalhães Padilha, era o então presidente do Comitê Olímpico Brasileiro (COB) e vice do Comitê Olímpico Internacional (COI).

Durante reunião em Brasília, foi avisado pelo ministro da Educação, Ney Braga, que não teria recursos do governo federal para os Jogos. Em suma: o Pan deveria ser cancelado, a três meses de sua realização.

“Meu avô cancelou os Jogos, sem esconder que a questão crucial era o corte de verbas”, relata Alberto. Os Jogos Pan-Americanos de 1975 deixaram para a cidade o velódromo, a raia olímpica e o Centro de Práticas Esportivas da USP (CEPEUSP)”.


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Comentários

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Morvan

Bom dia. Que fique registrado: a Globo deu o troco, ontem: a divulgação dos números das catástrofes Jaircopata e Covid-19, numa edição do Plantão da Globo, foi genial (nunca me esqueço de que, quando os microfones circundando aquele globo, aquela vinheta, e eu gritava, para minha mãe: — “Mãe, corre. É o TV Desgraça“…). Certamente, o núcleo mais sônico do desgoverno Jaircopata (todos!) já deve estar preparando contragolpe. Torço pela terceira via (a briga!). Que rufem os tambores!!!!!

Willian

Quem odeia mais a Globo: petistas ou bolsonaristas?

Morvan

Quando do surto de meningite, ocultado criminosamente pelos de quepe, da época, eu tinha treze anos. Residia na minha cidade natal, Itapipoca, distando 134Km da capital. Uma galáxia, para quem não dispunha de transporte ou mesmo dinheiro para ir até Fortaleza, via ônibus ou trem, comum, à época. Com o aviso, via irradiadora (nosso único sistema de “public address“, à época), de que as aulas estavam suspensas e o motivo, dizia-se, era um surto de doença altamente contagiosa, criaram-se os bolsões de solidariedade. Pessoas que se cotizavam, pessoas que ofereciam caronas, todos rumo à meca, Fortaleza, para se vacinar. Eu fora agraciado com uma carona de um comerciante local. Fôramos em um Jeep (viu como sou trilheiro, desde criança?) e, perto de chegarmos, este senhor me haveria deixado em Caucaia, conurbada com a capital, pois lá estaria menos concorrido o atendimento, enquanto ele faria algumas compras e retornaria. Recebêramos a vacina; voltamos. No caminho, ida e vinda, só pensava nos meus três irmãos e na minha hoje ausente mãezinha. O quê seria deles? Não foram vacinados, ainda. Era só no que eu pensava. Ao falar nisso para o meu benfeitor, ele me asseverou que eles corriam pouco risco, pois não haviam contraído a doença e, por já estarem em isolamento, a tendência seria a vacina chegar logo até o restante da população, o que acabou por acontecer, após algum tempo.
Eu me lembro, com um gosto bem amaro, dos relatos sobre pessoas próximas a nós que não tiveram um benfeitor e que pereceram. Impossível não traçar a eugenia da época com o período gris que estamos vivenciando. Tudo parece um filme mofado, cujas imagens lúgubres se repetem em ciclos.

Celso

A Globo está sob censura.
Censura é uma das marcas da ditadura.
Já estamos vivendo numa ditadura fascista..

Zé Maria

Na quinta-feira (04/6), a Cidade de São Paulo
confirmou 73 Mil Casos de COVID-19
e havia Outros 201.706 Mil Suspeitos.
De acordo com a Prefeitura da Capital Paulista
há 8.860 mortos, sendo 4.568 Confirmados
e outros 4.292 ainda sob investigação.

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/20200604_boletim_covid19_diario.pdf

a.ali

e a história, SEMPRE, se repete!!!

Celso

Observei que eles mexeram no sinal da Globo de novo. Desta vez com mais força.
Quem diria hrin dona. Ser atacada pelo monstro que criou. É a tal lei do retorno.

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