Jeferson Miola: Crise revela identidade ideológica de Leite com ideário da extrema-direita

Tempo de leitura: 2 min
Ilustração: Renato Aroeira (@arocartum)

Crise revela identidade ideológica de Leite com ideário da extrema-direita

Por Jeferson Miola, em seu blog

O governador tucano Eduardo Leite confessou em entrevista [FSP, 20/5] que recebeu com antecedência os alertas da meteorologia sobre a ocorrência de enchentes, mas mesmo assim não tomou as providências devidas.

Num reconhecimento tardio do seu negacionismo climático, e já depois de muito leite derramado, com a licença para o trocadilho, ele admitiu que “muitos alertas se revelam agora especialmente relevantes”.

Ora, pelo menos desde 2022 o governo gaúcho tem conhecimento de que o território do Rio Grande do Sul é um dos epicentros mundiais de fenômenos climáticos graves.

E, durante as enchentes de setembro e novembro de 2023, o governo recebeu a previsão de que novo evento climático severo ocorreria em abril e maio de 2024, porém nada fez. Ou melhor, destinou ridículos 50 mil reais do orçamento deste ano para a defesa civil.

Leite justificou a inação governamental na prevenção e preparação da defesa civil porque “o governo também vive outras pautas e agendas”.

Mas, afinal, quais seriam essas “outras pautas e agendas” hierarquicamente mais relevantes e de prioridade absoluta, que canalizaram todos os esforços e recursos do Estado do RS e que impediram que o governo protegesse a população e a economia gaúcha com um plano de contingência frente à previsão do evento climático severo, conhecido com antecedência de pelo menos nove meses?

O governador responde que “a agenda que se impunha ao estado era aquela especialmente vinculada ao restabelecimento da capacidade fiscal do estado […]”, não a agenda de salvar vidas e prevenir para que essa situação de terra arrasada não acontecesse.

Tanto Leite como o prefeito de Porto Alegre Sebastião Melo não podem ser responsabilizados pelo evento climático severo.

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No entanto, a omissão, a incompetência e a negligência deles causou graves prejuízos humanos, ambientais e econômicos que ou poderiam ter sido evitados em grande medida, ou poderiam ter sido consideravelmente menores, senão mínimos, se os governantes tivessem agido de outra maneira.

Não se pode aceitar a narrativa mentirosa de que houve uma catástrofe; uma fatalidade causada pela malvada natureza ou por um castigo divino. Porque o que aconteceu foi um crime.

E, como fica claro na confissão do governador, um crime praticado de modo doloso, com a consciência sobre os efeitos trágicos que sua omissão causaria.

Esta confissão do Leite foi precedida de outros tropeços dele na crise.

O primeiro, quando criou a arrecadação de doações via PIX em contra gerenciada por entidade privada.

Depois, no exercício autêntico do seu servilismo ao mercado, Leite cogitou prescindir de doações humanitárias para favorecer o comércio em detrimento das pessoas e das famílias que perderam absolutamente todos seus bens e recursos.

Apesar de Leite ser enquadrado na classificação de direitista que “come com garfo e faca”, como Fernando Haddad caracteriza direitistas “civilizados”, a crise tem aprofundado as características conservadoras, iliberais, negacionistas e primitivistas dele sobre o papel do Estado e a visão de sociedade, que têm fortes semelhanças com o ideário das extremas-direitas lavajatista e bolsonarista.

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Nelson

Eduardo Leite é um neoliberal fanatizado que está firmemente compenetrado no cumprimento da tarefa que o grande capital encomendou a ele: aniquilar por completo o aparato estatal do Rio Grande do Sul. E é o que vem fazendo desde que assumiu, em janeiro de 2019.

Desgraçadamente, não é só o Leite que vem desmantelando um Estado que, décadas atrás, era admirado e até invejado pela condição que tinha atingido em termos de serviços públicos e de infraestrutura. Desde a década de 1990, pelo menos, tivemos quatro governos destruidores, o de Antônio Brito, de Rigotto, de Yeda Crusius, de José Sartori.

Neste tempo todo, somente o governo de Olívio Dutra e o de Tarso Genro é que apresentaram e implementaram propostas para a recuperação do aparato estatal gaúcho. Lamentavelmente, ambos foram bastante boicotados em suas iniciativas na Assembleia Legislativa, pois a maioria dos deputados eleitos não tinha qualquer compromisso com as necessidades do nosso povo.

O desgoverno de Eduardo Leite, já em segundo mandato, vem, com denodada vontade de chegar à aniquilação final do aparato estatal gaúcho, dando sequência à destruição impulsionada pelos quatro que citei.

Não é à toa que Leite conta com apoio total dos órgãos da mídia hegemônica do Estado. Entreguistas sempre tiveram apoio incondicional dessa mídia. Você procurará em vão por um filete, uma nesga que seja, de crítica que tenha sido feita ao desgoverno de Leite nas rádios e redes de TV do RS. E olhe que já se vão cinco anos de completo desgoverno.

A turma dos liberais, neoliberais, ultraliberais e anarco-capitalistas, que convergem na adoração fanática, fundamentalista até, do sistema capitalista, estão firmemente empenhados – não pensam em outra coisa – na tarefa de salvar o capitalismo que vive crise* brutal.

A crise, penso eu modestamente, não é de obtenção de lucros, pois os capitalistas dão sempre um jeito de “esgoelar” a classe trabalhadora e o restante do povo para que seus negócios sigam ampliando seus ganhos. A crise é de redução continuada e acelerada dos espaços para a obtenção desses lucros.

Daí que, a meu ver, a saída encontrada pela turma de adoradores do capitalismo para salvar seu sistema, para dar-lhe uma sobrevida por mais algum tempo, é tomar o espaço ocupado pelo setor estatal para nele seguir expandindo seus lucros.

Em consequência disso, veio o receituário do “Estado mínimo” – com suas privatizações, explícitas, ou escamoteadas via PPPs, Oscips, terceirizações sem limite – imposto “goela abaixo” de inúmeros povos do planeta pelo duo FMI/Banco Mundial, leia-se países ricos, Estados Unidos à frente.

Como o compromisso dos liberais, neoliberais, ultraliberais e anarco-capitalistas é salvar o sistema e não as pessoas, catástrofes como a que aconteceu aqui em solo gaúcho se transformam em oportunidade de ouro para que seus governantes e parlamentares, que são, para nossa infelicidade, a maioria dos eleitos, consigam seguir impondo o desmantelamento do aparato estatal ao mesmo tempo em que abrem espaços para os negócios privados.

A rápida contratação da consultoria Alvarez-Marsal por Sebastião Mello, sem licitação, para assessorar na reconstrução da cidade de Porto Alegre, parece apontar neste sentido. Agregue-se a isso, a rejeição, pelo prefeito, do trabalho qualificado a ele apresentado por um grupo de técnicos e estudiosos para a recomposição imediata do sistema de diques da capital gaúcha e o rápido escoamento da água estacionado em vários bairros.

Seria apenas coincidência o fato de que essa consultoria tenha sido a mesma que atuou na reconstrução, nos moldes desejados pelo grande capital, da cidade de Nova Orleans, Estados Unidos, que havia sido devastada pelo furacão Katrina no final de agosto de 2005?

(*) A crise do capitalismo é insolúvel se admitirmos que um sistema econômico-produtivo deve garantir, a cada ser humano que se situe sob sua égide, uma fração da riqueza gerada por tal sistema que pelo menos lhe garanta uma vida digna. Isto, o capitalismo, por sua lógica de funcionamento, não pode, não quer, nunca conseguirá garantir.

Zé Maria

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NOTA TÉCNICA DA ASTEC

[Sobre o Desastre Ambiental e Administrativo de Porto Alegre]

A Associação dos Técnicos de Nível Superior do Município de Porto Alegre (Astec), ao mesmo tempo em que se solidariza com as famílias que perderam seus entes e bens, vem a público manifestar o que segue:

1) Há tempos, a Astec vem denunciando o abandono da capacidade técnica do município, seja pela não substituição de exonerações e aposentadorias, seja pelo desmantelamento das carreiras profissionais e arrocho salarial ou, ainda, por transferências de técnicos para setores diferentes de suas especializações.

Há, hoje, no DMAE [Departamento Municipal de Água e Esgotos] um déficit
de servidores superior a 2.500 profissionais.

O atual gestor municipal [Sebastião Melo] ainda insiste em sucateá-lo visando à privatização;

2) O Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) simplesmente foi extinto, durante o governo do prefeito Nelson Marchezan [PSDB], e seus servidores incorporados ao DMAE.
Diretores e técnicos já alertavam os gestores sobre a importância de se manter um setor especializado na gestão das águas da chuva na capital, especialmente pelo fato de a cidade margear o rio Guaíba.
Desde então, gestores vêm ignorando sistematicamente as orientações técnicas;

3) Com a extinção do DEP e transferência de profissionais para outras áreas, praticamente abandonou-se a manutenção periódica do sistema contra as cheias.
Verbas da Caixa Econômica Federal (CEF), no valor de R$ 121,9 milhões, destinadas à manutenção das casas de bombas, foram devolvidas à CEF, por falta de projetos.
O dinheiro seria destinado à ampliação das vazões das casas de bombas, bem como à instalação de geradores, para dar maior segurança ao sistema quanto à falta de energia.
Além disso, o DMAE possui mais de R$ 400 milhões em caixa e, mesmo assim, nenhum real foi aplicado em prevenção de enchentes em todo o ano de 2023;

4) Os transtornos sofridos pela população da cidade poderiam ter sido evitados.
Existiam soluções tecnológicas e técnicas disponíveis para impedir a inundação da capital gaúcha.
Não foram utilizadas por decisões equivocadas da prefeitura de Porto Alegre.
O sistema de comportas e de bombeamento poderia ter evitado a inundação se tivesse passado por simples manutenção periódica.
Mais do que nunca, nessa enchente, ficou clara a importância de se ter serviços públicos em pleno funcionamento, com recursos materiais e de pessoal suficientes para proteger a população.
Ou seja, tornou-se nítida a importância de haver investimentos nos serviços públicos e no quadro de pessoal para que desastres como esse possam ser evitados;

5) Quanto à busca de soluções para reconstruir a cidade, sugere-se a criação de Comitê de Reconstrução da Cidade, formado por técnicos especialistas das diversas disciplinas, atuantes na própria prefeitura, nas universidades e nos órgãos públicos e privados locais.
Profissionais que conhecem profundamente os problemas da cidade e estão preparados para propor soluções a baixo custo.
Nossa posição é contrária à proposta de contratação da empresa estrangeira Alvarez & Marsal, principalmente porque esta não conhece o histórico e a realidade local;

6) Propomos ao poder público do município a recriação urgente de um órgão municipal especializado em Gestão das Águas Pluviais, nos moldes do extinto DEP, com autonomia administrativa e orçamento próprio, visando evitar a repetição de catástrofes como as ocorridas recentemente;

7) É urgente e necessário repor o quadro de servidores do DMAE, sob risco de colapso também do abastecimento de água na cidade, além dos quadros funcionais da FASC [Fundação de Assistência Social e Cidadania do Município de Porto Alegre], Saúde, Educação e outros órgãos essenciais à população;

8) Diante das consequências desastrosas causadas, pelo menos parcialmente, por omissão, por irresponsabilidade e por negligência, exige-se do Ministério Público rigorosa investigação e do Poder Judiciário a devida responsabilização de culpados;

9) Por fim, condenamos o negacionismo em relação às mudanças climáticas e o afrouxamento da legislação ambiental visando favorecer grupos econômicos e políticos da capital e do estado do Rio Grande do Sul.
Da mesma forma, condenamos os lobbies de grandes empreiteiras da construção civil com alta influência decisória nos poderes Executivo e Legislativo da capital, buscando cada vez mais ampliar seus lucros às custas do sofrimento da população e da agressão ao meio ambiente.

Porto Alegre 20 de maio de 2024.

Associação dos Técnicos de Nível Superior
do Município de Porto Alegre (Astec)

https://astecpmpa.com.br/nota/

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Zé Maria

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“A Porto Alegre Submersa já foi o Sonho de um Outro Mundo Possível”

A mesma Porto Alegre que hoje está submersa pautava, há 20 anos,
no Fórum Social Mundial, a urgência e esperança sobre uma agenda
ambiental transformadora

Por Ana Prestes, no OperaMundi

“Um Outro Mundo é Possível”.

Foi sob essa consigna que, sob o sol escaldante de janeiro em Porto Alegre,
em 2001, se reuniu pela primeira vez o Fórum Social Mundial.

O evento era um contraponto aos Fóruns Econômicos Mundiais de Davos,
na Suíça.
Por isso, inclusive, ocorriam nas mesmas datas como forma de mostrar ao mundo que outra concepção de mundo, não capitalista, era possível.

Ocorria em uma cidade exemplo para o mundo por sua gestão democrática,
responsável e solidária. A cidade dos orçamentos participativos.

Corriam os tempos áureos do evento, realizado até 2003 na PUC de
Porto Alegre, em 2004 em Mumbai, na Índia, e com um retorno triunfal
para Porto Alegre em 2005, para um dos maiores e mais potentes eventos
do FSM já ocorridos até os dias de hoje.

Naquele ano, entre os dias 26 e 31 de janeiro, a orla do Guaíba
se transformou por alguns dias no Território Social Mundial.

Foram mais de 2500 eventos, divididos em 11 eixos temáticos, espalhados
em 4 dias e organizados em um território de tendas cobrindo cerca de quatro
quilômetros de gramado na margem das águas.

A marcha de abertura contou com cerca de 200 mil pessoas e o
Acampamento da Juventude recebeu 35 mil jovens.

Tudo isso em um evento monumental para o qual se inscreveram 155 mil
pessoas, 6872 organizações de 151 países.

A estimativa da brigada militar gaúcha à época foi de que cerca de 500 mil
pessoas circularam pelo território durante os dias do FSM.

Um dos eixos de debates que se demonstrou mais forte e estruturante
das primeiras edições do FSM se concentrava justamente na questão
ambiental e climática, com destaque para os eventos em torno da
Agenda 21 Global.

Um documento gerado pela ECO 92 no Rio de Janeiro, com a participação
e assinatura de 179 países.

A Agenda 21, segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA) do Brasil,
foi criada como um “instrumento de planejamento para a construção
de sociedades sustentáveis, em diferentes bases geográficas, que
concilia métodos de proteção ambiental, justiça social e eficiência
econômica”.

No FSM de 2005, na orla do Guaíba, a então ministra do Meio Ambiente
do Brasil, Marina Silva, participou do 1º Seminário Internacional da Agenda 21,
organizado pelo Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento[1] (FBOMS) com uma audiência e participação
impressionantes.

Havia uma preocupação generalizada com as questões ambientais e
as preocupantes previsões para o futuro da humanidade caso os impactos
ambientais não fossem revertidos.

O século 21 iniciava sob o mau presságio das mudanças climáticas e seus efeitos devastadores sobre populações e territórios.

Na época, já haviam ocorrido duas COPs importantes, a inaugural,
de Berlim, na Alemanha, em 1995, e a paradigmática de Kyoto, no Japão,
em 1997.

No mesmo evento em que estava Marina, do FSM de 2005 em Porto Alegre,
foi também realizado o relançamento da Carta da Terra, ratificada por vários
países no ano 2000 e reconhecida pela ONU em 2001.

O teólogo Leonardo Boff, representante da América Latina na Comissão
Internacional da Carta da Terra, foi um dos mais ativos participantes
dos debates ambientais em 2005.
Nas palavras de Boff, a Carta da Terra, “considera a pobreza, a degradação
ambiental, a injustiça social, os conflitos étnicos, a paz, a democracia, a
ética e a crise espiritual como problemas interdependentes”.

Tratava-se de “um grito de urgência face às ameaças que pesam sobre
a biosfera e o projeto planetário humano”.

Lá se vão mais de duas décadas desde que a Carta foi elaborada.

Enquanto escrevo este artigo, leio do resiliente Boff, em sua conta no X,
antigo Twitter:

“Pelo que estudo e lendo grandes nomes da mudança climática, já estamos
dentro dela.
A Terra está buscando um novo equilíbrio.
Por isso o que ocorreu no RS e está ocorrendo mundo afora é apenas
o começo.
Temo que em breve possa acontecer em outras cidades ribeirinhas
do nosso país.”

Quando vi as imagens de Porto Alegre submersa nas águas do Guaíba,
neste maio de 2024, me vieram imediatamente as lembranças dos Fóruns
Sociais Mundiais.

Havia então um sentimento de urgência e uma esperança de que era
possível construir uma agenda transformadora para pressionar os governos
nacionais e locais.
Uma expectativa da construção da governança global responsável com
o futuro da humanidade.

Um quarto de século após aqueles primeiros debates nas salas da PUC
e quase vinte anos após a tomada do Guaíba pelo Território Social Mundial,
fica mais forte a certeza de que não bastaram a Rio-92 e a Rio +20, as
inúmeras COPs, como as paradigmáticas de Kyoto e Paris, a Carta da Terra
e os inúmeros FSMs.

Será preciso derrotar o coração do sistema capitalista para que o outro
mundo possível, sonhado nas tardes ensolaradas do Guaíba naquela
Porto Alegre de 2005, se realize.

Nota:
[1] O FBOMS foi criado em junho de 1990, na USP, em São Paulo.
Seu objetivo inicial era facilitar a participação da sociedade civil
na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento, a Rio-92. Na sequência, continuaram organizados
e tiveram bastante incidência nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais
em Porto Alegre.

(*) Ana Prestes é Cientista Política, Historiadora, Escritora e
Analista Internacional. Participa dos programas ‘RodaMundo’
e ‘Outubro’ na grade do Opera Mundi no YouTube.

https://operamundi.uol.com.br/opiniao/a-porto-alegre-submersa-ja-foi-o-sonho-de-um-outro-mundo-possivel/

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