Gleisi Hoffman e Marcelo Zero: O fim da política e a ditadura técnica do neoliberalismo

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 Sanders, Mélenchon e Corbyn têm um ponto em comum: perceberam que a esquerda cresce quando defende o seu programa histórico e que a saída é pela esquerda

BREVES APONTAMENTOS SOBRE A CRISE DPOLÍTICA,  DAS DEMOCRACIAS E DO ESTADO

por Gleisi Hoffman e Marcelo Zero*, site da Fundação Perseu Abramo

I – ASPECTOS GERAIS DA CRISE DA POLÍTICA E DO ESTADO

A crise dos partidos, dos sistemas de representação e do Estado é praticamente geral nas democracias atuais. Recentemente, a Quinta República francesa dissolveu-se no ar das urnas.

Pela primeira vez desde sua criação, em 1968, por De Gaulle, os dois principais partidos, o Socialista e dos Republicanos, não foram para o segundo turno. Em seu lugar ficaram a ultradireitista Le Pen e o aventureiro da “nova política”, o direitista Macron, que fará mais do mesmo.

A “nova política” é sempre a mesma coisa em qualquer lugar. Afirma ser “nova” e não ser “nem de direita e nem de esquerda”. Na realidade, a “nova política” é apenas a velha direita com novo marketing. Entretanto, amealha incautos em muitos países, inclusive na França.

Mas o que surpreende é a rapidez e a intensidade da derrocada desses partidos tradicionais.

Em 2007, tais partidos conseguiram 57% dos votos no primeiro turno. Em 2012, conseguiram 56%. Mas, agora, só conseguiram 26%.

Patética foi a performance de Hamon, sucessor oficial de Hollande: não passou de 6%. O Partido Socialista francês se transformou  num Pasok, aquele partido “socialista” grego que, por apoiar o austericídio econômico, cometeu suicídio político. Outrora dominante, o Pasok hoje não passa de 4% do eleitorado. Tem a popularidade de Temer.

Entretanto, a crise dos partidos e dos sistemas de representação não é apenas francesa.

Nos EUA, Trump, um outsider de extrema direita, com um discurso feito sob medida para enganar trabalhadores desempregados, chegou ao poder, para surpresa de muitos.

Na Grã-Bretanha, o Brexit, algo impensável há poucos anos, foi confirmado em plebiscito. Em toda a Europa, há descrença crescente na “política” e nos partidos tradicionais. Pululam aventureiros “apolíticos”, “novos políticos”, novos partidos com velhas ideias e pseudossoluções “técnicas” para problemas políticos.

Essa crise mundial da política é fruto, em grande parte, da crise econômica mundial. Com efeito, sempre que há uma grande crise econômica, intensa e persistente como a da atualidade, a democracia  e os sistemas de representação sofrem considerável  stress.

Nessas circunstâncias, a capacidade da política de absorver e arbitrar conflitos, especialmente os conflitos distributivos, inerentes ao sistema capitalista, se fragiliza ou, em muitos casos, se esvai completamente.

Na crise dos anos 20 e 30, alguns sistemas políticos europeus simplesmente implodiram, dando lugar ao fascismo e ao nazismo, que levaram o mundo à gigantesca tragédia da Segunda Guerra Mundial. Nos EUA, entretanto, o sistema político foi salvo pelas políticas anticíclicas de Roosevelt.

Contudo, nesta crise política mundial, há um fator de base, mais profundo, que vai além da crise econômica. Trata-se do que poderíamos denominar de a “despolitização da política econômica”.

Com efeito, desde a década de 1980 que, em graus variados, os sistemas de representação política vêm “terceirizando” as decisões relevantes sobre a condução da economia para o “mercado” e “instituições independentes”, como bancos centrais dominados por grandes interesses financeiros privados.

Criaram-se, desde aquela época, “consensos  técnicos” que consagraram, como racionais, desejáveis e inevitáveis, as políticas neoliberais amigáveis aos interesses do grande capital, especialmente do grande capital financeiro.

Com isso, as decisões realmente relevantes sobre a condução das economias e dos países foram excluídas do sistema de representação e do controle da soberania popular, exercida pelo voto. O “fim da História” apregoado por Francis Fukuyama, representou, na verdade, o fim da política.

Na Europa e nos EUA, a tradicional alternância entre partidos tradicionais de centro-esquerda e de centro- direita, deixou de ter qualquer incidência relevante sobre a política econômica e a vida das pessoas.

Todos reproduziam, e reproduzem, em maior ou menor grau, a mesmice dos “consensos técnicos” e neoliberais. Na Europa, essa submissão ideológica das esquerdas e centro esquerdas tradicionais ao ideário neoliberal denominou-se “Terceira Via”.

Tudo isso resultou no aumento expressivo da desigualdade econômica e social, num incontido desemprego estrutural, e na “financeirização” e desregulamentação da acumulação do capital, fatores determinantes da pior crise mundial desde 1929.

No campo político, essa usurpação  do controle da política econômica pelo “mercado” resultou, em um primeiro momento, num crescente absenteísmo eleitoral e, agora, na crise, na descrença generalizada na política e na falta de credibilidade dos partidos e dos sistemas de representação.

Os eleitores percebem que seus votos não fazem qualquer diferença em suas vidas. Tanto faz votar no partido A, B ou C, ou mesmo não votar. Nada muda.

A política que não cria reais alternativas de poder não é política, é apenas simulacro de democracia.  É esse vazio político que está na origem da crise das democracias  modernas. Assim, a crise mundial da política é, na realidade, a crise da falta de política.  E a crise dos sistemas de representação é a crise da falta de representatividade dos sistemas políticos, que não dão voz efetiva aos votos colhidos.

Obviamente, essa crise da política ou da dominação política é também uma crise do Estado.

Com efeito, o sequestro das decisões políticas pelos “consensos técnicos” impostos ideologicamente pelos “mercados” vem eliminando progressivamente aquilo que Nicos Poulantzas denominava  de “autonomia relativa do Estado”.

Essa “autonomia relativa” do Estado capitalista repousa no fato de que, nas formações sociais capitalistas, há um corte entre a dominação econômica de classe e a dominação jurídico-política.

Em outras palavras, nessas formações a dominação de classe não é exercida diretamente, mas mediatizada pelo aparelho de Estado que acolhe diferentes interesses.

A dominação de classe se dá por uma “determinação em última instância”, o que permite as representações de interesses díspares das classes dominantes heterogêneas e mesmo de interesses das classes dominadas.

Assim, de acordo com Poulantzas, no caso do Estado capitalista, a autonomia do político pode permitir a satisfação de interesses econômicos de certas classes dominadas, limitando mesmo, eventualmente, o poder econômico das classes dominantes, e refreando, em caso de necessidade, a sua capacidade de realizar os seus interesses econômicos no curto prazo.

Foi essa “autonomia relativa” que permitiu e fundamentou as políticas da social democracia europeia, as quais acolheram, principalmente no pós-guerra, os interesses das classes trabalhadoras, conduzindo o capitalismo ao que Hobsbawn denominou de sua “era de ouro”, com a construção de um Estado de Bem-Estar eficiente e a implantação de mecanismos amplos de distribuição de renda.

Entretanto,  o sequestro das decisões  políticas pelos “consensos  técnicos” implicou o bloqueio dessa autonomia relativa e a total hegemonia inconteste dos interesses do grande capital “financeirizado” no seio do Estado capitalista.

Com isso, foram bloqueados, total ou parcialmente, os interesses de setores das classes dominantes incompatíveis com o grande capital, bem como, é óbvio, os interesses das classes trabalhadoras.

Assim, atualmente não há mais uma distinção significativa entre a dominação econômica e a dominação política, como argumentava Poulantzas. O Estado, em muitos casos, parece ter se tornado mero instrumento direto de dominação do grande capital, sem mediações e qualquer autonomia.

Em alguns casos, tal dominação sequer passa realmente pelo Estado nacional. Ela é exercida diretamente por instituições internacionais. É a situação, por exemplo, da Grécia, submetida a um austericídio inteiramente determinado pela Troika, à revelia das decisões políticas internas que o rejeitaram nas urnas.

Na realidade, quanto mais frágeis os Estados nacionais, mais intensa tende a tornar essa dominação  do capital financeiro internacionalizado.

Desse modo, a “questão nacional” está estreitamente vinculada à questão política e social do sequestro das grandes decisões políticas.

O ressurgimento de uma direita nacionalista na Europa e nos EUA é uma reação, embora  equivocada,  a essa articulação entre a “questão nacional” e as questões políticas e sociais advindas da globalização financeira.

Obviamente, em países periféricos  e em desenvolvimento, que sempre tiveram uma relação maior de dependência, no que tange ao grande capital internacional e às suas agências multilaterais (FMI, Banco Mundial, etc.), e que apresentam também fragilidades  estruturais  econômicas,  sociais e políticas, essas questões são ainda mais problemáticas e complexas.

É o caso da América Latina.

IIALGUMAPECULIARIDADENAMÉRICLATINA:OESTADO AMICO

No caso da América Latina, a crise da democracia, da política e da erosão da autonomia relativa do Estado é amplificada pelas debilidades estruturais dos nossos sistemas políticos e dos nossos Estados.

Alguns autores, como Guillermo O´Donnell, cientista político argentino de grande renome, classificam o Estado de muitos países da América Latina como um “Estado anêmico”.

Embora esse “Estado anêmico”, no sentido do Estado que apresenta significativos déficits na eficácia de suas instituições e de seu sistema legal, seja um velho problema na América Latina, ele teria se tornado um problema ainda mais sério, nos tempos em que houve predomínio político do paradigma neoliberal na região.

Assim, escreveu O`Donnell em 2002 que:

Subyace a esta imagen el triste hecho que en las dos últimas décadas el Estado se ha debilitado enormemente y, en algunas  regiones de estos países, se ha evaporado virtualmente. Crisis económicas, alta inflación, la furia anti-estatista de muchos planes de ajuste económico, corrupción y clientelismo ampliamente extendido- todos estos factores han confluido en generar un Estado anémico [1].

Ademais, este “Estado anêmico” teria gerado também, segundo O´Donnell, um sistema legal de legitimidade e alcance reduzidos.

Em muitos países, o sistema legal não se estenderia a vastas regiões. Mesmo em algumas cidades importantes, como no Rio de Janeiro, por exemplo, o direito consagrado nas leis é substituído, em algumas áreas, pelas “leis do narcotráfico”, que são as únicas efetivamente praticadas nesses locais.

Leve-se em consideração, também, que, nas regiões onde o sistema legal alcança, ele é aplicado, muitas vezes, com viés discriminatório contra os menos favorecidos e os excluídos.

Este sistema legal parcial e discriminatório contribui para criar uma “cidadania de baixa densidade”.

Isto é, aos cidadãos da maior parte dos países da América Latina lhes são assegurados, em maior ou menor grau, os direitos  políticos  e as liberdades  formais correspondentes ao regime democrático.

Contudo, o mesmo não aconteceria, conforme O´Donnell, com os direitos  civis e sociais.

Boa parte da população da América Latina não desfrutaria de proteção contra a violência policial, não teria acesso pleno às agências do Estado, à justiça, à educação e à saúde. São cidadãos que vivem confinados não somente na pobreza e na miséria, mas a uma condição de humilhação, medo e abandono por parte do Estado que deveria, em tese, protegê-los.

O`Donnell assinala, com argúcia, que tais cidadãos:

….no son apenas materialmente pobres, sino también legalmente pobres [2] .

O chamado processo de globalização, aliado à adoção das políticas apregoadas pelo Consenso de Washington em nosso continente, conduziu a uma privatização ou colonização do Estado por parte de interesses privados, muitas vezes ideologicamente confundidos com tendências anônimas e forças impessoais do “mercado internacional”.

Obviamente, esta privatização ou colonização do Estado em muitos países da América Latina erodiu a sua credibilidade  e legitimidade enquanto “Estado-para-a-Nação”, ou seja: enquanto lócus privilegiado de representação dos autênticos interesses do país e de defesa da soberania nacional.

A consequência mais evidente desta privatização ou colonização do Estado é a sua incapacidade de planejar o futuro do país e de implementar políticas de desenvolvimento autônomo. Tudo fica ao sabor dos interesses privados dos investidores, entendidos obtusamente como fatores da “ação racional do mercado”

Outra consequência do Estado anêmico e colonizado, segundo O`Donnell, é a sua incapacidade de atuar “como filtro e moderador” das desigualdades sociais.

Com efeito, este tipo de Estado é quase sempre impermeável às demandas por equidade e por reconhecimento que surgem das camadas mais pobres da população.

Pelo contrário, o Estado anêmico é, quer pela renúncia em controlar o capital, quer pela implementação de políticas que visam colocar os interesses dos “investidores” acima do bem público, um reprodutor ativo das desigualdades sociais e um facilitador dos processos mais nefastos da globalização financeira.

Evidentemente, esta conformação do Estado na América Latina desperta dúvidas sobre a viabilidade, no longo prazo, dos regimes democráticos em nosso continente.

Embora este tipo de Estado possa conviver, ainda que precariamente, com o regime democrático e seus direitos políticos formais, a sua incapacidade  de prover as condições para o efetivo desfrute dos direitos civis e sociais mina os fundamentos da legitimidade da democracia.

Como bem destaca O`Donnell:

Con este tipo de estado, asimismo, la democracia política y sus derechos universales permanecen,  para decirlo de alguna manera, flotando sobre espacios sociales dominados  por modalidades estrechamente individualistas y particularistas  de relaciones sociales, así como también  por relaciones sociales autoritarias que perpetúan  ( y en no pocos casos agudizan) las desigualdades que se manifiestan  en la sociedad. Esta flotación puede transformarse en algo muy abstracto y demasiado distante de prácticamente cada experiencia social, para ser reconocido y valorado por aquellos que son ciudadanos políticos pero carecen de la textura social de apoyo provista por la efectividad de los derechos civiles y sociales. En tales circunstancias, la calidad de la democracia y en verdad su probabilidad de sobrevivencia, pueden difícilmente no estar en juego [3].

Assim, nos países onde o Estado anêmico e a desagregação do tecido social predominam, a democracia e seus direitos formais universais são incapazes de repercutir positivamente sobre a qualidade de vida de boa parte da população.

Para os cidadãos excluídos do usufruto  dos direitos civis e sociais, o regime democrático e os direitos políticos que lhe correspondem se constituem em meras abstrações, com pouco ou nenhum significado concreto para as suas vidas.

Não obstante, isto não significa negar a importância da democracia política, já que ela permite, em maior ou menor grau, a expressão e a representação  dos descontentes. Apenas ressalta-se que, no âmbito do Estado anêmico e das sociedades com fortes desigualdades, ela é incompleta e necessariamente precária.

Alguns autores tentam explicar o enfraquecimento dos Estados na América Latina como uma consequência inelutável do processo de globalização.

Para eles, só a adequação passiva às benéficas forças do mercado internacional é possível. O Estado, nesta concepção, seria apenas mero aparato burocrático com função eminentemente administrativa.

Poderíamos chamá-lo de “Estado síndico”. Um Estado supostamente “neutro” que se dedica somente a administrar os recursos escassos, e que é incapaz de realizar planejamento estratégico e conduzir projetos coletivos. Claro está que este tipo de Estado é tudo menos neutro.

Na realidade, ele é um reprodutor ativo das desigualdades econômicas e sociais. Ele defende, por ação ou omissão, interesses particulares travestidos ideologicamente em necessidades do “mercado”, entendido como uma força impessoal e racional que conduz harmoniosamente a economia.

Entretanto, o enfraquecimento dos Estados na América Latina pelo processo de globalização nada tem de inevitável.

Em muitos países, a globalização não retirou do Estado-Nação a capacidade de elaborar e implementar estratégias para sua afirmação no cenário internacional. Mais ainda, em alguns casos, o que se convencionou  chamar de globalização fortaleceu o Estado.

O Estado norte-americano, por exemplo, se beneficiou enormemente da nova configuração geopolítica mundial que foi criada após o colapso do socialismo real.

Portanto, tal enfraquecimento é fruto de decisões políticas equivocadas, impulsionadas  por uma visão ideologicamente deturpada do processo de globalização e do papel do Estado neste processo.

Cabe ressaltar que, nas duas últimas décadas, alguns países da região passaram por processos sociais e políticos que reverteram, ao menos parcialmente, essas debilidades estruturais do Estado em nossa região.

Foi o caso do Brasil, que passou recentemente por um processo intenso de redução da pobreza e das suas históricas desigualdades, bem como de ampliação e consolidação de diversos direitos sociais e econômicos previstos na chamada Constituição Cidadã de 1988.

De fato, os governos de Lula e Dilma iniciaram um processo de “desprivatização” e fortalecimento do Estado, direcionando fortemente as políticas  públicas para o combate à exclusão econômica e social da maioria da população.

Concomitantemente, geraram também um processo lento, mas seguro, de construção e fortalecimento de cidadania, que tendia a colocar o aparelho estatal sob a égide e controle de um verdadeiro interesse público, e não mais sob o tacão de alguns interesses privados dos grupos secularmente dominantes.

A política nacional de participação social, embora muito tímida, vinha paulatinamente abrindo as portas do Estado brasileiro, antes acessíveis apenas aos representantes do poder econômico e a grupos fortes e articulados, aos setores populares.

Ademais, os governos Lula e Dilma iniciaram uma verdadeira “revolução social” no Brasil, retirando  cerca de 36 milhões de pessoas da pobreza extrema e propiciando a ascensão à classe média a cerca de 42 milhões de cidadãos  brasileiros.

Essa melhoria substancial das condições de vida da população antes excluída, inclusive no que tange às oportunidades  educacionais, também tendia, de forma indireta, a minorar a “anemia” do nosso Estado.

Entretanto, é forçoso reconhecer que essa “revolução social” não foi transformada numa “revolução política”.

Ou seja, ela não resultou numa necessária reforma política que abrisse, de fato, o sistema de representação e o Estado brasileiro aos interesses majoritários da população.

Manteve-se, no Brasil, a estrutura partidária artificial, o forte controle da representação política pelo poder econômico e um presidencialismo de coalizão que obriga o governante a ceder a pressões patrimonialistas e fisiológicas.

Esse fracasso político cobrou depois um preço alto, com o golpe e atual tentativa de reversão de todas as conquistas sociais feitas não só pelos governos do PT, mas também consolidadas na legislação trabalhista da era getulista e no incipiente Estado de Bem Estar inscrito na Constituição de 1988.

Desse modo, o Brasil e outros países da região, que vinham,  em período mais recente, num processo social e político que os colocavam na contramão do neoliberalismo excludente e da crise política e democrática dele advinda, agora retomam, com fúria reacionária, o processo histórico de exclusão e marginalização econômica, social e política de suas populações.

Retoma-se, com determinação, o processo que leva à crescente “anemia” do Estado e ao seu controle exclusivo pelo grande capital financeiro.

Processo esse que não se reflete apenas num enorme retrocesso social, mas também numa profunda erosão da questão nacional, pois a agenda do golpe é a da volta a um Brasil colônia, que passaria a se integrar às “cadeias internacionais de valor” somente como produtor de commodities para as metrópoles ou como hóspede de “maquiladoras”.

III – BRASIL  : O SEQUESTRO TOTAL DA POLÍTICA E DO ESTADO

No Brasil, para complicar, há duas jabuticabas: o golpe parlamentar e a Lava Jato.

O primeiro retirou da soberania popular qualquer controle sobre quaisquer políticas, não apenas a econômica.

Sem um único voto, o consórcio golpista está implantando, a toque de caixa, não somente medidas conjunturais draconianas de ajuste, mas medidas estruturantes, com efeito de longo prazo, talvez definitivos, em todas as áreas: educação, saúde, previdência,  assistência social, trabalhista,  proteção às minorias,  meio ambiente, ciência e tecnologia, energia, política externa, etc.

Já a segunda retirou a credibilidade de toda a classe política brasileira e transferiu definitivamente a tomada de decisões do sistema de representação para um consórcio formado pelo grande capital, a mídia oligopolizada, procuradores messiânicos e juízes partidarizados.

Por conseguinte, no Brasil pós-golpe o sequestro das decisões políticas pelo “mercado” é total.

Não há mais mediações. Não há nenhuma autonomia. Temos um sistema de representação falido, sem credibilidade, e um Estado exangue, mero carimbador de decisões externas, conduzido por um grupo de fisiológicos históricos e corruptos.

No mundo inteiro, a superação da crise política e, por consequência, da crise econômica, passa pela capacidade dos sistemas de representação recapturarem a prerrogativa de tomar decisões relevantes, efetivas e inovadoras no campo econômico e, de resto, em todas as áreas.

Num sentido geopolítico, essa superação implica devolver aos Estados Nacionais a capacidade decisória que fora transferida para o capital financeiro internacional e consagrada em tratados  mundiais  e regionais.

É o que o chamado “populismo de direita” vem tentando fazer, porém de forma inteiramente estéril e equivocada.  E, num sentido democrático maior, essa superação passa por devolver ao voto popular a capacidade efetiva de decidir os destinos do país.

Em outras palavras, a política de tem de recuperar a capacidade de criar, como diria Laclau, uma “identidade” popular que consiga que se antepor, numa disputa democrática real, ao establishment do capitalismo financeiro global e desregulamentado.

Ou, se quiserem, a política real, como diz Chantal Mouffe, tem de substituir o vazio de escolhas da “pós-política” e a democracia tem de substituir a “pós-democracia” destituída de efetiva soberania popular.

Nesse sentido, é bom ver como surge uma nova esquerda em todo o mundo.

Uma esquerda que repudia a falida “Terceira Via” e propõe a radicalização da experiência democrática, a recuperação do Estado de Bem- Estar, a ampliação dos direitos dos trabalhadores, a restauração das soberanias dos Estados Nacionais face ao capital financeirizado e internacionalizado e, sobretudo, a submissão da política econômica aos interesses da população, não mais ao capital financeirizado.

Além do Syrizas grego e do Podemos  espanhol, essa nova esquerda também se manifesta na opção de Bernie Sanders, nos EUA, na opção de Mélanchon, na França e, agora, no realmente novo trabalhismo de Jeremy Corbyn, no Reino Unido.

De fato, Corbyn tirou o trabalhismo britânico da UTI e, numa recuperação avassaladora, cresceu mais de 20% nas intenções de voto nas últimas eleições com um programa de esquerda, que rompe definitivamente com a trágica Terceira Via de Tony Blair.

Denominado de “Radical e Responsável”, o programa previa, entre outras coisas, a nacionalização e estatização do fornecimento de água, da produção de energia, da gestão do sistema de transporte ferroviário dos Correios.

Além disso, o programa de esquerda previa a extinção da cobrança de matrícula nas universidades públicas (de 9 mil libras esterlinas anuais) e o aumento de creches e escolas infantis.

Tal programa, além de resgatar o Estado de Bem-Estar britânico, também estabelecia um aumento de impostos para o “andar de cima”, que chegaria a 50% para os que ganhassem  mais de 123 mil libras por ano.

O programa era para um governo para os muitos (many) não apenas para os poucos (few).

Tal programa fez o Partido Trabalhista saltar de 229 cadeiras no Parlamento para 262, e retirou a maioria de 17 cadeiras do Partido Conservador.

Há um traço de união nos desempenhos de Sanders, Mélenchon  – bem como no desempenho que se anuncia de Corbyn.

Os três perceberam a novidade – evidente também no Brasil a partir das mobilizações de junho de 2013 – que está ocorrendo no mundo: um deslizamento para os polos do espectro político.

Hoje, a esquerda cresce quando defende o seu programa histórico. A esquerda, agora, só pode crescer pela esquerda.

Essa é uma lição para o Brasil. Essa é uma lição para todos.

[1] – “Notas sobre el estado de la Democracia em América Latina”, junho de 2002, rascunho, pág 72

[2]– Ibid, pág 73

[3] – Ibid, pág 75

Gleisi Hoffman é senadora e presidenta nacional do PT; Marcelo Zero é sociólogo, especialista em relações internacionais e assessor da liderança do PT no Senado

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Comentários

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João Lourenço

A Gleisi Hoffman como senadora e presidente de um partido deveria antes de tudo limpar o próprio rabo para representar alguma coisa .No momento ela nada provou para provar sua inocência nas falcatruas dela e do seu marido.Portanto não tem qualquer peso algo escrito por ela .

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