Gilberto Maringoni: 15 anos de ajuste fiscal

Tempo de leitura: 6 min
Ilustração: Mihai Cauli/Terapia Política

15 anos de ajuste fiscal

Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na correlação de forças da sociedade, em favor dos de cima

Por Gilberto Maringoni, em A Terra é Redonda

Neste janeiro de 2025 entramos no 15º. ano de ininterrupto ajuste fiscal, iniciado a partir da posse do primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, em janeiro de 2011. Aquela gestão, como se sabe, tinha como métrica econômica o recuo do papel do Estado como condutor do desenvolvimento.

A economista Denise Lobato Gentil sintetizou bem os parâmetros da época: “A política fiscal de contenção do gasto (sobretudo do investimento), o pacote de desonerações tributárias e as parcerias público-privadas foram elementos indicativos da nova orientação. O traço mais característico da política fiscal do governo Dilma Rousseff, entretanto, foi, seguramente, a brusca desaceleração (e instabilidade) do investimento público”.

O ajuste a partir dessa data até os dias de hoje teve nuances e impulsos variados, mas a diretriz era uma só: reduzir o gasto público.

Uma década e meia depois, o que temos? O ministro da Fazenda abre o ano de 2025, com artigo na Folha de S. Paulo, exaltando o fato de que “Em 2024, o Brasil fez o sexto maior ajuste fiscal do mundo, sendo o terceiro maior entre os países emergentes, segundo o FMI”. O que isso significa?

É possível que um governo, pressionado pela alta finança, seja obrigado em determinado momento a realizar um ajuste fiscal. É algo compreensível. Trata-se de um recuo necessário para ganhar força e tempo e avançar em outras agendas.

Mas transformar um problema em virtude é algo que vai além do recuo e adentra o perigoso terreno da capitulação política e – vou escrever um palavrão! – ideológica.

Ajuste fiscal é sempre uma intervenção estatal na – desculpem! – correlação de forças da sociedade, em favor dos de cima. Implica cortes, contingenciamentos e reduções orçamentárias no funcionamento do Estado, em especial sobre quem mais precisa dele, os pobres. No fundo, é um processo de concentração de renda.

Apoie o VIOMUNDO

Vários governos da América Latina, à esquerda e à direita, adotam ajustes fiscais como se fossem medidas neutras ou “técnicas”, para possibilitar o bom andamento da economia. É um novo consenso! Os resultados, em geral, são negativos.

Os anos de ajuste, no Brasil, representaram tempos de retração no crescimento, de reformas regressivas do ponto de vista social (trabalhista e previdenciária) e de perda de direitos sociais.

A expectativa gerada pela campanha de Lula, em 2022, foi que depois dos desastres econômicos de Dilma Rousseff II, Michel Temer e Jair Bolsonaro, teríamos finalmente a quebra do mantra do ajuste fiscal – ou pelo menos sua versão draconiana do “teto de gastos” – em favor de uma dinâmica de aumento do investimento público e de uma diretriz desenvolvimentista no governo.

Isso tudo, apesar de Lula ter sido eleito sem programa claro, a não ser promessas soltas, como “cerveja e picanha para todos”, “revogação da reforma trabalhista”, “fim da PPI”, “reestatização da Eletrobrás” etc. Após a posse, a conversa mudou de rumo.

A partir daí, percebemos que o único programa disponível era aprovar um novo teto de gastos, como definiu o ministro Fernando Haddad em entrevista à Monica Bergamo (Folha de S. Paulo, 14.10.2024).

Chamada de Novo Arcabouço Fiscal, a medida se mostrou um teto com características mais barrocas, cujo centro é bloquear as despesas em 70% da receita corrente líquida e possibilitar uma expansão do PIB entre 0,6% e 2,5% ao ano.

O motivo da definição de tais números – 70, 0,6, 2,5 – não é explicada por nenhuma ordem cabalística.

Mas a intenção é clara: impedir o crescimento da atividade estatal e abrir lugar para negócios privados.

Ou seja, sequer o surrado bordão neoliberal, de só se gastar o que se arrecada, vale mais. Só se gasta 70% do que se recolhe! E mais: com os gatilhos sancionados pelo presidente Lula no último dia do ano, haverá sanções se a regra for descumprida.

O que possibilitou maior dinamismo econômico nesses anos de governo Lula III, para além da PEC da Transição (cerca de R$ 160 bi a mais no orçamento) e dos precatórios (mais R$ 90 bi)?

Por pressão do presidente Lula, os gastos constitucionais (Saúde e Educação) não foram cortados e direitos como o BPC, a lei do salário mínimo (e suas vinculações previdenciárias) e o abono salarial vigoraram plenamente ao longo do ano que passou. Ou seja, houve crescimento porque o arcabouço não entrou em vigor em sua totalidade.

O gasto público se expandiu. A carta de Conjuntura do IPEA, de dezembro, informa que “A despesa primária do governo central no acumulado até novembro registrou R$ 2.029,2 bilhões a preços desse mês, com aumento real de 4,6% em relação ao mesmo período de 2023”.

A atividade econômica – PIB, renda e emprego -, aumentou. A Faria Lima literalmente surtou, detonando um efeito manada no câmbio, em dezembro. E o que faz o governo? Recuou ainda mais.

Fernando Haddad foi à TV apresentar um pacote de cortes, depois de mais de um mês de intensas reuniões com o presidente.

A apresentação foi pura marquetagem de improviso, na qual foi apresentado um complemento fictício sobre isenção no IRPF até ganhos de R$ 5 mil mensais e taxação de rendas mais altas, certamente tentando aplacar uma base social confundida por tantas idas e vindas.

Ato contínuo, Lula grava uma live dirigida ao “mercado”, na qual faz juras de amor à independência do BC, diante do novo presidente Gabrial Galípolo, numa versão hype da Carta aos Brasileiros, de 2002.

Às pressas, o Planalto envia para o Congresso um pacote de cortes, votado em rito sumário – pressa não observada quando os temas são de interesse dos de baixo -, que logo deixa a nu as intenções do Ministério da Fazenda.

As tesouradas foram direcionadas aos direitos dos pobres e miseráveis. Pegou tão mal e abriu tamanho flanco diante da extrema direita, que o presidente Lula teve de recuar e vetar cortes mais fundos no BPC.

O salário mínimo crescerá menos do que na regra anterior. Saímos da fórmula INPC+variação do PIB para INPC+2,5% (mesmo que o PIB seja maior, como é o caso de 2024).

Neoliberais dentro e fora do governo valem-se da relação dívida/PIB como métrica de boa gestão fiscal.

Trata-se de ficção neoliberal de quinta categoria. Qual o problema desse indicador chegar a 80%, como em breve teremos por aqui?

Países centrais, em geral, têm dívidas ao redor ou acima de 100% do PIB, como Japão (214,27%), Estados Unidos (110,15%), Espanha (102,25%), Itália (140,57%) e França (92,15%), entre outros.

De outra parte, Estados pobres têm débitos abaixo de 40%, a exemplo de Azerbaijão (20,68%), Bangladesh (39,9%), Bulgária (31,5%), Botsuana (20,35%), Estônia (18,83%) e Haiti (25%).

Os dados estão na página do FMI. Apesar dessas proporções se constituírem em uma mitologia mercadista, existe a possibilidade virtuosa de se reduzir a relação dívida/PIB através do aumento do denominador, com o crescimento da produção e do emprego.

O que importa é o custo da dívida, ou qual a taxa básica de juros que os Bancos Centrais têm de fixar para que seus papéis se tornem atraentes para agentes financeiros e para regular a liquidez da economia.

As taxas nos EUA e na zona do euro em geral não são altas quando comparadas às da periferia. Já o baixo endividamento pode indicar desinteresse de investidores e ausência de um mercado de capitais com alguma robustez. Apesar disso, esse é o indicador que baliza as ações da Fazenda.

Por fim, é preciso perguntar porque diabos precisamos dar continuidade a um infindável ajuste se não há sequer sombra de crise fiscal no horizonte. Não estamos em perigo de default ou de qualquer tipo de suspensão de pagamento da dívida pública.

Talvez a maior vitória ideológica do neoliberalismo na gestão do Estado tenha sido a de criminalizar o gasto público e ganhar expressivos setores da esquerda nessa cruzada. Corte, contingenciamento, bloqueio e demais sinônimos virou sinônimo de virtude!

Temos uma equipe econômica que não se pauta pelo desenvolvimento e para a qual os bons resultados de expansão do PIB, emprego e renda de 2024 são problemas que podem superaquecer a economia e provocar – a partir da discutível teoria do PIB potencial – inflação. É também a visão do capital financeiro e da grande mídia. É palavrório vazio.

O Arcabouço representa uma derrota política, econômica e sobretudo ideológica para quem esperava, após sete anos e três governos de puro arrocho fiscal, finalmente a possibilidade de crescer e promover desenvolvimento real.

O que temos contratado para 2025 pode ser mais um voo de galinha, a se concretizarem as duas novas altas de 1% na Selic prometidas na ata do BC, agora sob hegemonia de diretores indicados pelo lulismo.

O arcabouço nos impõe uma lógica de Peter Pan, o menino que não queria crescer. Não precisamos desse pó de pirlimpimpim.

*Gilberto Maringoni é jornalista, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC).

*Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.

Veja também

‘Arcabouço fiscal criou incompatilidade matemática entre tipos de despesa’, alerta Deccache

Paulo Nogueira Batista Jr: Dilemas e paradoxos da política econômica brasileira

Jeferson Miola: A encruzilhada do governo — o programa eleito ou a armadillha do arcabouço

Paulo Kliass: Pelo fim do arcabouço fiscal

Apoie o VIOMUNDO


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

https://youtu.be/ow96-kAbdDU?t=206

Nelson

“Neste janeiro de 2025 entramos no 15º. ano de ininterrupto ajuste fiscal, iniciado a partir da posse do primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, em janeiro de 2011. AQUELA GESTÃO, COMO SE SABE, TINHA COMO MÉTRICA ECONÔMICA O RECUO DO PAPEL DO ESTADO COMO CONDUTOR DO DESENVOLVIMENTO.”

“A economista Denise Lobato Gentil sintetizou bem os parâmetros da época: ‘A política fiscal de contenção do gasto (sobretudo do investimento), o pacote de desonerações tributárias e as parcerias público-privadas foram elementos indicativos da nova orientação. O TRAÇO MAIS CARACTERÍSTICO DA POLÍTICA FISCAL DO GOVERNO DILMA ROUSSEFF, ENTRETANTO, FOI, SEGURAMENTE, A BRUSCA DESACELERAÇÃO (E INSTABILIDADE) DO INVESTIMENTO PÚBLICO’.”

Bem. É profundamente lamentável ter que escrever isto, mas o Maringoni e a economista Lobato Gentil comprovam a impressão que eu tinha naquele momento. Eu via o governo Dilma afundando nas políticas neoliberais, mais ainda do que Lula I já havia feito.
E foi o que ocorreu.

Agora, com o governo Lula III, parece que caminhamos rumo à capitulação definitiva ao neoliberalismo, ao Estado mínimo tão exigido pelo duo FMI/Banco Mundial e países ricos.

O que indica que o próprio governo acaba por solapar a promessa da reindustrialização do país. Isto porque, sem Estado forte, não há possibilidade de impulsionar um projeto nacional de desenvolvimento.

É profundamente lamentável, também, ter que afirmar que as razões pelas quais os Estados Unidos não queriam outro golpe no Brasil estão bem claras. Para que os EUA iriam querer uma ditadura explícita de Bolsonaro, se sabiam que teriam, a sua disposição, podemos dizer, um governo Lula III totalmente manietado, com várias “rédeas curtas” envoltas em seu pescoço?

Ou seja, o Brasil viveria uma ditadura (do grande capital) muito bem escamoteada de democracia. Essas “redeas curtas” – 3/4 ou 4/5 do Congresso Nacional de direita privatista/entreguista, o prosseguimento da judicialização da política, a mídia hegemônica, LRF, arcabouço fiscal (o teto dos gastos seguiria vigindo), entre diversas outras – se encarregariam de impedir algum arroubo na direção da verdadeira recuperação do país, algum arroubo no sentido de implementar uma política de esquerda consistente.

Enfim, os Estados Unidos teriam em suas mãos um governo de esquerda (sabemos que não o é, pois, a direita está lá dentro dos ministérios, mas, para a grande maioria do povo é esquerda) a implantar políticas de direita, o chamado “governo violino”.

O melhor dos mundos para os governos dos EUA. Numa próxima eleição, caso já não precisem mais contar com governos “violino”, preferindo um neoliberal “puro-sangue”, os EUA disporão de uma situação bastante cômoda. Basta debitar na conta da esquerda o insucesso do “governo violino” na implantação das mudanças necessárias e desejadas pela nação.

Como a direita detém um domínio avassalador da comunicação com o povo, ficará muito fácil demolir a reputação desse governo “de esquerda” e viabilizar a ascensão do neoliberal “puro-sangue”. Isso alijará a esquerda de qualquer chance na disputa por umas três, quatro ou mais eleições.

Mas, caso os EUA resolvam “aturar” um governo “de esquerda” por mais tempo, exigirão ainda mais concessões para admitir que esse mesmo governo volte a se eleger. O resultado: o afundamento ainda maior da esquerda.

“Se ficar o bicho come, se correr o bicho pega”. Enfim, esse é o “brete” em que nos meteram, “um mato sem cachorro”. Estratégia genial, há que reconhecermos, pois, não vejo no horizonte possibilidade concreta de que possamos sair dessa engenhosa arapuca, pois me parece instransponível.

P.S. 1
Olhando para o país vizinho, a Venezuela, e comparando-a com a nossa, podemos concluir que a independência com que o bolivarianismo toca seu país – ainda que essa independência tenha limites – é a motivação maior para o açoite brutal que as democracias (sic) dos Estados Unidos e Europa impõem ao povo venezuelano.

É preciso deitar abaixo experiência do povo vizinho antes que as comunas se expandam ao um estágio de não retorno. A um estágio em que para dobrar esse povo, para fazê-lo recuar do caminho que escolheu, seja necessário assassinar milhões.

P.S 2
Noam Chomsky nos diz que os estrategistas dos governos dos Estados Unidos nunca apontaram o socialismo/comunismo como o primeiro problema a ser atacado. Para esses estrategistas, o primeiro problema é o anseio eterno dos povos, anseio que nunca se acaba, por trilharem um caminho próprio, um caminho de autodeterminação, de independência e de soberania sobre aquilo que é seu.

E isto se comprova nos inúmeros golpes de Estado patrocinados pelos EUA. Golpes que não foram aplicados somente contra governos de esquerda. Houve golpes aplicados também contra governos de centro ou até mesmo de direita que se propunham a implantar um projeto nacional de desenvolvimento em benefício de seus povos.

O ataque sem tréguas dos EUA a experiências díspares como a Revolução Cubana ou a Revolução Bolivariana e a Revolução Islâmica (Iran), por exemplo, mostram isso.

https://www.viomundo.com.br/politica/gilberto-maringoni-15-anos-de-ajuste-fiscal.html

Deixe seu comentário

Leia também