Evitando a essência, Indústria Americana é favorito a desbancar candidato brasileiro ao Oscar

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Reprodução de vídeo

por Luiz Carlos Azenha

Na civilização do arroz, o “comunismo” antecede Mao Tsé Tung e Ho Chi Minh.

A necessidade de irrigar extensas áreas — e dividí-las entre famílias para plantio e colheita do arroz — forjou o sentimento comunitário.

Quando as terras não eram coletivas, restavam separadas por fios de tecido amparadas em estacas de madeira.

Impossível irrigar um lote e não o do vizinho.

As decisões coletivas sempre se impuseram sobre a vontade individual.

No Vietnã testemunhei pessoalmente uma procissão de agricultores logo depois do plantio, um espetáculo de sincretismo político-religioso.

Organizada por autoridades locais do Partido Comunista, era composta por andores em que agricultores levavam fotos de familiares aos quais rogavam por boa colheita.

Também estavam presentes símbolos budistas. Por fim, um andor levando fotos de Ho Chi Minh.

O guia nos explicou que o governo comunista havia se adaptado à cultura local. 

Na guerra do Vietnã, este foi o erro crucial dos Estados Unidos: não entenderam que Ho Chi Minh era acima de tudo um nacionalista, que havia mobilizado os vietnamitas em torno de uma ameaça existencial à Nação.

Mobilizou o nacionalismo assentado sobre um forte espírito comunitário, marca indissociável e profunda das sociedades orientais.

Seria muito exigir que os produtores e diretores de Indústria Americana, documentário do Netflix que concorre ao Oscar, exibissem esse nível de sofisticação ao falar da China, outra civilização do arroz.

Indústria Americana concorre com Democracia em Vertigem, que narra o golpe de 2016 no Brasil, motivo pelo qual vem atraindo atenção do público brasileiro.

Diga-se, antes de mais nada, que são dois trabalhos muito bons, ainda que passíveis de críticas.

Indústria Americana trata do caso de um “empresário” chinês que compra uma planta demolida da GM no estado de Ohio, nos Estados Unidos, para fazer dela uma fábrica de vidros automotivos. Implanta métodos chineses de produção.

O empresário vem entre parênteses, pois a China tem uma política de promover campeões nacionais fortemente financiados pelo Estado. São empresas transnacionais do Estado chinês com a fachada de empresas privadas, com o objetivo de tirar proveito de vantagens competitivas, neste caso a proximidade geográfica com a indústria automotiva dos Estados Unidos/México.

A burguesia idiotizada do Brasil defenestrou esta mesma política, cujos alicerces foram lançados no governo Lula.

Há muitos pontos altos em Indústria Americana:

— o empresário chinês, a certa altura do filme, repete o mantra de Donald Trump, “Make America Great Again”.  Ele se opõe aberta e brutalmente à sindicalização dos operários na fábrica que montou em Ohio. Há, sim, um paralelo a ser feito: o capitalismo de Estado chinês é tão voraz pela mais valia dos trabalhadores quanto Trump e seus amigos oligarcas do Ocidente.

Há pontos nebulosos, por falta de contexto:

— um operário chinês observa que os Estados Unidos têm apenas 200 anos de idade, mas não se diz que a civilização chinesa tem 4 mil, nem se toca nas ameaças existenciais enfrentadas pela Nação antes de Mao Tse Tung dar sentido ao nacionalismo chinês (guerras do Ópio com os britânicos, invasão japonesa e outras ameaças imperialistas).

— as imagens sugerem que os operários chineses são servis, sem explorar a possibilidade de que tenham aderido ao projeto de Estado dos comunistas por terem recebido em sua vida cotidiana vantagens materiais objetivas. Afinal, a China saltou de país miserável a grande potência mundial em algumas gerações.

Indústria Americanapassa ao largo da questão do imperialismo, que é a justificativa que o governo comunista chinês utiliza junto ao povo para se manter no poder: ou fazemos sacrifício pela Nação, ou seremos novamente saqueados por estrangeiros, como fomos no passado, argumentam.

Estamos cercados pelos Estados Unidos, que não aceitam nossa autonomia sobre Hong Kong, nem sobre Taiwan, dizem os líderes comunistas ao povo.

O espírito de sacrificar-se por algo maior faz o trabalhador chinês exigir menos que seu colega norte-americano, interessado em vantagens materiais para seu próprio bem estar individual?

Indústria Americana sugere uma época de ouro da indústria nos Estados Unidos, quando uma operária ganhava 29 dólares por hora de trabalho na GM, sem explicar que foram os industriais americanos que procuraram a China para explorar a mão de obra barata que migrava do campo para as cidades, forjando uma aliança com os comunistas pela exploração dos trabalhadores, que deu pernas frescas ao capitalismo — Nixon não foi à China em 1972 beber chá.

Seria demais pedir ao documentário, da mesma forma, que tocasse numa questão essencial diante de nós: a co-dependência Estados Unidos-China vai resultar numa divisão de esferas de influência similar à que o mundo viveu no período da guerra fria, entre EUA-URSS, em que o oxigênio para as demandas dos trabalhadores será continuamente sugado?

Indústria Americana traz duas informações de arrepiar: de um lado, sobre o crescimento nos Estados Unidos de uma indústria exclusivamente dedicada a destruir os sindicatos; de outro, sobre o fato de que até 2050 a automação vai eliminar 375 milhões de empregos no mundo.

Tempos bárbaros esperam os trabalhadores.

Seja como for, o documentário tem tudo para ser o ganhador do Oscar, pois é talhado para excitar as emoções superficiais dos jurados norte-americanos, sem atacar as questões realmente inconvenientes, como a parceria entre a elite endinheirada dos Estados Unidos e o Partido Comunista chinês na extração da mais valia dos trabalhadores sino-americanos, ainda que com objetivos diversos.


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Zé Maria

Para o Cinema Brasileiro, sob o fogo cerrado do desgoverno do Mito Psicopata, o fato de o Filme de Petra Costa ser indicado ao Óscar de Melhor Documentário de Longa Metragem já é o Maior Prêmio.

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