Débora Calheiros: Enfim, uma esperança para o Código Florestal

Tempo de leitura: 5 min

por Débora Calheiros, especial para o Viomundo

Diante da cegueira, inércia, omissão e conivência coletivas e deliberadas em relação a todo o absurdo processo de revisão do Código Florestal, que recebeu até a denominação de “novo” (embora de novo não tenha nada, já que é tecnicamente e legalmente retrógrado…) e chegou a ser aprovado como lei (Lei 12.651/2012), alguém agiu com o cuidado e critério que se espera da Procuradoria-Geral da República (PGR).

No dia 21 de janeiro, Sandra Cureau, durante o seu período como procuradora-geral interina, entrou com três ações no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando três pontos da lei que aprovou o Código Florestal:  as determinações quanto às áreas de preservação permanentes (APPs), a redução da reserva legal e a anistia para quem desmatou além dos limites permitidos pela legislação.

“O processo legislativo foi dominado por propostas que tinham como pano de fundo um único objetivo: desonerar os proprietários rurais dos deveres referentes à proteção das florestas e, ainda, ‘anistiar’ ilegalidades antes cometidas”, avaliou a procuradora1, questionando a constitucionalidade do texto sancionado.

Tudo que afrontosamente tivemos o desprazer de acompanhar neste vergonhoso drama kafkaniano, sob pressão direta e indireta de apenas um setor da sociedade, o setor do agronegócio, o mais interessado economicamente em sua aprovação… foi uma clara afronta à nossa Leia Magna, que deveria ser seguida à risca por todos, em especial os do poder público, mas contou com chancela presidencial.

Afronta ao Artigo Constitucional 225, a tudo que se possa imaginar em termos de embasamento técnico, às políticas públicas nacionais e internacionais e à Política Nacional de Meio Ambiente e de Recursos Hídricos e legislação vigentes, sem falar nos aspectos ético e moral. O Código Florestal original não era perfeito, mas, ao menos, tinha bom senso e era técnico.

Uma afronta também aos cientistas de instituições de renome como USP/ESALQ, UNESP, UNICAMP, UFRJ, INPA, INPE, UFMT, UnB, UNIFESP2, entre várias outras, além da SBPC e ABC. Até mesmo a Embrapa, considerada como referência pelo próprio setor ruralista, embora tenha se omitido deliberadamente do debate público e censurado funcionários, tem — como era de se esperar dada a qualidade de seu corpo técnico — inúmeras publicações3 importantes sobre o tema.

Uma afronta à Ciência, com “C” maiúsculo, com rigor técnico e comprometimento com o bem público. Desrespeitados foram também os brasileiros que se manifestaram contrariamente nas ruas e nas redes sociais através de cerca de 3 milhões de assinaturas entregues oficialmente à Presidente nas diferentes campanhas do “VETA DILMA!”

Tudo absurdamente ignorado: leis, políticas públicas, ciência, bom senso e opinião pública. Entretanto, cede-se vergonhosamente às pressões políticas de um setor que tem sido historicamente um dos mais privilegiados deste país e com grande participação e responsabilidade no nível de degradação ambiental e social na área rural, obviamente, com conivência e omissão de órgãos públicos.

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Quem respeita a lei é, mais uma vez, desrespeitado neste país. Quem avilta a lei continua sendo favorecido. Inversão total de valores mantida por governos que se afirmavam popular, republicano e democrático. Acontece no caso dos transgênicos, no uso indiscriminado de agrotóxicos e se repete no caso do Código Florestal. Cria-se o fato ilegal, argumenta-se com base em pseudociência e muda-se a legislação. Simples assim.

Desde a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável (também conhecido como Estocolmo+30 e Rio+10), realizada em 2002 em Joanesburgo, a ONU e a OMS têm enfatizado a importância de se considerar o uso de água doce como uma questão ética, salientando a necessidade de se incluir o aspecto de gênero relacionado ao papel da mulher na ética do uso da água4. Como a água é a fonte da vida e porque a água potável é um componente crucial da saúde, a questão ética é uma questão de sobrevivência para a humanidade (!).

As mulheres, também como fontes de vida, têm um papel de liderança na promoção da ética ambiental. Mulheres, especialmente as de comunidades e povos tradicionais, segundo a ONU, têm conhecimento sobre as relações ecológicas e a gestão de ecossistemas frágeis, conhecimento fundamental para a sobrevivência da humanidade (!). De acordo com a mesma ONU, ações para o desenvolvimento sustentável que não envolvam as mulheres não terão sucesso.

Como mulher e cientista da área de recursos hídricos, ecologia de rios e gestão de bacias hidrográficas, me espanta tamanha desmoralização da ciência e das políticas públicas, realizada por pessoas que deveriam responsavelmente embasar suas decisões em informação de qualidade. Ignorar ciência na era da informação é praticar um desserviço ao país; é praticar improbidade administrativa no caso de funcionários públicos; é agir inconstitucionalmente.

Pergunta-se: Como imaginam que se possa fazer gestão ambiental e de recursos hídricos na escala de uma bacia hidrográfica, levando em conta regras diferenciadas para cada propriedade em separado, sem considerar o sistema como um todo? Não só a Constituição foi desrespeitada, mas a Lei de Administração Pública, a Lei de Recursos Hídricos, as políticas da ONU, a Convenção Ramsar, a Convenção do Clima e a de Diversidade Biológica, a ética…

Que bom, então, que Sandra Cureau, uma mulher, agiu, cumprindo o seu papel profissional de funcionária pública. Ou teria ela, por ventura, se sensibilizado e bebido da mesma fonte das avós do projeto “A Voz das Avós – no Fluir das Águas”5?

Outras mulheres com poder político, como Dilma, Izabella, Gisela e Kátia, frente a tudo que já sabemos nesses finais da Década da Água6, precisam urgentemente beber muito dessa fonte que as tornariam mais femininas no amplo sentido da relação maternal de cuidado com a vida, com a água, com a mãe Terra.

Em tempo. Sugestão técnica: recomeçar o processo para se discutir e elaborar uma nova legislação, respeitando a Política Nacional de Recursos Hídricos, regida pela Lei Nacional de Recursos Hídricos. Ou seja, garantindo a participação de toda a sociedade, necessária para a efetiva gestão de recursos hídricos como previsto nas referidas Política e Lei.

A legislação determina que a gestão seja participativa e tripartite.  Garante que representantes de todos os setores da sociedade (usuários, sociedade civil e governos) de forma paritária, exerçam sua cidadania, mas com o devido embasamento técnico da SBPC, ABC, Embrapa, Universidades e outras instituições de pesquisa.

Para tanto, poder-se-ia utilizar o método das Conferências Nacionais, muito bem realizadas durante o governo Lula, com o apoio dos comitês de bacia e universidades locais, mas tendo como produto final a efetiva produção de um Projeto de Lei.

Tal proposta coletiva seria posteriormente analisada pelos Conselhos Nacional de Recursos Hídricos e de Meio Ambiente e depois referendada por meio de Plebiscito Nacional. Água é assunto coletivo.

Atualmente, fala-se tanto em inovação tecnológica, proponho então esta inovação na área de gestão de recursos hídricos. É simples de ser implantada. Bastaria respeitar as leis vigentes e as Convenções cujo país já é signatário, todas bem embasadas em Ciência.

Referências

1 http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/01/22/pgr-questiona-constitucionalidade-do-novo-codigo-florestal

2 http://www.biotaneotropica.org.br/v10n4/pt/toc

3 Exemplos de publicações da empresa – bioma Cerrado:

http://www.cpac.embrapa.br/download/365/t

http://www.cpac.embrapa.br/download/1360/t

http://www.cpac.embrapa.br/download/1547/t

http://www.cpac.embrapa.br/download/1297/t

http://www.cpac.embrapa.br/download/1922/t

4 http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001363/136357e.pdf

5 http://www.avozdasavos.org/

6 http://www.un.org/spanish/waterforlifedecade/background.shtml

Débora F. Calheiros é bióloga

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