Berenice Bento: O genocídio palestino e as palavras que matam

Tempo de leitura: 5 min
São Paulo, 04/11/2023: Ato Mundial em Solidariedade ao Povo Palestino, na avenida Paulista. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

O genocídio palestino e as palavras que matam

Por Berenice Bento, no Desacato.info

Cena 1: Luto sem corpos?

“40 bebês são decapitados pelo Hamas.” Impossível não sentir uma corrente elétrica percorrer a espinha depois de ler essa notícia. Tentei encontrar mais informações. Nada.

Poucas horas depois, escutei o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, repetindo a mesma informação. Produziu-se uma comoção global.

Mas onde estão os pais dessas crianças? Onde estão os corpos? O mundo ocidental, como um rastilho de pólvora, entrou em luto imediatamente. Uma punição exemplar foi exigida.

Aos poucos, a história começou a girar. Diante da impossibilidade de seguir adiante com a narrativa, a jornalista que espalhou a notícia pediu desculpas e reconheceu que não viu nenhum corpo.

Confiou em uma fonte israelense e não fez o necessário trabalho de investigação (veja Jornalista da CNN pede desculpas por espalhar fake news sobre “bebês decapitados” pelo Hamas).

Mesmo depois de toda a história ter sido negada, de Joe Biden afirmar que, de fato, não tinha visto nenhuma foto, o luto por crianças que não existiram continuou.

Seguiu-se justificando o massacre de Gaza pelas almas de 40 crianças que não existiram. E aqui está a eficácia simbólica máxima de uma notícia que, embora mentirosa, torna-se verdade: produzir o luto sem corpos.

Estranhamente, estamos diante de um tipo de ordem discursiva que não tem como função descrever a realidade ou contar uma história, mas criá-la, próxima àquilo que John Auster aponta como a potência de algumas palavras para criar realidades.

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Politicamente, tais crianças existiram e foram mortas por todos aqueles que conferiram veracidade à mentira. Foi o luto sem corpos de 40 crianças israelenses que segue justificando a morte de 2.300 crianças palestinas em Gaza, de um total de 8.100 vítimas (dados da OCHA, de 29 de outubro).

Depois de ter consumido à exaustão a informação, o trabalho de negação não terá o mesmo alcance.

Uma realidade foi criada. E as crianças de Gaza? Matar 2.400 crianças palestinas e matar simbolicamente 40 crianças israelenses parece estar subsumido na expressão “Israel tem direito de se defender”.

Estamos diante de um poder soberano de um Estado sem registro na história da humanidade.

Cena 2: O estupro visual

Uma importante feminista gravou um vídeo e publicou-o em suas redes para lembrar de nossas lutas pela tipificação do estupro como crime de guerra.

Para ilustrar sua fala, mostra a foto de uma jovem israelense, sentada numa moto, sendo capturada pelos militantes do Hamas em 7 de outubro. O tema do vídeo é o estupro como crime de guerra.

Como a pesquisadora concluiu que aquela mulher tinha sido estuprada?

Qual o indicador objetivo que ela cita para chegar a essa conclusão?

Não há perguntas, mas um vínculo entre a imagem da mulher e o estupro. Não há dúvidas de que os estupros como arma de guerra devem ser apurados e punidos. As mulheres palestinas de 1948 seguem esperando a justiça.

Infelizmente, até o momento, Israel não teve nenhuma de suas autoridades processadas em tribunais internacionais pelos estupros cometidos contra mulheres e adolescentes palestinas em 1948.

As narrativas de mulheres sobreviventes de estupros coletivos cometidos pelos soldados de Israel, pesquisadas por Fatma Kassem em Palestinian Women. Narratives histories and gendered memory (2011), como a história da pequena Faik Abu Maneh que foi estuprada por seis soldados israelenses, seguem esquecidas.

A exemplo dos bebês que não foram assassinados, mas simbolicamente o foram e provocaram luto, eu me pergunto o porquê de a pesquisadora precisar estuprar simbolicamente a jovem da foto.

A acusação leviana, por si só, configura-se também como uma arma de guerra, neste caso explicitamente a favor do Estado de Israel. É um tipo de instrumentalização das lutas feministas que nós, feministas antirracistas e anticoloniais, já conhecemos.

A força da fotografia para mobilizar afetos humanizadores em contextos bélicos ou em massacres foi tema da polêmica entre Judith Butler (ver Marcos de guerra: las vidas lloradas, 2010) e Susan Sontag  (ver Sobre la fotografia, 2006).

Ao contrário de Sontag, Butler aponta que a fotografia tem uma força singular como texto, sendo desnecessário textos escritos ou mesmo legendas para afetar o outro.

Cita especificamente as fotos das cenas de tortura protagonizadas pelos soldados dos Estados Unidos em Abu Ghraib.

Para Sontag, ao contrário, a fotografia não tem a força de mobilizar sozinha a indignação ou a humanização de quem vive sob uma situação de opressão, sendo fundamental o texto escrito.

A forma como a pesquisadora acusa os militantes do Hamas de estupro pela interpretação de uma fotografia enseja novas questões que mereceriam outras problematizações que não estão totalmente contempladas nas reflexões de Butler e Sontag.

Se não há nenhum indicador na foto de estupro, me pergunto por que a pesquisadora chegou a essa conclusão e o que a levou a fazer tal acusação.

Ela aciona uma foto como prova testemunhal contra um crime de guerra que só existiu no olhar dela.

Ao tornar público seu olhar, com o poder de verdade que seu lugar de pesquisadora confere a ela no mundo, termina por praticar um estupro simbólico.

Fiquei curiosa para saber a solidariedade da pesquisadora às mulheres palestinas que são presas e torturadas ou a outras que são obrigadas a dar à luz dentro de carros e no chão, porque soldados/as israelenses que controlam os checkpoints não permitem que elas acessem os hospitais.

Tentei encontrar uma palavra de indignação que a conectasse com o sofrimento das crianças palestinas presas e também torturadas sob a acusação de atirarem pedras nos soldados.

Atualmente, dos 5.200 presos palestinos, 1.264 estão presos sem nenhuma acusação (sendo 33 crianças que, quando julgadas, devem se submeter ao tribunal militar israelense).

O Hamas propõe trocar (veja Hamas propõe trocar reféns por palestinos presos em Israel) os 210 reféns israelenses pelos 1.264 que Israel detém acima e contra a Lei Internacional de Proteção aos Direitos Humanos.

Eu procurei, mas não vi uma única palavra de solidariedade da pesquisadora às mulheres palestinas que vivem sob o domínio colonial israelense há 75 anos.

Talvez se possa perguntar por que estou evocando duas cenas muito particulares em um momento em que os mais de dois milhões de palestinos de Gaza estão submetidos a um genocídio.

Eu não estou focando em pontos excessivamente específicos e secundarizando o fundamental?

As duas cenas, no entanto, nos ajudam a entender a autorização que o ocidental confere a Israel para seguir matando. O que elas têm em comum?

A aparente desconexão entre os dois casos encontra no orientalismo seu ponto de unidade.

Como define o pensador palestino Edward Said em O Orientalismo: o oriente como invenção do Ocidente (2007), o orientalismo é como uma instituição presente no imaginário ocidental de várias maneiras, a começar pela associação de árabes aos bárbaros, aos selvagens, aos animais, ao estuprador (camada nova oferecida pela pesquisadora) e ao terrorista.

São seres desconectados de qualquer ponto de unidade com os valores universais da civilização e, do outro lado, identifica-se Israel como a única expressão civilizada no Oriente Médio.

É esta economia ontológica que está em jogo nas duas cenas. As duas inverdades produzidas pela jornalista e pela pesquisadora só foram possíveis pela identificação de ambas com um imaginário orientalista que tem no sionismo um herdeiro legítimo.

Vejamos o que aconteceu no caso do hospital Al-Ahli, quando mais de 500 palestinos/nas foram mortos em Gaza, em 17 de outubro desse ano.

Israel negou a autoria do ato terrorista. Se Israel negou, não foi ele. Ponto.

Não importa se, mais uma vez, foi comprovado que o atentado terrorista foi cometido por Israel (veja a reportagem da TV Al Jazeera, que mostra a manipulação de informações no caso da explosão de hospital).

É interessante observar que aqueles/as identificados com o orientalismo, que se disseram horrorizados com o ataque, depois da comprovação da autoria de Israel, não se pronunciaram mais.

A identificação com o colonizador transforma a fala dos colonizados, dos oprimidos, em ruídos, em grunhidos ininteligíveis. E quem disse que o subalterno pode falar?

O genocídio contra o povo palestino está em curso e seguirá, porque, independentemente do poder bélico de Israel e dos Estados Unidos, foram construídas as condições ideológicas que retiram do povo nativo qualquer possibilidade de resistência.

Mas pode um estuprador e decapitador de crianças afirmar-se oprimido e resistir?

Mas não houve estupro nem decapitação de crianças. Não importa. E se eles não decapitaram ou não estupraram, poderão fazê-lo, afinal, não são israelenses. São terroristas.

Berenice Bento é professora do Departamento de Sociologia da UnB e pesquisadora do CNPq.

A opinião da autora não necessariamente representa a opinião do Viomundo.

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Comentários

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Zé Maria

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Realmente, vindo do Estado Teocrático Sionista Terrorista

e dos Estados Unidos da América até as Palavras Matam.

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Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/F-cM34pWIAAs2-D?format=jpg

Até Parlamentar Petista Acredita em Fake News Plantada

pelo Serviço Secreto Mossad e pelo Genocida Netanyahu.

https://twitter.com/rvianna/status/1722355522920173688
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https://pbs.twimg.com/media/F-cRs6QbIAANoCw?format=jpg
https://twitter.com/rvianna/status/1722359538873926132
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https://pbs.twimg.com/media/F-bTv8zWYAAGHEc?format=jpg
“O [Jornalista César] Tralli se confundiu,
os Dois Homens eram ‘Cantores de Axé’
do ‘Grupo Rebolar’.”
https://twitter.com/HBO_Marx/status/1722319295986782346
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Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/F-XGab3XsAAHnmS?format=png

“Cheiramos muito fósforo branco, estão nos matando”,
diz uma das brasileiras, ainda retida em Gaza.
Cidadãos brasileiros, muitos sul-americanos, irlandeses
e demais nacionalidades de países não aliados a Israel
estão sendo feitos REFÉNS em Gaza por Israel.
REFÉNS DIPLOMÁTICOS.”
https://twitter.com/SanaudJuventude/status/1721979561414701161

Israel está Bombardeando Civis em Gaza com “FÓSFORO BRANCO” ?

Mas não era aquele ‘Ditador’ Sírio ‘Genocida’ Malvado que fazia isso?

Não acredito… Dããã…

.

Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/F-Phi2CbQAA3d0c?format=jpg
https://pbs.twimg.com/media/F-Phi2CbQAA3d0c?format=jpg

Governo Genocida do Estado Teocrático Sionista
mandou seus Militares Covardes Sequestrar
uma Moça Palestina de 22 Anos na Própria Casa,
na Cisjordânia Ocupada. (https://aje.io/qiyzeh)

O Correspondente da Al Jazeera, Zein Basravi,
relatou Vários Ataques do Exército Israelense
em Toda a Cisjordânia, inclusive na Aldeia de
Nabi Saleh, Perto de Ramallah, onde Ahed
Tamimi foi Presa, sob ‘suspeita de incitação
à violência e atividades terroristas’ (segundo
disse um Porta-Voz do Exército de Israel).

A Militante Pró-Palestina foi transferida
para as Forças de Segurança Israelenses
“para mais interrogatórios” [Torturas?].

“Família de ‘Terroristas’ Atiradores de Pedras”

Tamimi e os Membros da sua Família são Ativistas
conhecidos e lideram a Resistência Não Violenta
de Nabi Saleh há Quase Uma Década.

O seu Pai foi Preso Inúmeras Vezes pelas Forças
Militares Israelenses e passou Pelo Menos 4 Anos
na Prisão.

Aos 14 Anos, Ahed Tamimi tornou-se um Ícone da
Resistência Palestina desde que viralizou na Internet
um Vídeo do seu ‘Confronto’ com um Militar Israelense,
em 2012, quando deu uma Mordida em um Soldado
Armado que tinha chegado à Casa da Família Dela
para prender o Seu Irmão.

A Militante Palestina já havia sido Presa pelo Exército
Israelense em Dezembro de 2017, Após Novos Confrontos,
ao Lado de sua Mãe e do Primo Nour, de 20 anos.

Tamimi foi Presa por 8 Meses, sob 12 Acusações, incluindo
Agressão, Incitação e Casos Anteriores de Lançamento de
Pedras [SIC].

Israel já prendeu cerca de 1.740 Palestinos em Ataques Noturnos
na Cisjordânia Ocupada e em Jerusalém Oriental desde 7/10.

A Maioria está Detida com Base em Leis e Ordens Militares
que permitem a Detenção Sem Acusação ou Julgamento.

https://twitter.com/AJEnglish/status/1721467517615669339

Leia também:
https://www.aljazeera.com/wp-content/uploads/2018/01/ff98b6bbfcaf4fa28efb89e45fae44e8_18.jpeg

“Ahed Tamimi é a Rosa Parks Palestina”

“Os Palestinos enfrentam hoje a Mesma Injustiça Jurídica
contra a qual Rosa Parks e Martin Luther King lutaram nos EUA.”

Por David A Love (https://twitter.com/davidalove)
Professor de Estudos de Mídia e
Jornalista Baseado na Philadelphia/USA

Íntegra:
https://www.aljazeera.com/opinions/2018/1/15/ahed-tamimi-is-the-palestinian-rosa-parks
.
.
“Nossa humanidade passa a ser secundária
em relação à nossa fidelidade aos governantes
que não se importam conosco.”

https://twitter.com/BreeNewsome/status/1721200029950488978
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.

Zé Maria

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“A Construção do Apartheid nas Escolas Judaicas”

“Material Usado em Sala de Aula é, em realidade,
carregado de Signos de Violência, Desprezo e
Intolerância Contra os Palestinos.”
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.
“Construindo o inimigo ‘desumano’ e ‘terrorista’:
como os Livros Didáticos Israelenses reforçam
a Desumanização dos Palestinos e legitimam
a Violência do Estado de Israel.
Nesta Reportagem produzida pela Al Jazeera*, a
Professora Israelense, Nurit Peled-Elhanan, da
Universidade Hebraica de Jerusalém, fala sobre
a Militarização da Sociedade Judaica, a Construção
de Estereótipos Racistas Usados para Subjugar o
Povo Palestino e a Instrumentalização da Educação
Pública do País pelo Projeto Político Sionista:”
*https://twitter.com/i/status/1720946301913674081
https://twitter.com/Historia_pensar/status/1720946301913674081
.
.
Vídeo e Livro Relacionados ao Tema:

“Ideologia e Propaganda na Educação:
A Palestina nos Livros Didáticos Israelenses”

Por Nurit Peled-Elhanan.

https://youtu.be/UIxyy_0x1PA
https://m.media-amazon.com/images/I/91FycOjv-uL._SL1500_.jpg)

https://twitter.com/DanielDeLucca9/status/1720987342029062619
.
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Zé Maria

“Zambelli copia Estética Nazista ao comparar Palestinos a ratos”
https://pbs.twimg.com/media/F-H6EwIWgAA029c?format=jpg

“Absurdo, desumano, inaceitável, violento, brutal.
Uso da tradição bíblica para promover uma cultura de ódio e de genocidio,
construção de uma subjetividade religiosa bélica e que justifica a barbárie
em nome de Deus.
Texto bíblico retirado de contexto para promover corações de pedra,
anestesiados diante do sofrimento humano.
Teologicamente perverso, politicamente trágico.
Deus, revelado por Jesus, está no rosto, na lágrima e no corpo
de quem sofre.
Quando tive fome me deram de comer, quando tive sede me deram de beber.
Deus não pertence a um povo ou a um Estado.
Jesus me ensina a ver Deus nos pobres, nos famintos,
nas vítimas de violência. Seja onde for.
Tenho medo do Deus desta deputada.
A consequência política desta visão religiosa é devastadora
para a Democracia, para os direitos humanos, para uma cultura de paz,
para a humanidade.
Não tem a ver com o crucificado. Tem a ver com os que o crucificaram
e crucificam. Não em nosso nome!!!”

Pastor Henrique Vieira
Deputado Federal
https://twitter.com/PastorHenriqueV/status/1720931498826539390

Zé Maria

https://pbs.twimg.com/media/F-IP9a5a8AAF5Ez?format=jpg

“Carta de um Palestino Enlutado ao Presidente dos EUA”

“Senhor Biden, perdi 36 Membros
da Minha Família em Gaza,
em Apenas 1 Dia.
Quero que você saiba
os Nomes Deles.”

Por Ghada Ageel
Cietista Político
Refugiado Palestino de 3ª Geração e
atualmente é Professor Visitante no
Departamento de Ciência Política da
Universidade de Alberta, em
amiskwaciwâskahikan (Edmonton),
território do Tratado 6 no Canadá.

Leia a Íntegra da Carta em: http://aje.io/i0mop6

https://twitter.com/AJEnglish/status/1720955836686840075
https://www.aljazeera.com/opinions/2023/11/4/a-letter-to-president-biden-from-a-grieving-palestinian

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