Boito Jr.: Há mais coisas entre a luta de ideias do que sonham os jornalões

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Armando Boito Jr. "A história recente do Brasil não é, de modo algum, a história da luta de ideias – econômicas ou outras"

Armando Boito Jr., especial para o Brasil de Fato

I

Está ficando cada vez mais claro para um número crescente de observadores que há uma disputa no interior do Estado brasileiro e na cena política nacional entre duas correntes de pensamento econômico. De um lado, os neodesenvolvimentistas, predominantes no governo Dilma, e, de outro, o pensamento econômico monetarista ou neoliberal ortodoxo, que ainda reina absoluto na grande imprensa escrita e nas emissoras de rádio e de televisão.

O que ainda não está claro para muitos observadores é que essas correntes de opinião econômica ou de escolas de pensamento vocalizam, na luta de ideias, interesses de diferentes frações da burguesia que, por sua vez, contam com aliados ou apoiadores em diferentes setores das classes populares. Ou seja, que a luta de ideias repercute e participa, de maneira complexa, dos conflitos de classe que atravessam a sociedade brasileira.

II

O programa monetarista e as ideias e valores nos quais se baseia representa, acima de tudo, o interesse do grande capital financeiro internacional, das empresas produtivas sediadas no exterior e da fração da burguesia brasileira completamente integrada a tais interesses. É possível demonstrar essa afirmação cotejando as propostas dos monetaristas com os interesses desse setor. Suas bandeiras são: rigidez no controle da inflação, juro alto, câmbio com certa estabilidade e preferencialmente apreciado, redução dos gastos públicos com investimentos produtivos e sociais, abertura comercial e desregulamentação financeira, retomada do programa de privatizações e da reforma trabalhista. Ora, essas bandeiras são o coração e a cara do grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele integrada. A inflação desvaloriza a mercadoria (dinheiro) do capital financeiro, o juro alto remunera-o melhor, o câmbio estável e apreciado permite a entrada e saída sem sobressaltos e de maneira lucrativa – isto é, comprando dólar barato – do capital estrangeiro investido em ações, em títulos da dívida pública e em serviços diversos no país, a abertura comercial coloca o mercado interno ao alcance das mercadorias produzidas nos países centrais e colabora no combate à inflação, a redução dos gastos com investimento produtivo – mas não com a rolagem da dívida – lhes dá segurança de que o Estado poderá honrar seus compromissos com todo o tipo de papel que se encontra nas mãos dos rentistas e assim por diante. Os monetaristas martelam, sem cansar e sem medo de serem repetitivos, nas teclas do “centro da meta da inflação”, do superávit primário, da crítica à intervenção do mercado de câmbio e outras. Quem melhor vocaliza os interesses dessa fração da classe dominante no plano partidário é o PSDB. Noutros tempos, seriam muito corretamente denominados entreguistas.

O programa neodesenvolvimentista choca-se no seu conjunto – ainda que não se choque ponto por ponto – com o programa monetarista reinante na imprensa e atende, como é possível demonstrar, aos interesses da grande burguesia interna. Essa fração da classe dominante local também quer a participação do capital internacional no capitalismo brasileiro. Ela não é nacionalista no sentido popular do termo. Porém, a grande burguesia interna – presente em diversos ramos da economia: indústria de transformação, mineração, prospecção e refino do petróleo, construção civil pesada, agronegócio, alimentos e bebidas – pretende regular essa participação e moldá-la de acordo com os seus interesses específicos. Como no caso anterior, é possível demonstrar a relação de representação entre as ideias de uma escola de pensamento econômico – a neodesenvolvimentista no caso – e a grande burguesia interna, cotejando as propostas e as medidas de política econômica dessa segunda escola de pensamento com os interesses dessa outra fração da burguesia. Senão vejamos: maior tolerância com a inflação para que o Estado possa lançar mão de políticas anticíclicas, juro baixo para baratear os investimentos produtivos, câmbio depreciado e restrições à abertura comercial para proteger a produção local e ganhar mercado e lucratividade para as exportações brasileiras e aumento dos gastos públicos para investimentos em infraestrutura, para que o BNDES possa continuar emprestando a juro subsidiado e para que o Estado possa realizar suas compras de produtores locais mesmo quando tal compra exija um pagamento até 25% superior ao preço estabelecido por empresas sediadas em outros países. É sabido que o governo Dilma, que representa e organiza os interesses da grande burguesia interna, segue essa linha, tendo tomado inúmeras medidas – na área do juro, do câmbio, da proteção alfandegária, do cálculo do superávit primário e no financiamento público de investimentos (BNDES) – que devem ser caracterizadas como neodesenvolvimentistas e que são alvo da oposição dos monetaristas ligados ao grande capital financeiro internacional.

É claro que as escolas de pensamento econômico têm suas características e histórias próprias. Conhecidos monetaristas obtiveram seu doutorado em Chicago no Departamento de Economia de Milton Friedman e se concentram em certas universidades, enquanto os neodesenvolvimentistas trabalham em outras instituições acadêmicas e formaram-se na Cepal ou são discípulos de economistas da escola da Cepal como Celso Furtado. As escolas de pensamento são até personalizadas na figura de seus mestres e os economistas de cada um desses campos podem conceber sua adesão às ideias que defendem como o resultado de uma reflexão própria e livre. Podem também não ter consciência das relações necessárias entre essas ideias e os interesses de classe que elas favorecem. A maioria acredita mesmo que defende tais ideias com o objetivo de tornar o país “mais próspero” e “mais justo”. Para que possam nutrir essa ilusão, não faltarão argumentos para ambos os lados. Tudo isso ilude o analista e o observador. Mas isso não é o mais importante para a análise da política nacional. Para tal, o que mais interessa é o conteúdo dessas ideias e as consequências de sua aplicação sobre os interesses em jogo na sociedade brasileira.

III

A política monetarista redunda, como se pode ver examinando o seu conjunto de bandeiras, em crescimento baixo ou nulo. Sim, existe uma fração burguesa que tem interesse no crescimento baixo da economia brasileira. A corrente neodesenvolvimentista pode, diferentemente, estimular, em condições favoráveis, a taxa de crescimento. É claro que essa segunda opção tem muito mais apelo popular. E esse apelo é maior ainda quando sabemos que, até para poder levar de vencida o grande capital financeiro internacional e seus aliados internos que contam com a simpatia dos países centrais e da grande imprensa local, o PT e o governo Dilma atendem, ainda que de modo superficial, interesses das classes populares. Fora do campo da classe dominante, o setor que se vê representado na escola monetarista é a alta classe média, setor social para quem a maior parte das medidas favoráveis às classes populares – onde se inclui a parte majoritária e não abastada da própria classe média – são percebidas como custos ou como ameaças.

Monetaristas e neodesenvolvimentistas não se opõem em tudo e por tudo. Há áreas importantes de convergência entre essas escolas como entre as duas frações burguesas que elas representam. Afinal, ambas são integradas por grandes empresas monopolistas. Porém, a diferença entre elas é importante e é essa diferença que vem sendo ocultada no debate brasileiro.

Há mais coisas entre a luta de ideias e os interesses econômicos do que sonham os jornalões brasileiros. Os conflitos entre escolas de pensamento, entre o governo e a oposição, são, sim, expressão de um conflito de classes e de frações de classe. A história recente do Brasil não é, de modo algum, a história da luta de ideias – econômicas ou outras.

Armando Boito Jr. é Professor de Ciência Política da Unicamp

 


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Comentários

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Julio Silveira

O Boito tem muita razão. Embora nessa disputa eu prefiro os desenvolvimentistas. Por razões obvias para quem já tem alguns anos de vida e tendo que sobreviver as politicas propostas pelos monetaristas.
Que muito certamente devem ter um grande colchão financeiro para sobreviver as politicas que impõem aos cidadãos reais, esses de carne e osso, esses dos detalhes para eles. De qualquer modo, os atuais desenvolvimentistas também pecam. Na realidade quem viveu os periodo economico da ditadura, e se lembra, verá grande semelhança na condução economica, que no fim tende a se fragilizar devido a pouco, ou nenhum interesse em se fazer uma revisão nas diretrizes que formam as bases culturais dos nossos condutores politicos, que acabam por desaguar a má consequência, tanto economica quanto politica, via de regra, na cidadania.
Vivemos a utopia, da diferença com os periodos autocráticos, da democracia, mas na prática continuamos atrelados a meios e metodos que nos asseguram um lugar destacado entre os que envergonham a cidadania mundial consequente.

Roberto Locatelli

O PT nasceu das lutas populares e sindicais. Tem, portanto, uma forte conexão com a classe trabalhadora que o articulista finge que não vê. Ou, pior, não vê mesmo!

Dito isto, é preciso reconhecer que o PT não é um partido socialista, no sentido marxista do termo. Não é e nunca foi.

Enquanto houver espaço para distribuir renda e melhorar a qualidade de vida do povo dentro dos marcos do capitalismo, o PT o fará. Mas esse espaço é cada vez menor. Inevitavelmente os governos de centro-esquerda do Continente estarão diante da opção: socialismo ou barbárie.

PedroAurelioZabaleta

Há muito mais do que Boito consegue ver: milhões resgatados da pobreza extrema, combate ao desemprego e melhora significativa da distribuição de renda.
Talvez a mesa de estudos dele fique longe da janela, e ele não consiga ver as ruas.

    Mário SF Alves

    É… pensando bem, você tem razão. Afinal, o que Boito quer? Uma revolução social à francesa? No Brasil? E da noite pro dia?
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    E, com o devido respeito, ainda sou daqueles que pensam que antes de tudo deve vir a educação política; antes de tudo deve vir a consolidação da democracia. Ou melhor, antes de tudo deve vir o respeito à Constituição Federal do Brasil.
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    E, pensando melhor ainda, neodesenvolvimentismo, sim. E por que não? Num país como o Brasil, um dos países mais ricos do mundo, onde o capitalismo se impôs como capitalismo subdesenvolvimentista, por que não o neodesenvolvimentismo? Aliás, neo?!! Como neo? Já houve algum desenvolvimentismo nessas plagas?
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    O falecido Mário Covas chegou a discursar sobre a necessidade de um tal choque de capitalismo no “capitalismo de muletas” praticado no Brasil. Se não me falha a memória, ficou só no discurso.

Fabiano Araujo

Boa análise. Devemos lutar para que a taxa de juros seja reduzida ainda mais, de tal maneira que, a diferença entre o rendimento proporcionado pelos investimentos financeiros e a inflação seja muito pequena ou nula(no Japão e nos Estados Unidos, atualmente é negativa), o que, certamente induzirá os poupadores a investir no setor produtivo,gerando aumento do nível de emprego e de renda. Mesmo que, tal política produza (não necessariamente) uma pequena elevação da taxa de inflação é preferível do que adotarmos uma política de alta de juros que provoca diminuição das atividades econômicas, levando milhares de pessoas ao desemprego e à renda nula. Pergunte-se a qualquer trabalhador se prefere um pequeno aumento nos preços ou desemprego. Certamente, o mesmo escolherá a primeira opção.

Boito Jr.: Há mais coisas entre a luta de ideias do que sonham os jornalões | PapoCatarina

[…] Boito Jr.: Há mais coisas entre a luta de ideias do que sonham os jornalões 03/04/2013 10:43:39Enviado por PapoCatarina TweetPublicado por: Viomundo […]

MBC

Ecossocialismo nessa turma!

Laura

Eu sempre achei e disse isso. O Governo Dilma é neodesenvolvimentista e representa a burguesia que tem capital produtivo contra o capital financeiro. Não muito mais que isso. Tem dinheiro para desonerações a torto e a direito.Para aumento do trabalho não tem. Basta ver na universidade e agora no aumento das bolsas de Pós-Graduação.Nunca tem dinheiro(para desonerações aos montes tem), aumenta, pouco. Nosso aumento de março(federais) já é perda da inflação. Não é bom para nós não.Gostaria de ver uma alternativa melhor para o Brasil. Não tem. Temos que lutar sózinhos.

jaime

Em uma apertada síntese, como gostam os da área jurídica, estamos entre a cruz e a caldeirinha.

FrancoAtirador

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A principal diferença entre ‘monetarismo’ e ‘neodesenvolvimentismo’

é que no modelo monetarista neoliberal o Capital não esconde que explora o Trabalho

e no modelo neodesenvolvimentista o Capital finge que não explora o Trabalho.
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Em ambos, tâmo fú e mal pá…
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