
A China aposta no Pós-capitalismo
Termina sessão anual do Congresso Nacional do Povo. Diante da guerra comercial de Trump e de seus impasses internos, país amplia investimento público. Não quer “ajuste fiscal”. Prefere melhorar condições de vida, elevar salários e consumo interno e tornar-se líder tecnológico global
Por Antonio Martins*, no Outras Palavras
No plano estético, a reunião do Congresso Nacional do Povo chinês, em Pequim, é o extremo oposto aos macho-shows estrelados pelo governo Trump. Ninguém faz saudação nazista, empina motosserra ou humilha aliados em público.
Os 2.997 delegados parecem ver-se como parte de um coletivo em que não cabem manifestações egoicas. Reúnem-se ao longo de dez dias, no Grande Salão do Povo ou em sessões temáticas.
Tomam notas dos informes que recebem – e que precisarão transmitir e debater, em suas regiões.
Sorriem, vestidos em trajes típicos, para fotos singelas na Praça da Paz Celestial. Mas o contraste simbólico entre os dois países é pequeno, se comparado ao político.
Em Washington, produz-se uma tentativa radical de redução do Estado e do Público. Dois milhões de servidores são incluídos em programas de demissão “voluntária”.
Liquidam-se agências como a USAID (Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional).
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Fala-se em fechar o ministério (“departamento”) de Educação.
Esvaziam-se centros de pesquisa como os Institutos Nacionais de Saúde, núcleos de excelência onde se desenvolveram as vacinas contra a covid.
Acredita-se na ideologia do empreendimento privado.
A China acaba de ampliar a aposta no caminho oposto.
O Congresso Nacional do Povo (CNP), cuja sessão anual de dez dias foi encerrada nesta terça-feira (11/3), reafirmou a ênfase nos serviços públicos avançados (Saúde e Educação em especial) como base de uma nova etapa do desenvolvimento urbano.
Manteve o investimento gigantesco em transição energética, cidades ecológicas e obras de infraestrutura como metrôs e trens de alta velocidade.
Autorizou as províncias e municípios (“condados”) a enfrentar a crise imobiliária emitindo bônus e comprando ou construindo apartamentos – para em seguida vendê-los em condições favoráveis à população.
Elevou os salários dos servidores públicos. Aprovou estímulos ao consumo popular, entre eles subsídios à troca de aparelhos domésticos obsoletos.
Ampliou ainda mais os recursos destinados a pesquisa tecnológica de ponta.

Congresso Nacional do Povo de 2025. Foto: Xinhua/Gao Jie
As decisões chinesas buscam enfrentar problemas reais, derivados tanto do novo cenário internacional pós-Trump quanto dos desajustes provocados por anos de crescimento econômico vertiginoso.
A sessão do CNP que acaba de terminar coincide com o último ano do 14º Plano Quinquenal e do Plano Made in China 2025, iniciado há uma década. Nesse período, o PIB chinês ultrapassou o norte-americano – quando considerado o poder de compra real das moedas (veja gráfico abaixo).
O país apostou em alta tecnologia e no que chama de “novas forças produtivas”. Dominou setores como a produção de painéis solares, veículos elétricos e destacou-se em áreas como inteligência artificial e biotecnologia.
Porém, para responder a uma urbanização intensíssima, a China viveu uma febre imobiliária. Entre 2020-21, o país produziu mais cimento que os Estados Unidos em todo o século passado.
A economia havia se aberto, desde os anos 1970, aos capitais privados – e o Estado apostou neles para atender à demanda por novos imóveis. Foi um grave erro, considera o economista marxista Michael Roberts.
Os incorporadores privados seguiram as lógicas de mercado e o esquema de pirâmide. Para concluir e entregar apartamentos já vendidos era preciso vender outros, ainda na planta. Por volta de 2020, a bolha estourou, com a quebra de uma grande empresa, a Everglande, e reações em dominó.
O problema ainda não foi sanado e produziu tremores secundários. O valor dos imóveis caiu, reduzindo o patrimônio das famílias e levando-as a poupar demais.
Além disso, parte das unidades vendidas ainda não foi entregue, o que amplia a desconfiança e leva a população a consumir menos do que poderia.
A poderosa indústria da China superou este impasse até agora porque seus produtos ganharam o mundo.
Em 2024, o país alcançou superávit comercial de 1 trilhão de dólares, o maior já registrado por qualquer nação, em todos os tempos.
Mas as novas tarifas impostas por Trump preocupam. Os produtos chineses, calcula a revista Economist, já pagam em média 34% de tarifas aduaneiras para entrar nos EUA.
No ano passado, a União Europeia impôs suas próprias sobretaxas. A diplomacia de Pequim tem agido para evitar ou dissuadir estas medidas. Certamente tentará tirar proveito das recentes fraturas na relação entre Trump e seus aliados europeus.
Mas a sessão recém-concluída do Congresso Nacional do Povo sugere que a China aposta acima de tudo em suas próprias forças – e na capacidade de inverter, por meio de decisões políticas, tendências desfavoráveis.
Para fazê-lo, o Estado não hesita em usar seu poder de criar dinheiro. De onde virão os recursos necessários para elevar salários, aprimorar serviços públicos, investir em novas tecnologias, adquirir imóveis do setor privado e destiná-los em massa a moradias, ampliar a vasta rede de transportes públicos urbanos e nacionais, avançar na transição energética?
O gráfico a seguir ajuda a entender.
A China não se curva ao dogma segundo o qual os Estados apenas podem gastar o que arrecadam. O país convive, há décadas, com déficits fiscais.
O CNP decidiu que, para enfrentar os novos desafios, ele subirá, este ano, de 3% para 4% do PIB – o que está expresso na barra cinza do gráfico. Mas não é só. Os bônus que as províncias e municípios foram autorizados a emitir equivalem a mais 2,5% do PIB.
E o próprio Estado central, além do orçamento, emitirá “bônus especiais” equivalentes a 250 bilhões de dólares para, entre outras ações, engrossar os fundos destinados ao desenvolvimento científico e tecnológico e recapitalizar os bancos públicos.
Ao todo, o déficit fiscal chinês ultrapassará os 8% do PIB. Não há o menor sinal de que isso “desorganize as finanças públicas” ou “alimente a inflação” (que segue abaixo de 1% ao ano).
Michael Roberts, o economista que criticou o desenvolvimento do setor imobiliário por meio de agentes privados, vê nas decisões recentes da China a prevalência de lógicas pós-capitalistas.
Diz ele, num comentário sobre a sessão recente do CNP: “Embora a China tenha um vasto setor capitalista, baseado principalmente em bens de consumo e no setor de serviços, ela conta também com um setor estatal maior que em qualquer grande economia, abrangendo as finanças e setores-chave da indústria. E com um plano nacional que orienta e dirige tanto as empresas estatais quanto as privadas sobre onde investir e o quê produzir. Qualquer queda no setor privado é compensada com mais investimentos e produção no setor estatal. As decisões não são tomadas com base nos lucros, mas nos objetivos sociais”.
O Congresso Nacional do Povo chinês é, em essência, um órgão referendador. Na China, as decisões cruciais são formuladas, debatidas e decididas pelo Partido Comunista. É ele quem apresenta as decisões que serão votadas nas sessões anuais do CNP.
Trata-se de uma tradição política totalmente distinta da brasileira e intransponível para nossa realidade.
Mas vale observar com atenção o espírito público e a capacidade de planejamento e decisão política suscitadas do sistema chinês. Pode ser inspiração saudável, em tempos tão carregados pela barbárie trumpista.
*Antonio Martins é editor de Outras Palavras.
Leia também
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Marcelo Zero: O lobo hidrófobo
Ascensão da China, reconfigurações no Sul Global e implicações para América Latina
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Comentários
Zé Maria
Excerto
A China não se curva ao dogma segundo o qual
os Estados apenas podem gastar o que arrecadam.
O país convive, há décadas, com déficits fiscais.
O CNP [“Congresso Nacional Popular da China”
= Parlamento Federal Chinês] decidiu que, para
enfrentar os novos desafios, ele [o Déficit Fiscal]
subirá, este ano, de 3% para 4% do PIB…
Mas não é só.
Os bônus que as províncias [Estados] e municípios
foram autorizados a emitir equivalem a mais 2,5%
do PIB.
E o próprio Estado Central, além do orçamento,
emitirá “bônus especiais” equivalentes a 250 bilhões
de dólares para, entre outras ações, engrossar os
fundos destinados ao desenvolvimento científico
e tecnológico e recapitalizar os bancos públicos.
Ao todo, o déficit fiscal chinês ultrapassará os 8% do PIB.
Não há o menor sinal de que isso “desorganize as
finanças públicas” ou “alimente a inflação” (que segue
abaixo de 1% ao ano).
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Zé Maria
https://convexresearch.com.br/wp-content/webp-express/webp-images/uploads/2024/10/chinnn.jpg.webp
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“Prosperidade Comum”
Antes mesmo do mundo começar a falar em “Desglobalização”,
os Chineses já se preparavam para um modelo mais fechado,
voltado para o mercado interno e para seus aliados
mais próximos.
Mudança nos Motores de Crescimento da China
China está claramente mudando seus motores
de crescimento, investindo fortemente em indústrias
de alta tecnologia, com foco na Agenda Verde.
Eles dominam mais de 80% de 14 segmentos chave
na energia de transição.
A ideia de que a China parou de crescer ou está em crise
é equivocada.
Os Chineses estão avançados nas demandas
que o ‘Ocidente’, principalmente, ainda vai enfrentar.
Não há como competir com esse nível de controle,
por exemplo, na produção de placas fotovoltaicas
e baterias.
Até em setores como inteligência artificial,
com inovações como os robotáxis, a China
está se destacando.
Isso se deve, em parte, à necessidade de aumentar rapidamente a produtividade em uma população
que está envelhecendo.
O setor industrial, com suas divisões de trabalho,
permite saltos mais rápidos em produtividade.
A China está à frente, especialmente em “Tecnologia Verde”,
com insumos já estocados para garantir essa liderança.
Esse cenário afeta também o mercado de commodities.
A época de focar apenas em minério de ferro
está ficando para trás.
Agora, é essencial olhar para commodities estratégicas
ligadas a essas indústrias de alta tecnologia, como
o cobre e a prata, que são fundamentais para essa
nova fase.
Paralelamente, ocorre uma mudança econômica
mais ampla, com a chamada “Prosperidade Comum”.
Antes mesmo de o Mundo começar a falar em
‘Desglobalização’, os Chineses já se preparavam
para um modelo mais ‘fechado’, voltado para o
mercado interno e para seus aliados mais próximos.
É como se Xi Jinping [Atual Presidente da China]
estivesse revisitando esse conceito que já foi
aplicado no passado.
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PIB dos EUA
Maior Diferença entre o GDP e a GDI dos Últimos 70 Anos
Os Estados Unidos registram a maior diferença
em décadas entre o GDP (“Gross Domestic Product”)
e a GDI (“Gross Domestic Income”), de acordo com
dados compilados por Richard Rytenband, analista-
chefe da Convex Research.
O GPD representa o próprio PIB (Produto Interno Bruto) que é divulgado amplamente pela Imprensa.
Já o GDI é a Soma dos Rendimentos do País, conhecido como “Renda Interna Bruta”, que representa o somatório dos salários, aluguéis, lucros, dividendos, juros pagos, entre outros Rendimentos de Pessoas Físicas e Jurídicas.
“Normalmente o GDP e o GDI são muito parecidos, com poucas diferenças.
Mas em alguns momentos estas métricas têm uma
divergência um pouco maior, o que é pouco comum.
E estamos vivendo justamente este momento:
a maior diferença dos últimos 70 anos do GDP
para o GDI”, afirma Rytenband.
O economista aponta que o GDI vem mostrando
a deterioração da economia norte-americana
há algum tempo, diferente do GDP. “A maior
diferença aconteceu antes desta que estamos
vivendo: em 2007 e 2008”, aponta Rytenband.
Como sabemos, logo depois teve início uma Grande
Crise Econômica nos EUA, que se espalhou pelo mundo.
Outros Sinais de Desaceleração
Os dados do GDI não são os únicos que mostram
uma deterioração da atividade econômica nos EUA.
Como mostramos recentemente, alguns importantes motores de crescimento dos Estados Unidos mostram sinais claros de desaceleração, mas não costumam aparecer nas manchetes dos jornais.
Um deles é o Capex Intentions, indicador que mostra
as intenções de investimento das empresas.
O índice atingiu seu menor nível desde o começo
de 2020, no início da pandemia de Covid-19.
Um outro motor de crescimento foi abalado:
a taxa de crescimento da produtividade do trabalhador
norte americano.
A taxa atual é a menor desde a última onda
de estagflação, nas décadas de 1970/1980.
Quando olhamos estes motores e também deixamos
de olhar no retrovisor para os indicadores atrasados,
observando os resultados de indicadores antecedentes
e de alta frequência, o cenário de desaceleração e
recessão nos EUA vai se mostrando mais claramente.
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Fonte: Convex Research
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[Da Série: “Notícias do Fracasso Neoliberal”]
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Zé Maria
GDP (Sigla, em inglês, para: “Gross Domestic Product”)
= PIB (“Produto Interno Bruto”).
Zé Maria
Rússia reage à proposta de cessar-fogo temporário
apresentada por Trump (e apoiada por Zelensky)
Apesar da aproximação amistosa com a nova Casa Branca,
o Kremlin vê a trégua de 30 dias como uma oportunidade
estratégica para a Ucrânia ser rearmada pelos EUA.
[ Reportagem: Yuri Ferreira | Revista Fórum ]
Na quinta-feira (13), a Rússia divulgou oficialmente sua posição
sobre as recentes propostas de cessar-fogo entre Ucrânia
e Estados Unidos da América (EUA).
O governo russo descartou uma trégua de 30 dias e afirmou que
deseja uma solução “pacífica e a longo prazo” para o conflito,
em vez de uma trégua temporária.
A declaração foi feita pelo assessor presidencial Yuri Ushakov, que afirmou:
“Estamos interessados em uma solução duradoura que considere os interesses de Moscou. Uma pausa apenas daria às Forças Armadas da Ucrânia tempo para se recuperarem”.
Em coletiva, a porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia,
Maria Zakharova, confirmou que Moscou analisou as propostas debatidas
e está aberta a negociações:
“Estudamos a declaração resultante do encontro, que inclui várias ideias.
Estamos prontos para discutir essas iniciativas em futuros contatos
com os EUA”.
No entanto, ela destacou que ainda não houve “nenhum pedido oficial”
sobre o tema, embora tenham sinalizado que “os diálogos podem
acontecer imediatamente”.
O posicionamento ocorre após a chegada do enviado especial do governo
de Donald Trump para o Oriente Médio, Steve Witkoff, à Rússia, com o
objetivo de discutir a resolução do conflito.
A visita se segue às conversas em Jedá, Arábia Saudita, quando Washington
e Kiev chegaram a um acordo preliminar para um cessar-fogo de 30 dias.
O encontro em Jedá que discutiu o cessar-fogo foi uma reaproximação
entre Kiev e Washington depois do embate público entre o presidente
ucraniano, Volodymyr Zelensky, e o presidente americano Donald Trump
em 28 de fevereiro deste ano.
https://revistaforum.com.br/global/2025/3/13/russia-se-pronuncia-oficialmente-sobre-cessar-fogo-de-zelensky-trump-175600.html
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Bernardo
A real função do Estado é a praticada pela China e os resultados são visíveis para todo o mundo. Estado existe para promover o bem estar e o progresso para seu povo e não para ficar à mercê do capital unicamente rentista. A China ainda vai muitos outros exemplos de como o mundo deveria ser. Aqui é difícil por conta de uma falsa democracia estilhaçada em 34 ” partidos ” , a maioria dos quais é de balcões de negócios às custas do erário A democracia na China é participativa dentro dos limites determinados pelo PC chinês e está se saindo muito bem.
marcio gaúcho
O Brasil, décadas atrás, poderia ter iniciado um processo de crescimento semelhante à China. Porém os USA e a Comunidade Europeia não deixaram. Querem o Brasil e toda a América Latina, com os seus recursos naturais, à sua disposição. Por isso, somos o quintal dos gringos, sem coragem e sem desenvolvimento!