Nicolelis: Brasil precisa de lockdown nacional; do contrário, terá muitas Manaus

Tempo de leitura: 5 min
Fotos: Reprodução de vídeo e redes sociais e Marcio James/Semcom

Brasil precisa de mais que uma vacina para evitar múltiplos colapsos como o de Manaus

Capital do Amazonas anunciou em alto e bom som para todo país: eu sou você amanhã. Sem ‘lockdown’, um grande número de municípios corre o risco de sofrer uma crise de abastecimento de insumos médicos e evoluir para uma falência funerária

Por Miguel Nicolelis, em EL PAÍS

Neste domingo, milhões de brasileiros acompanharam o passo a passo da maior decisão científica de que se tem notícia na história do Brasil, pelo menos no que tange ao potencial impacto na vida nacional num momento de crise.

Com se assistissem aos votos dados por jurados de um desfile das escolas de samba, a maioria dos nossos compatriotas foi repentinamente introduzida, sem nenhum preparo prévio, ao lingo técnico, às pompas, e a todo o processo deliberativo empregado há décadas pela Anvisa para aprovar um nova vacina ou medicamento.

Pouco entendendo o conteúdo dos votos, muitos sabiam apenas que pelo menos três dos cinco diretores da Anvisa precisariam aprovar as vacinas para que elas pudessem ser usadas em território nacional.

E assim, por horas a fio, o suspense foi mantido.

Mas no momento em que o terceiro voto decisivo foi dado para a aprovação de duas vacinas ―a chinesa Coronavac, desenvolvida pelo laboratório Sinovac, em colaboração com o Instituto Butantan de São Paulo, e a segunda criada pela Universidade Oxford e a farmacêutica AstraZeneca, licenciada no Brasil pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ―a comemoração coletiva nas redes sociais e grupos de WhatsApp atingiu níveis reservados somente àquela observada para gols de final de campeonato.

Evidentemente, toda esta comemoração se justificava plenamente.

Afinal, depois de viverem quase um ano sob o trágico impacto de uma crise sanitária, que resultou em 8,5 milhões de casos confirmados e quase 210.000 mortos, sem nem ao menos terem o conforto de contar com um governo federal que assumisse a responsabilidade em coordenar uma resposta nacional à maior crise sanitária em um século, muitos brasileiros se emocionaram com a decisão.

E em meio a esta emoção, eles manifestaram em seus comentários o desejo latente de que este tenha sido um passo decisivo para remover o Brasil do caos em que ele começou a mergulhar no dia 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de covid-19 foi oficialmente diagnosticado.

Infelizmente, como o colapso estarrecedor e sem precedentes ocorrido na cidade de Manaus ilustrou de forma explícita, o Brasil vai precisar de muito mais do que vacinas eficazes e seguras contra a covid-19 para escapar dos múltiplos colapsos, em múltiplas áreas, que se avizinham no nosso horizonte.

Por exemplo, apesar de finalmente termos o início de uma campanha de vacinação, que ainda vai sofrer com uma série de obstáculos, a maioria deles criado pela inépcia e inoperância do Ministério da Saúde, serão precisos meses para que o efeito das vacinas seja sentido em termos de uma queda significativa na transmissão do coronavírus a nível populacional.

Com todas as regiões do país sincronizadas, no que tange ao crescimento de números de casos e mortes e taxas de ocupação de leitos de UTI, o Brasil enfrenta uma segunda onda da pandemia que tem tudo para ser muito pior do que a primeira.

Eu digo isso porque, além da realização de eleições municipais que muito provavelmente foram responsáveis pela sincronização da segunda onda de covid-19, das festas de final de ano cujo efeito começa a ser sentido na forma de uma grande aceleração em casos/óbitos e taxas de ocupação de leitos hospitalares em todo país, e do surgimento de variantes do Sars-CoV-2 com maior poder de transmissão, a vasta maioria dos governantes brasileiros decidiu priorizar “a economia” de suas cidades e Estados em detrimento de medidas mais restritivas de isolamento social, como o chamado lockdown.

Mesmo sabendo que este recurso continua a ser uma das poucas armas bem sucedidas para se reduzir rapidamente a taxa de transmissão do coronavírus, como mostram inúmeros exemplos mundo afora, no Brasil o lockdown virou palavrão e foi condenado a ser carta fora do baralho do arsenal de combate à pandemia.

Como resultado desta visão totalmente equivocada, como a situação de Manaus demonstrou, o Brasil caminha para enfrentar múltiplos colapsos simultâneos.

No topo da lista, a explosão de novos casos de covid-19, que atingirá um pico nas próximas semanas, bem como a enorme demanda por cuidados hospitalares, tanto de pacientes com sequelas crônicas da infecção pelo coronavírus como de pacientes com outras patologias, poderá gerar um colapso do sistema de saúde pública, não em um punhado de cidades, mas em nível nacional.

Além da falta de leitos para internação de novos casos graves de covid-19, existe também a possibilidade concreta de que um grande número de municípios sofra um colapso de abastecimento de insumos médicos, fazendo com que a crise de fornecimento de oxigênio de Manaus se transforme numa imagem recorrente em todo o país.

Como consequência mais devastadora deste processo, várias cidades podem começar a evoluir para um colapso funerário, pela completa falta de condições de dispor dos corpos das vítimas da covid-19.

Neste sentido, na semana passada, Manaus anunciou em alto e bom som para todo Brasil: eu sou você amanhã.

A esta série de desastres na área da saúde temos ainda que somar um eventual colapso social e econômico, resultado do fim do auxilio emergencial, bem como do crescimento do desemprego no país.

Este último fator de desestabilização foi amplamente ilustrado pelo anúncio da montadora de automóveis Ford, que depois de 100 anos, anunciou o final de suas operações no Brasil, eliminando, num piscar de olhos, milhares de empregos que dificilmente serão recuperados a curto prazo.

A tudo isso o governo federal responde com a mesma paralisia e falta de qualquer iniciativa de assumir o controle das múltiplas crises que convergem a passos largos em todo o país.

Aliás, esta inércia política do governo federal confirma de forma categórica a conclusão que eu cheguei, logo no inicio desta crise, de que no Brasil “lutamos contra a pandemia e o pandemônio político”.

Por todas estas razões não podemos achar que a aprovação das vacinas pela Anvisa sinaliza o fim da pandemia.

Muito pelo contrário, a situação brasileira neste momento é gravíssima e tende a se agravar nas próximas semanas.

Para tanto, o Brasil precisa fazer como o Reino Unido fez: ouvir a ciência de verdade e abandonar decisões baseadas apenas em expedientes políticos, em detrimento das boas práticas de manejo de uma pandemia.

Como o Reino Unido, o Brasil precisa decretar um lockdown nacional imediatamente.

Precisa também criar, em caráter emergencial (o famoso, pra ontem), uma Comissão Nacional de Combate ao Coronavírus, que atue de forma independente do Ministério da Saúde, amparada pelo STF, Congresso Nacional e todos os governadores do país, para gerenciar todos os aspectos sanitários da crise da pandemia, incluindo a implementação de um Plano Nacional de Imunização e a supervisão da logística de distribuição de suprimentos médicos para todo o território nacional.

Ah, sim, eu quase ia me esquecendo.

Além de equacionar a pandemia, o Brasil precisa resolver urgentemente as causas do pandemônio político que continua a assolar o país. Para bom entendedor, meia batida de panela basta.

Miguel Nicolelis é um dos nomes com maior destaque na ciência brasileira nas últimas décadas devido ao trabalho no campo da neurologia, com pesquisas sobre a recuperação de movimentos em pacientes com deficiências motoras. Para a abertura da Copa de 2014, desenvolveu um exoesqueleto capaz de fazer um jovem paraplégico desferir o chute inicial do torneio. Incluiu recentemente à sua lista de atividades a participação no comitê científico criado pelos governadores do Nordeste para estudar a pandemia da covid-19. Twitter: @MiguelNicolelis


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Zé Maria

Servidor* em Manaus explica o que levou a cidade a uma crise que choca o mundo

A saúde do Amazonas já vem sofrendo um grande colapso devido a problemas de governos anteriores, inclusive corrupção – resultou, inclusive, em uma operação da Polícia Federal que prendeu vários envolvidos em fraude no sistema público de saúde. Mas também sofre com a grave falta de investimentos, piorando com a emenda do teto de gastos, que reduziu o que é repassado pelo governo para o estado e o município.

O Amazonas foi o primeiro estado a sofrer com a pandemia. Ela chegou aqui muito mais cedo do que no restante do Brasil, de forma forte, e o mesmo aconteceu com a segunda onda. Na primeira onda nós já tivemos problemas de falta de leitos e falta de insumos nos hospitais. Não falta de oxigênio, como agora, mas já houve problemas de falta de leitos. O número de mortes na primeira onda foi muito elevado e houve intervenções pontuais, mas não em termos de estrutura e de prevenção, em que se podia ter uma ação mais enérgica do estado, com fechamento da parte comercial, da estrutura industrial e, com isso o trânsito de pessoas na rua foi muito forte. Ainda, o incentivo do governo federal para que as pessoas fossem para a rua, não usassem máscara, não tomassem os cuidados, ajudou para que o discurso econômico se sobreposse à vida. Então Manaus, que teve um grande pico na primeira onda, não conseguiu estabelecer um fechamento das suas atividades, o que contribuiu para um grande aumento de mortes e que não parasse. Não houve a chegada dos recursos prometidos por parte do governo federal, e o que se fez foi trabalhar muito na base do improviso, na estrutura curativa e não preventiva.

As pessoas começaram a falecer em casa…

E na segunda onda é ainda mais grave. O governo tentou estabelecer o lockdown e houve uma revolta de alguns setores específicos mais voltados à ideia de que não se deve fechar a economia, não se deve parar. Isso foi em dezembro, quando foi dado o alerta de que poderia aumentar, e fechando as atividades se pretendia que se reduzisse as aglomerações. Infelizmente o resultado veio, as pessoas que aderiram àquela revolta hoje estão caladas, deputados federais. E o aumento de casos veio com o pico nessa semana, em que se tornou calamidade, primeiro pelo estrangulamento da rede pública, que chegou a 100% de sua lotação e os doentes, quando chegavam aos hospitais, eram encaminhados para retornarem às suas casas. Foi quando as pessoas começaram a morrer por falta de oxigênio. As pessoas começaram a falecer em casa e o sistema Samu, quando era chamado, já era chamado para recolher o corpo. E, nos hospitais, a demanda de profissionais, de material para atender e de leitos não foi suprida. Não houve investimento, houve muita politicagem.

O hospital de campanha foi desmontado, o empresário que dizia ter bancado a construção desmontou, sob alegação de que iria mandar para outro estado, de que a estrutura era particular. A Prefeitura disse que tinha investido na estrutura, e a população não compreendeu bem em que estágio estava essa negociação. Hoje se compreende que esse hospital de campanha foi levantado na primeira fase apenas para que um dos sócios dessa rede privada de saúde pudesse utilizar esse hospital de campanha como plataforma eleitoral. Tanto que agora, nesse segundo pico, ele não se preocupou em montar um novo hospital de campanha, como alardeava nas eleições.

…não só falta de oxigênio, mas de materiais para os profissionais de saúde, como luva e máscara

A briga se tornou muito mais política do que de preocupação com a saúde. O governador não parece ter a habilidade necessária. O governo do estado, temos que ser justos, é o que mais age no momento, apesar das falhas, que não são poucas. E tenta corrigir, só que tenta corrigir as coisas fora do tempo, quando já aconteceram. Se falta oxigênio, espera faltar pra mandar buscar. Ontem (quinta-feira, 14) foi o pico que muitos pesquisadores já divulgavam que chegaria na segunda semana de janeiro. Os hospitais lotados, os estoques de insumo – não só de oxigênio, mas de materiais para os profissionais de saúde, como luva e máscara – foram acabando. O oxigênio acabou primeiro. No hospital público que nós temos aqui, Hospital Getúlio Vargas, as pessoas estavam morrendo por asfixia por falta de oxigênio nos leitos, os técnicos, enfermeiros e médicos montando em cima dos pacientes para tentar fazer a respiração mecânica e manual. O dia 13 foi um dia em que a nossa cidade, que costumava ter 30, 40 sepultamentos, passou a ter 190, as funerárias com a capacidade lotada, pessoas morrendo nos hospitais pela falta de insumos e também morrendo em casa.

…quando chegava, a pessoa já estava morta

Eu tenho um irmão que trabalha no Samu e ele trabalhou nesse dia 13 e disse que só ele, no plantão dele, carregou nove pessoas em chamados para atender na residência e, quando chegava, a pessoa já estava morta em decorrência da asfixia. No hospital onde foi o maior pico de falta de oxigênio foram nove mortes no corredor. E a cidade parecia que ainda estava funcionando. Contando com a colaboração popular – não que o povo seja culpado, mas, de tanto incentivarem através do discurso negacionista de que não tem vírus, a economia precisa continuar, esse discurso colou muito aqui e infelizmente as pessoas estavam na rua sem os cuidados básicos. As empresas e as lojas já não tinham esse cuidado de exigir que as pessoas usassem as suas máscaras, de dizer para as pessoas fazerem a higienização com álcool… todos os cuidados preventivos já estavam sendo deixados de lado em nome desse discurso negacionista de que a economia não pode parar, de que é só uma gripe e de que ninguém vai morrer por isso. E o que a gente viu agora é uma cidade em colapso, uma rede pública de saúde – e a rede privada também – em colapso.

A gente acredita que vai baixar um pouco agora com essas medidas que foram tomadas. O governador no final do ano não teve força, mas a Justiça mandou fechar e ele, no embalo, está tomando as medidas de fechamento, de lockdown, de toque de recolher. E a gente espera que, para as próximas semanas, baixe esse índice para termos um pouco de tranquilidade.

No nosso Tribunal do Trabalho nós perdemos nove colegas, pela nossa contagem, diretamente por covid. Alguns outros, que tinham comorbidades, elas se agravaram com o covid e eles acabaram falecendo. Hoje ficamos sabendo de um colega da Justiça Federal. Nós estamos aqui, o clima é de que a gente tem que convencer a sociedade de que é necessário o isolamento, de que alguns prejuízos vão haver, mas que o maior benefício que temos que preservar neste momento é a vida.

O governo federal, sem sensibilidade, aumentou os impostos de importação de cilindros de oxigênio

Hoje estamos tendo relatos de que os cilindros de oxigênio estão chegando.

O governo federal, sem sensibilidade, aumentou os impostos de importação
de cilindros de oxigênio.

Uma semana atrás, o ministro Pazuello, quando esteve aqui, foi pedido a ele
que a vacinação no Amazonas tivesse prioridade, ele não atendeu.
Foi aquele discurso do “dia D” e da “hora H”, de que não haveria prioridade.
Ele foi avisado da falta de insumos no estado e o governo federal não tomou
nenhuma providência.

De parte da Prefeitura de Manaus, temos um novo prefeito e parece que Manaus
não tem prefeito, o discurso é negacionista.
Infelizmente, é da mesma linha do governo federal e a única coisa que faz
é o mesmo discurso que ouvimos nas outras esferas, culpar o antecessor
por não poder fazer nada.

Essa é a tragédia anunciada que estamos passando em Manaus.

*Luiz Claudio dos Santos Corrêa
Presidente do Sitraam

Deixe seu comentário

Leia também