Eliara Santana: O caso “dama do tráfico” mostra como a mídia corporativa produz desinformação

Tempo de leitura: 4 min
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Por Eliara Santana

Fotos: Lula Marques/Agência Brasil e reprodução

Por Eliara Santana*

Na semana que passou, o Brasil – esse país que não nos mata de tédio – foi sacolejado por notícias envolvendo um novo personagem político, que recebeu a alcunha de “Dama do Tráfico”.

O nome e o personagem foram apresentados pelo jornal O Estado de S. Paulo: Luciane Barbosa Farias, que foi recebida por quatro autoridades do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Segundo uma das reportagens do jornal paulista, ela “se descreve nas redes sociais como ativista de direitos humanos e estudante de direito. Documentos do Ministério Público do Amazonas (MPAM) apontam, no entanto, que ela tem uma outra função: lavar o dinheiro do Comando Vermelho”.

A reportagem e todas as outras que se seguiram revelaram que Luciane é “casada há 11 anos com o traficante Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, um dos líderes do Comando Vermelho no Amazonas”.

Ao longo das semanas, a sucessão de reportagens e artigos vaticina várias pérolas: “O crime organizado se infiltra na política”, “Caso da dama do tráfico deixa governo nu”, “Comando Vermelho no Ministério da Justiça”, “Dama do tráfico expõe audácia do crime organizado e desleixo na capital da República”.

Vamos a alguns pontos para além da apresentação dos fatos para a gente pegar o fio e entender essa retroalimentação do ecossistema de desinformação e o papel ainda muito importante da mídia tradicional na formulação de agendas para impactar o debate público.

1 Flávio Dino é um dos melhores quadros do Governo Lula 3.

Ele é super competente, pegou uma pasta difícil e desafiadora no pós-bolsonaro, se comunica muito bem com o público em geral, é um nome para disputar eleição em 2030 (considerando que Lula será candidato em 2026) ou para o STF, está agindo para sufocar financeiramente as milícias e o crime organizado. Portanto, é um alvo para o agrupamento de direita que sonha com a terceira via.

2 A teoria conspiratória que liga Lula e o PT ao Comando Vermelho não é recente e nem é ideia criativa dos ilusionários bolsonaristas.

Ela vem sendo alimentada pela mídia tradicional, como podemos ver, e fartamente disseminada, em seguida, pela mídia alinhada ao bolsonarismo. É uma narrativa forte, de peso, que envolve e interpela a opinião pública e serve para fragilizar o partido e o governo.

3 A questão da segurança pública será um tema muito importante para as eleições municipais, e a esquerda não tem sabido lidar bem com essa questão.

Flávio Dino está encontrando um caminho, inclusive um caminho narrativo, comunicativo. Observem, por exemplo, como os jornais, nas chamadas, estão explorando o tema “violência” em seus versais – isso constrói um imaginário, molda um repertório que vai dominar as conversas do bar ao açougue.

É isso o que consolida narrativas, lembrem-se da corrupção e do duto enferrujado de petróleo num fundo vermelho.

Pois bem, quando eu falo que precisamos observar o funcionamento desse ecossistema de desinformação e o comportamento de todas as instâncias envolvidas, é também a isso que me refiro.

E esse caso do Estadão ilustra muito bem. Há uma interação entre as instâncias, os elementos, e uma interação com o contexto. Há uma retroalimentação para consolidar a desinformação que não se dá somente pelo protagonismo do ambiente digital.

No caso da “dama do tráfico”, o papel da mídia tradicional corporativa, foi determinante.

O Estadão soltou o assunto, moldou o personagem e o apresentou ao público, outros veículos fisgaram, e a mídia alinhada ao bolsonarismo, como Jornal da Cidade Online, por exemplo, nadou de braçada.

Pronto, está criada a narrativa que de Dino é amigo do tráfico e que o Governo Lula apoia o tráfico e está ligado ao CV (lembram-se da história que se criou com o boné da comunidade do Alemão?).

Esse modus operandi não é novidade, ele só foi se tornando mais potente à medida que também se consolidava esse ecossistema de desinformação no Brasil, e é do jogo da disputa pelo poder. É o papel preponderante da mídia em funcionamento, e por isso precisamos entender como se dá.

E agora chegamos a alguns desdobramentos – porque, felizmente, temos uma imprensa independente que mata um leão por dia pra sobrevier, mas que consegue bagunçar a pauta da imprensa corporativa.

Graças a esse trabalho maravilhoso, descobrimos que a história da dama do tráfico não é bem a que contaram. Vamos aos acontecimentos:

1 Segundo o jornalista Leandro Demori, a direção do Estadão mandou e-mail para seus jornalistas por causa da repercussão da matéria da ‘Dama do Tráfico’ em que diz que a atribuição de crime a alguém só pode ser feita com acesso ao inquérito. Isso não ocorreu, e o Estadão prontamente acusou o ministro Flávio Dino de ligação com o CV

2 Segundo a Revista Fórum, “um dos autores do factoide criado pelo Estadão para atacar o ministro da Justiça, Flávio Dino, admitiu nas redes sociais que a alcunha de ‘dama do tráfico’ para definir Luciane Barbosa Farias, presidenta da Associação Instituto Liberdade do Amazonas, foi inventada por ele a partir da declaração de uma fonte”.

Já conhecemos a imprensa brasileira é bastante criativa para inventar alcunhas e colá-las em determinados atores políticos – não todos, obviamente (nunca vimos, por exemplo, nada que fizesse qualquer ligação com Aécio Neves, por exemplo).

3 Segundo a jornalista Cynara Menezes, “não há quaisquer registro na imprensa amazonense ou nos órgãos de investigação dando o rótulo a Luciane Barbosa Farias, que é esposa de  Clemilson dos Santos Farias, o Tio Patinhas, que seria ligado Comando Vermelho.

No entanto, Luciane já afirmou que não faz parte da facção criminosa. Ela foi escolhida pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura do Amazonas (CPTEC-AM) para participar de encontro do Ministério dos Direitos Humanos, em Brasília”.

Ou seja, a vinculação feita pelo Estadão de Flavio Dino com o CV é absurda e criminosa. Além de intencional, não sejamos tolos.

É muito importante ressaltar a intencionalidade na criação dessa narrativa – nada na história construída pelo Estadão é aleatório.

Existe já uma construção com vistas à eleição de 2024 e com vistas a desestabilizar o governo Lula 3 naquilo que ele tem de excelência.

A mídia corporativa é uma máquina de produção de informação, criação e disseminação de narrativas.

Mas é também uma máquina de produção, criação e disseminação de desinformação e se posiciona, ainda que nunca claramente, no jogo político.

Precisamos estar atentos e fortes. Sempre.

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Eliara Santana

Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e Historia da Ciência (CLE) da Unicamp, desenvolvendo pesquisa sobre ecossistema de desinformação e letramento midiático.


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Comentários

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Nicolai Bertolino

Quem compra a cocaína dos traficantes ?
É sobretudo quem tem grana.

Tem um monte de gente em cargo importante que usa. Inclusive nas redações.

Não vê essa correlação é tapar o sol com a peneira.

Tem droga que é cara.

E os que usam e frequentam os poderes da res-pública… Notícia mais pueril. Pueril.

Se fosse uma pessoa armada que chegou perto de uma autoridade. Até ia dar essa projeção.
Assunto totalmente sem a menor importância.

Quem tá interessado nisso.
Nem li essa notícia no jornal.

Coisa desimportante.

Pueril demais.

Zé Maria

Excertos

“A teoria conspiratória que liga Lula e o PT ao CV não é recente
e nem é ideia criativa dos ilusionários bolsonaristas.

Ela vem sendo alimentada pela mídia tradicional, como podemos ver,
e fartamente disseminada, em seguida, pela mídia alinhada
ao bolsonarismo.
É uma narrativa forte, de peso, que envolve e interpela a opinião pública
e serve para fragilizar o partido e o governo.”
[…]
“No entanto, Luciane já afirmou que não faz parte da facção criminosa.
Ela foi escolhida pelo Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura
do Amazonas (CPTEC-AM) para participar de encontro do Ministério dos
Direitos Humanos, em Brasília.

Ou seja, a vinculação feita pelo Estadão de Flavio Dino com o CV é absurda
e criminosa[!!!]. Além de intencional, não sejamos tolos.

É muito importante ressaltar a intencionalidade na criação dessa narrativa
– nada na história construída pelo Estadão é aleatório.

Existe já uma construção com vistas à eleição de 2024 e com vistas
a desestabilizar o governo Lula 3 naquilo que ele tem de excelência.”

Zé Maria

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Repórteres falam em coação da editora do Estadão
em reportagem contra Dino

No último sábado, 18, a Revista Fórum obteve acesso
a uma denúncia explosiva encaminhada ao Ministério
Público do Trabalho do Distrito Federal (MPT-DF)
envolvendo a editora-chefe de Política do jornal
O Estado de S. Paulo (Estadão), Andreza Matais.

Segundo a denúncia, registrada como Notícia de Fato no MPT-DF,
a jornalista é acusada de coagir repórteres recém-contratados
a produzirem uma matéria sensacionalista relacionada ao ministro
da Justiça, Flávio Dino, e a uma mulher apresentada como a
‘dama do tráfico do Amazonas’.

Os denunciantes, identificados como colaboradores [Leia-se: Jornalistas
Empregados] do Estadão, afirmam que Matais teria orientado a elaboração
de uma reportagem preconcebida com o objetivo de vincular o ministro
a essa mulher de maneira distorcida e tendenciosa.

A denúncia vai além, alegando que a jornalista [Andreza Matais ] buscava
impulsionar a candidatura do ministro Bruno Dantas, presidente do Tribunal
de Contas da União (TCU), a quem Matais se refere como “amigo pessoal”.

A estratégia teria envolvido até mesmo a utilização de uma entrevista
do ministro Gilmar Mendes, do STF, para dar peso ao suposto encontro
da ‘dama do tráfico’ com autoridades do governo.

Os denunciantes também apontam que Matais, excutiva responsável
por mais de 30 funcionários no Estadão, teria submetido os repórteres
envolvidos na fabricação da matéria a condições de trabalho degradantes
e humilhantes.

A denúncia destaca a urgência de uma investigação do Ministério Público
para apurar possíveis ilegalidades trabalhistas e violações constitucionais,
considerando não apenas a conduta da jornalista, mas também a possível
responsabilidade do Estadão por supostas violações à legislação específica
e à Constituição Federal.

https://twitter.com/oCafezinho/status/1726270599012442456

https://www.ocafezinho.com/2023/11/19/reporteres-falam-em-coacao-da-editora-do-estadao-em-reportagem-contra-dino/
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