Eliara Santana: Desinfodemia, a tragédia de um país sem máscara

Tempo de leitura: 6 min
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Por Eliara Santana

Divulgação e reprodução de vídeo

por Eliara Santana*

O Brasil de Jair já tem quase 70 mil mortos, e a curva por aqui não se achata.

Mas mesmo assim, as pessoas lotam bares e restaurantes sem qualquer proteção.

Faço essa breve introdução para dizer que o Brasil está enfrentando uma nova pandemia, quase tão grave quanto a provocada pelo novo coronavírus: a desinfodemia.

O termo não é minha invenção, foi cunhado pela Organização das Nações Unidas para a Ciência, a Educação e a Cultura (Unesco), em maio deste ano, para descrever o fenômeno de uma pandemia pela desinformação básica sobre a doença Covid-19.

O termo foi cunhado a partir da pesquisa “Disinfodemic – Deciphering Covid-19 desinformation” (algo como Desinfodemia – Decifrando a desinformação da Covid-19).

De acordo com extenso documento,

“a desinformação sobre a Covid-19 cria confusão sobre a ciência médica com impacto imediato em cada pessoa do planeta e sobre as sociedades como um todo. Ela é mais tóxica e mais mortal que a desinformação em relação a outros temas. Eis por que esse documento cunha o termo desinfodemia”.

A diretora global de pesquisa do International Center for Journalists (ICFJ) e pesquisadora sênior do Centro de Liberdade de Mídia da Universidade de Sheffield (CFOM) e Universidade de Oxford, Julie Posetti, assina a pesquisa, que foi dividida em duas partes: uma identifica os temas e formatos típicos da desinfodemia; a outra parte analisa os métodos de resposta à crise.

Os nove temas principais da pandemia de desinformação identificados relacionam-se a:

1.Origem e disseminação do novo coronavírus (várias teorias culpando diversos atores pelo surgimento da doença – segundo a pesquisa, “usando-se um rótulo como ‘vírus chinês’, em vez de terminologia neutra, infla-se a localização em um adjetivo, em um eco histórico das primeiras pandemias que deu um significado tendencioso a um substantivo);

2.Estatísticas falsas e enganosas (frequentemente ligadas à incidência da doença e a taxas de mortalidade);

3.Impactos econômicos (disseminação de falsas notícias sobre os impactos econômicos e de saúde da pandemia, “sugerindo que o isolamento social não é economicamente justificável e mesmo afirmações de que a Covid-19 está criando empregos”);

4.Desacreditação de jornalistas e de veículos de notícias confiáveis;

5. Sintomas, diagnóstico e tratamento (conteúdo inclui desinformação perigosa sobre a prevenção, o tratamento e a cura da doença);

6.Impactos na sociedade e no meio ambiente (inclui falsa informação sobre lockdowns, por exemplo);

7.Politização (segundo a pesquisa, esse item engloba informações apresentadas para negar o significado de fatos que são inconvenientes para certos atores no poder e desinformações projetadas para enganar e obter vantagem política, o que inclui equiparar a Covid-19 à gripe e fazer afirmações sem fundamento sobre a duração provável da pandemia);

8.Conteúdo impulsionado por ganho financeiro fraudulento;

9.Desinformação focada em celebridades (falsas histórias sobre personalidades que construíram a doença).

Em relação aos formatos das notícias falsas, o estudo aponta quatro específicos: narrativas emotivas e memes; sites falsos e autoridades identificadas (falsas); imagens e videos alterados, fabricados de modo fraudulento; disseminadores de desinformação e campanhas orquestradas.

Brasil: um terreno fértil

Pelo que vocês podem deduzir, o Brasil tem sido um terreno fértil para todas essas manifestações.

Ao ler o documento da Unesco, tive a impressão de que os pesquisadores se basearam fundamentalmente no nosso triste país.

Por aqui, o processo de desinformação não é recente, é serio e sistemático e extrapola a “mera” disseminação de fake news, englobando o acesso precário à informação de qualidade e avançando para um falseamento de determinados temas, sobretudo científicos.

Esse processo sistemático de desinformação precisa ser observado a partir de alguns elementos centrais, que enumero a seguir:

1.Grande disseminação de fake news e de notícias falseadas operacionalizada por diversas instâncias (públicas e privadas), como o provam sites disseminadores de conteúdo falso em relação à Covid-19;

2. Pouca pluralidade no acesso da população à informação;

3. Grupos religiosos com controle cada vez maior da mídia tradicional (o que prioriza um sistema de crenças em detrimento da ciência, por exemplo);

4. Uso expressivo de WhatsApp pela população (um grande vetor de disseminação de notícias falsas);

5. Analfabetismo funcional elevado (um expressivo número de brasileiros não é capaz de compreender as mensagens e muito menos de formar um pensamento crítico em relação a tudo o que recebe).

Em relação ao fenômeno das fake news, elas precisam ser analisadas na perspectiva de um ecossistema, como proponho a seguir, a partir de estudos desenvolvidos no Laboratório de Mídia e Mudança Social (MASClab) do Teachers College (Universidade Columbia, NY), e não somente como “notícia falsa”:

E então, nesse já complexo e delicado cenário de desinformação, temos agora, no cenário de uma pandemia descontrolada, a enorme ajuda de agentes públicos das mais altas instâncias administrativas que, baseados na prerrogativa da Terra plana e do uso de hidroxicloroquina, nos conduzem à gravíssima situação de desinfodemia.

Portanto, a pandemia de desinformação que se instaura no Brasil conta com a disseminação de notícia falsa ou falseada, com o descrédito em relação a prerrogativas científicas da OMS e com um processo de disseminação de desinformação promovido por agentes públicos, via redes sociais.

Com a pandemia de Covid-19, passamos a viver um cenário de tenebroso realismo mágico, uma Macondo pandêmica que se cristaliza num contexto social açodado pelo estresse de uma situação nacional e mundial inédita – com terraplanistas pregando o uso de cloroquina, negando as mais aprofundadas e recentes pesquisas e receitando vermífugos.

Num momento de pandemia avassaladora, em que se faz necessária uma ação conjunta para convencer a população de que o isolamento social é essencial e que não há cura milagrosa para a Covid-19, a adesão de agentes públicos a falsos preceitos e a contradição de falas, quando não o exemplo ruim (presidente que anda por aí sem máscara) provoca não apenas confusão, estresse e pânico, mas, sobretudo, molda a percepção da população em geral em relação ao problema, minimizando as graves consequências da disseminação dessa doença, bem como as atitudes, levando a comportamentos de desconsideração ou não respeito a recomendações médicas e científicas.

Vou trazer aqui três exemplos pra discussão, dois posts e um artigo, que dialogam entre si.

Os dois posts são os que seguem:

Figura 1                                                                         Figura 2

:

O artigo é do médico infectologista Carlos Starling, que é diretor da Sociedade Mineira de Infectologia, publicado no dia 04/07 no jornal Estado de Minas.

No artigo, ele fala, entre outras coisas importantes, da negativa para um amigo que solicitou a ele a receita para o medicamento Ivermectina.

O amigo em questão queria o medicamento para ele e a esposa e também para os funcionários, certamente como prevenção.

Carlos Starling obviamente negou o pedido.

A Figura 1 foi uma campanha divulgada pela Secom do governo Bolsonaro, afirmando a efetividade do uso da hidroxicloroquina baseada numa “pesquisa científica” – que foi comprovada como falsa. Devido à repercussão negativa, a Secretaria já retirou o post do ar, que foi desmentido pela Agência Aos Fatos.

A Figura 2 é um post do ex-deputado Roberto Jefferson dizendo fazer uso do tal medicamento e dando inclusive a dosagem. A Ivermectina é um vermífugo usado no combate de vários parasitas e até ácaro, cuja eficácia no combate à Covid-19 não tem qualquer comprovação.

Mais recentemente, o presidente da República vetou o uso obrigatório de máscara no comércio, em escolas e até em presídios, apesar de TODAS as recomendações da OMS e de pesquisadores e especialistas do Brasil e do mundo inteiro que mostram a grande relevância do uso de máscaras na contenção da disseminação do novo coronavírus.

Na mesma semana, vemos as cenas incivilizadas de centenas de pessoas aglomeradas nos bares e nas calçadas do Leblon, no Rio de Janeiro, após a reabertura oficial de bares e restaurantes.

Ninguém usava máscara. Ninguém mantinha distanciamento social sequer de meio metro.

No bairro Belvedere, em Belo Horizonte, de classe média alta, as pessoas se aglomeraram no domingo de sol para… fazerem exercícios.

Esses exemplos são taxativos para compreendermos por que a desinformação – sobretudo numa situação de pandemia descontrolada e tendo a atuação de agentes públicos – pode significar a diferença entre a vida e a morte.

A pandemia de desinformação não significa apenas uma grande disseminação de boatos.

Significa uma situação descontrolada em que as pessoas desconsideram e desprezam preceitos médicos e científicos e abraçam qualquer alternativa.

E se reflete nos números que não são apenas números: por cinco dias consecutivos, o Brasil manteve a triste cifra de mais de mil mortes diárias, e após três meses do começo da quarentena, não conseguimos achatar a curva, que está ascendente.

Mesmo assim, há pessoas que ignoram e vão para as igrejas, as praias, os shoppings, os bares… e que compram vermífugo para combater a doença.

*Eliara Santana é jornalista e doutoranda em Estudos Linguísticos pela PUC Minas/Capes.

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Eliara Santana

Eliara Santana é jornalista e doutora em Linguística e Língua Portuguesa e pesquisadora associada do Centro de Lógica, Epistemologia e Historia da Ciência (CLE) da Unicamp, desenvolvendo pesquisa sobre ecossistema de desinformação e letramento midiático.


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Comentários

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Zé Maria

“O Fim Não é o Limite”

Por Jorge Alberto Souto Maior

Como explícito no filme de Sérgio Bianchi, “Cronicamente inviável” (*),
no Brasil não tem bastado às classes dominantes superexplorar,
elas também precisam experimentar o gozo de humilhar
a classe trabalhadora.

​É somente dessa forma que se pode entender a atitude do Sr. Paulo Guedes, Ministro da Economia, que, mesmo diante do enorme sofrimento dos trabalhadores e trabalhadoras, aumentado ainda mais no período da pandemia, veio a público para anunciar a intenção do governo de criar a “Nova Carteira Verde e Amarelo”, que traria a previsão de uma contratação por hora, sem qualquer encargo trabalhista, inclusive Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e contribuição previdenciária.

Mas nem lhe bastou o prazer de anunciar mais uma redução de direitos sociais
em meio ao sofrimento alheio, ainda lhe sobrou sentimento para espezinhar
trabalhadores e trabalhadoras, dizendo que a tal “Nova Carteira Verde e Amarelo”
traria aos trabalhadores o benefício de poderem prestar serviços a vários
“empregadores” ao mesmo tempo e que essa forma de trabalho seria uma
“ponte” de transição para entre “a assistência social do governo e os contratos
regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)”, ou, dito de outro modo,
uma “espécie de ‘rampa’ para o trabalhador informal subir e entrar no mercado
formal de trabalho”.

*(https://youtu.be/bO8x1xXkHto)

Íntegra em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/o-fim-nao-e-o-limite

Detalhe:

A Presidente do TST fez uma Propaganda Gratuita pro Guedes na GloboNews.
Tratou a Precarização do Trabalho e dos Direitos Trabalhistas como Revolução 4.0
Nem Ives Gandra Martins Opus Dei Fº faria uma Defesa do Bolsonaro como essa.

Uma Vergonha para a Justiça do Trabalho!

https://g1.globo.com/globonews/jornal-das-dez/video/cristina-peduzzi-presidente-do-tst-fala-sobre-as-relacoes-de-trabalho-no-pos-pandemia-8678699.ghtml

Henrique Martins

A única coisa que poderia sensibilizar um pouco Bolsonaro seria um dos filhos dele contrair a doença e morrer. Só isso.
A morte de mais de 63 milhões de brasileiros não o comoveu em momento algum. Somente o seu mandato e os interesses do clã o interessam. Nada mais. Podem estar certos disso.

Eduardo

Um homem pequeno como Bolsonaro jamais teria a dignidade de assumir que estava errado.

Bem diferente do primeiro ministro britânico né.

Elaine

Um dos ministros que estiveram na última reunião com Bolsonaro disse que tudo levar a crer que o presidente tem um quadro de virose.
Pode parar!
Virose não leva ninguém prá UTI nao!
Desta vez vocês não vão conseguir enganar a população. Ele já teve a doença uma vez e a reativação ou reinfecção pelo vírus virá mais forte o que aconteceu com o médico Leandro Tanaka, de Parintins, no Amazonas.
Imaginem o que vai ser de vocês se ele vier a parar numa UTI depois de terem mentido pra população.

Portanto, podem parar já.
Não somos otários e nem acreditamos que a Terra é plana não viu ministro.

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