Júlio Moreira: Palestina — universidades e escolas destruídas, 6.250 estudantes mortos e 10.300 feridos

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Em Bordeaux, na França, professores e alunos reuniram-se em apoio ao povo palestino. Na manifestação havia uma sala de aula vazia, simbolizando os estudantes de Gaza privados do direito à educação durante os 7 meses do atual massacre e os mortos pelo exército de Israel e que nunca mais regressarão à escola. Fotos: @PalestineMoE

Palestina – Universidades e escolas destruídas

Devemos lutar para que pesquisadores da Ucrânia e Palestina não sejam tratados com dois pesos e duas medidas

Por Júlio da Silveira Moreira*, em A Terra é Redonda

1.

Este texto está sendo escrito enquanto dezenas de tradicionais universidades nos Estados Unidos estão ocupadas por acampamentos de estudantes demandando o fim do genocídio palestino, rupturas de contratos universitários com empresas que apoiam e sustentam o genocídio e a liberdade de milhares de manifestantes presos.

Enquanto, nessas metrópoles do império mundial, os manifestantes nos campi estão sofrendo medidas policiais e administrativas, bombas de gás e prisões generalizadas, em Gaza quase todas as escolas e todas as universidades foram destruídas logo nos primeiros meses dos ataques israelenses a partir de outubro de 2023.

Um movimento histórico e fundamental está acontecendo nos Estados Unidos, com potencial de transformar a educação universitária e até de interferir no cenário da guerra imperialista no Oriente Médio.

Quando estudantes ocupam o campus e desafiam suas carreiras universitárias por motivos de solidariedade internacional, cabe refletir qual é o papel das universidades e instituições educativas em outros países, como o Brasil.

2.

Ainda em janeiro de 2024, o Ministério da Educação da Palestina dava conta que 280 escolas governamentais e 65 escolas administradas pela Agência da ONU para Refugiados Palestinos (UNRWA) já haviam sido destruídas ou danificadas pelo assalto israelense.

Várias delas (como Al Fakhoura, Al-Buraq e Shadia Abu Ghazzala) foram atacadas enquanto serviam de abrigo para pessoas que já tinham perdido suas casas.

A continuidade pedagógica está gravemente comprometida, não apenas pela destruição física, mas pela dispersão forçada de alunos e professores. Todas as universidades de Gaza foram destruídas. Apenas para ilustrar, a Universidade Al-Israa foi literalmente implodida com 315 minas, no dia 17 de janeiro de 2024 (Al Jazeera, 2024).

Figuras acadêmicas, científicas e intelectuais e suas famílias haviam sido alvos de ataques em suas casas sem aviso prévio. Os alvos incluíam até janeiro 17 indivíduos que possuíam graus de professor, 59 que possuíam doutorados e 18 que possuíam mestrados (EMHRM, 2024).

Fundada em 2014, a Universidade Al-Israa consolidou-se em poucos anos como uma das mais importantes da Palestina. O ataque de Israel destruiu os espaços administrativos, os blocos das salas de aula, os laboratórios de medicina, engenharia e enfermagem, o hospital universitário e o museu da instituição. A imagem à esquerda mostra o imponente edifício da universidade segundos antes de ser bombardeado e virar pó, em 17 de janeiro de 2024. Fotos: Reprodução de vídeo

Universidade Al-Azhar antes e depois da agressão israelense em curso na Faixa de Gaza (WRP, 2024)

Até 17 de abril, o Ministério da Educação Palestino (v. gráfico abaixo) contou 6.237 estudantes mortos e outros 10.300 outros feridos, bem como 296 professores e servidores administrativos mortos e 973 feridos.

Isso apenas na Faixa de Gaza, sem contar os estudantes, docentes e servidores mortos, feridos ou presos no mesmo período, na Cisjordânia ocupada. Esses números tampouco revelam a quantidade exponencial de crianças, jovens e adultos privados do direito à educação pela interrupção das atividades escolares e universitárias: 620 mil só em Gaza.

Violações contra a educação na Palestina, entre 7 de outubro de 2023 e 16 de abril de 2024 (PMoE, 2024)

A perda de tais instituições resulta não apenas na interrupção imediata da educação, mas também no prolongamento do trauma e na dificuldade de recuperação no longo prazo.

São atos de violência epistêmica que removem a capacidade dos palestinos de sustentar e desenvolver seus próprios conhecimentos e cultura.

Para Elham Kateeb (apud Jack, 2024), decana na Universidade Al-Quds, em Jerusalém Oriental, “as universidades podem desempenhar um papel crucial na liderança dos palestinos em direção aos seus objetivos e na construção do Estado”, já que “esse compromisso está incorporado em suas missões fundamentais de educação, pesquisa e serviço comunitário”.

Assim, “as universidades palestinas têm sido historicamente pioneiras na formação da identidade nacional, na promoção da resiliência e na contribuição para o desenvolvimento da comunidade”, e isso só pode acontecer sobre um fundamento de justiça e liberdade.

Comunidades inteiras têm perdido não apenas suas escolas e universidades, mas também o acesso a um espaço crítico para a formação de identidades coletivas e individuais, o desenvolvimento de habilidades e a transmissão de conhecimentos culturais.

A educação é um ato de resistência e reafirmação da humanidade contra as forças de opressão. A destruição de tais instituições é, portanto, um ataque direto à própria essência da identidade e da resistência palestinas.

3.

O relatório preliminar da organização Bibliotecários e Arquivistas com a Palestina (LAP, 2024), documentou extensivos danos a patrimônios culturais em Gaza devido a ações militares israelenses, entre outubro de 2023 e janeiro de 2024.

Dentre as perdas, destacam-se a destruição total dos Arquivos Centrais da Cidade de Gaza e da Biblioteca e Mesquita Omari, incluindo coleções raras de livros. A Biblioteca Diana Tamari Sabbagh e a Biblioteca da Universidade Islâmica de Gaza também foram completamente destruídas.

O relatório menciona ainda a destruição da Biblioteca e Museu Nacional da Universidade Al-Israa, que continha mais de 3.000 artefatos arqueológicos.

Além dos prejuízos materiais, vários bibliotecários e arquivistas perderam suas vidas, sublinhando o alto custo humano e cultural dos conflitos. Estes dados são representativos de apenas uma fração do total de danos, devido às dificuldades em documentar completamente a situação durante o conflito.

Os recursos educacionais, históricos, culturais e religiosos na Faixa de Gaza vêm sendo sistematicamente destruídos.

A destruição inclui a maioria dos edifícios públicos, centenas de marcos culturais e instalações de serviços, bem como o extermínio de pessoas com elevadas capacidades intelectuais e especializações, incluindo médicos, acadêmicos, e especialistas em tecnologia, programação e engenharia de computação, bem como as sedes de suas empresas.

A destruição deliberada de patrimônio cultural é reconhecida no Direito Internacional como um crime de guerra, com vários precedentes no Tribunal Penal Internacional (Moreira, 2023; Cuno. Weiss, 2022), buscando a responsabilização pelo ataque generalizado a bens culturais essenciais para a identidade e a história dos povos.

A Convenção de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977 proíbem explicitamente danos intencionais ao patrimônio cultural por forças invasoras ou ocupantes, incluindo saques e o uso de patrimônio em ações militares.

Esses tratados também protegem o patrimônio cultural de ataques e represálias, considerando-os alvos civis e não militares. Além disso, protocolos adicionais, como o de 1980, proíbem e sancionam o uso de minas e outros dispositivos em locais culturais importantes.

Não se trata apenas de eliminar indivíduos, mas também destruir a infraestrutura cultural, educacional e tecnológica que sustenta essa sociedade, atacando sua autonomia intelectual e cultural e tentando romper os laços históricos entre o povo e sua terra.

Uma guerra de ocupação colonial não se baseia apenas na eliminação física e dominação direta dos colonizados. Na América Latina, temos vivido isso há mais de 500 anos.

Na “Conquista” espanhola contra a civilização mexicana, o elemento fundamental foi a destruição dos códices (os pergaminhos que registravam toda a cultura, história, língua e mitos de origem do povo nativo), dos lugares de culto e das entidades espirituais.

Tenochtitlán, o nome originário da atual Cidade do México, foi literalmente soterrada, para que a cidade espanhola fosse construída por cima.

Mas o Templo Mayor dos mexicas jaz literalmente debaixo do Palácio de Governo do colonizador, e a Catedral Metropolitana da Cidade do México foi construída sobre as ruínas do principal local de adoração da deusa Tonantzin.

Não foi diferente na grande Cusco, sede da civilização Inca, onde os espanhóis mantiveram os sólidos alicerces de pedra milenares para construir os novos edifícios coloniais.

As cidades antigas que haviam sido abandonadas antes da chegada dos conquistadores, como Tikal, na atual Guatemala, ficaram intocadas, o que demonstra que os colonizadores se dirigiram para as cidades mais populosas e vivas, que representavam as bases e a reprodução da cultura originária.

Parafraseando Enrique Dussel (1993), aquilo que, para a filosofia eurocêntrica, representava um des-cobrimento, sob o olhar dos nativos se tratou de en-cobrimento, o que vem acontecendo desde as Cruzadas e as Grandes Navegações, momentos constitutivos da chamada civilização ocidental, e que tem continuidade hoje nos territórios palestinos ocupados. Esta é uma dimensão particular do genocídio: o epistemicídio.

Na dimensão atual das trocas de informações, em que a ciência é tratada como “narrativa” e os meios de comunicação contam uma história única, seguindo à risca as determinações editoriais dos centros do capital midiático, onde abundam qualificações seletivas de “terroristas” e os agentes do império até hoje se apresentam como xerifes para “organizar” as casas que eles mesmos vêm destruindo, o risco do epistemicídio é ainda maior.

Naquela ideia de que a história contada é sempre a história dos vencedores, a destruição das instituições educativas palestinas visa eliminar as possibilidades de desmascaramento atual e futuro da História, a eliminar as provas e até a consciência do genocídio.

4.

O Estado brasileiro tem se manifestado de maneira resoluta e solidária nas instituições internacionais, contra o genocídio e em defesa do Estado palestino, além de medidas concretas como os voos de repatriados e seus familiares.

Há muitas outras medidas concretas que podem ser praticadas, tendo em vista, sobretudo, que a cooperação entre os povos é um dos princípios da sua política internacional (art. 4º da Constituição Federal).

Ações de cooperação nas áreas de Educação, Ciência e Tecnologia podem dar respostas eficazes ao epistemicídio e à destruição das escolas e universidades palestinas.

Um exemplo desses tipos de ações é o Programa de Acolhida a Cientistas Ucranianas, da Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Estado do Paraná.

A vinda de pesquisadoras de alto nível, deslocados da guerra naquele país, para universidades paranaenses, tem sido percebida como uma oportunidade ímpar para reconstruírem suas vidas com suas famílias em solo brasileiro.

As universidades e a sociedade que os recebem só têm a ganhar. Devemos lutar para que pesquisadores da Ucrânia e Palestina não sejam tratados com dois pesos e duas medidas.

*Júlio da Silveira Moreira é professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).

Referências

AL JAZEERA. How Israel has destroyed Gaza’s schools and universities. 24 jan. 2024. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2024/1/24/how-israel-has-destroyed-gazas-schools-and-universities.

CUNO, James; WEISS, Thomas G. (ed.). Cultural Heritage and Mass Atrocities. Los Angeles: Getty Publications, 2022. Disponível em: https://www.getty.edu/publications/cultural-heritage-massatrocities.

DUSSEL, Enrique. 1492: o encobrimento do outro: a origem do mito da modernidade: Conferências de Frankfurt. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993.

EURO-MED HUMAN RIGHTS MONITOR (EMHRM). Israel kills dozens of academics, destroys every university in the Gaza Strip. 20 jan. 2024. Disponível em: https://euromedmonitor.org/en/article/6108/Israel-kills-dozens-of-academics,-destroys-every-university-in-the-Gaza-Strip.

EURO-MED HUMAN RIGHTS MONITOR (EMHRM). Israel’s demolition of educational institutions, cultural objects in Gaza is additional manifestation of genocide. 16 fev. 2024. Disponível em: https://euromedmonitor.org/en/article/6163/Israel%E2%80%99s-demolition-of-educational-institutions,-cultural-objects-in-Gaza-is-additional-manifestation-of-genocide.

JACK, Patrick. Academia in Gaza ‘has been destroyed’ by Israeli ‘educide’. Times Higher Education, 29 jan. 2024. Disponível em: https://www.timeshighereducation.com.

LIBRARIANS AND ARCHIVISTS WITH PALESTINE (LAP). Israeli Damage to Archives, Libraries, and Museums in Gaza, October 2023–January 2024: A Preliminary Report from Librarians and Archivists with Palestine. Disponível em: https://librarianswithpalestine.org/gaza-report-2024/.

MOREIRA, Julio da Silveira. Pela Palestina: textos selecionados sobre Direito Internacional. Prefácio de Camilo Pérez-Bustillo. Toledo, PR: Instituto Quero Saber, 2023. Disponível em: https://www.institutoquerosaber.org/editora72.

PALESTINIAN MINISTRY OF EDUCATION (PMoE). Violations against education in Palestine, October 7, 2023 to April 16, 2024. Disponível em: https://twitter.com/PalestineMoE.

WORKERS REVOLUTIONARY PARTY (WRP). Annihilation of Gaza Education: Israel is systematically erasing the entire education system!. The News Line, 15 mar. 2024. Disponível em: https://wrp.org.uk/features/annihilation-of-gaza-education-israel-is-systematically-erasing-the-entire-education-system/.

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