Foto Jane Amorim
A guerra suja contra o vandalismo
Por Matheus Boni Bittencourt 12/09/2013 às 01:25, no Centro de Mídia Independente
Em nosso país existe uma insistente mitologia segundo a qual temos origem numa forma de colonialismo brando e aventureiro, próprio do português, o que nos diferenciaria de todos os outros países de origem colonial, e até mesmo dos nossos vizinhos latino-americanos, de colonização espanhola.
Digo que é uma mitologia porque é uma narrativa que busca explicar, de forma conciliadora, determinados traços de um caráter nacional que atribuímos a nós mesmos.
Essa identidade está centrada numa imagem de sociedade harmoniosa, ordeira e pacífica, onde cada um sabe qual é o seu devido lugar. O que destoa, conflita, dissente é considerado uma anomalia. Um inimigo interno ou externo. Essa imagem não deixa de ser ambígua, porque também evoca submissão e conformismo. O brasileiro seria, antes que pacífico, passivo.
Essa mitologia não se sustenta diante de um exame mais detido. Como um Estado fundado por uma permanente invasão, ocupação e expansão territorial poderia ser pacífico em sua origem?
Como uma sociedade que se construiu sobre a escravidão negra e indígena poderia ser harmoniosa?
Estas perguntas nos levam a suspeitar que o Estado brasileiro não foi criado sob o signo da paz, mas sob a bandeira de uma guerra permanente e prioritariamente interna.
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Essa suspeita é reforçada por um conjunto de situações extremas que se tornaram cotidianas e banais: extremos de pobreza e riqueza; extrema desigualdade; extrema violência. Nosso país tem uma proporção alarmante de mortes violentas por acidentes e agressões. De fato, é como se estivéssemos em situação análoga à guerra civil, pelos seus efeitos sobre a demografia e economia.
Uma coisa que me chamou a atenção nos últimos meses foi a intensificação do discurso midiático-político contra as ações de desobediência civil e resistência à violência policial, alcunhadas de “vandalismo” e “baderna”.
Esse discurso assume características de uma declaração de guerra.
Nos meus estudos sobre as políticas de segurança, constatei que o discurso belicista é lugar-comum quando se fala da questão policial no Brasil. O que é preocupante é a intensificação tamanha nos últimos meses. Esse grau de belicismo, durante os últimos vinte anos, só teve dois alvos: o tráfico varejista de drogas e os movimentos camponeses.
As manifestações de massas dos últimos meses foram comparados a batalhas. Estranhas batalhas, onde apenas um lado tinha as armas e a iniciativa de agressão, e o outro resistia e fugia como podia.
É realmente uma guerra, ou deveríamos dar-lhe o nome que merece: repressão violenta?
Em nome de coisas vagas e subjetivas como “ordem pública”, foi constantemente violado a liberdade de expressão, associação e manifestação, o devido processo legal e a presunção de inocência.
Milhares e milhares foram arbitrariamente presos ou feridos pelos agentes de polícia que reprimiam manifestações. Um número menor foi assassinado. Houve casos de sequestro e tortura de ativistas. Outros são investigados e presos por apoiarem protestos através de páginas na internet. Movimentos sociais são submetidos à espionagem militar. Agentes provocadores se infiltraram em protestos para incitar e realizar atos criminosos, que depois eram atribuídos aos manifestantes, para justificar a brutalidade policial.
Toda essa violência estatal foi cometida em nome do “combate à violência”. As ações coletivas de desobediência civil e resistência à violência policial são rotuladas de “vandalismo” e “baderna”. A ação da Polícia Militar contra manifestações, frequentemente resultando em dezenas de prisões e ferimentos, é chamada de “confronto”.
Uma reação particularmente histérica se deu contra os bloco negro, chamados por aqui pelo nome em inglês, “Black Blocs”. Trata-se de uma tática de ação coletiva, onde manifestantes vestidos de preto e mascarados agrupam-se para defender a si mesmos e aos outros manifestantes da violência policial. Outra versão da prática do bloco negro é a desobediência civil, como na destruição seletiva de símbolos do capitalismo e do autoritarismo. As duas táticas se fizeram presentes nas ruas.
O bloco negro deve ser considerado um sintoma, não uma coisa em si, independente do contexto. O uso de máscaras, a desobediência civil, a resistência à repressão violenta, tudo isso não é exatamente novo. Talvez o que distinga o bloco negro seja uma combinação performática destes três elementos com uma estática peculiar. É sintoma de quê o estilo bloco negro de protestar? Da própria violação da liberdade política.
Outro elemento importante foi o conteúdo anticapitalista assumido de forma mais explícita por manifestações. “Contra o capital, a nossa luta é internacional”, bradava um bloco negro enquanto destruía vidraças e pichava paredes de agências bancárias dos maiores bancos privados do Brasil. Centenas de manifestantes, sem máscara, cantavam junto deles as palavras de ordem. Essas cenas aconteceram no Rio de Janeiro e São Paulo.
Com e sem máscaras, vestidos e não de preto, multidões reivindicavam a regulamentação da mídia, o marco civil da internet, a desmilitarização da polícia, reforma política, etc.
Como se muitos manifestantes suspeitassem que o protesto contra a corrupção, principal alvo inicialmente, era como curar os sintomas e ignorar a doença. Seria um “movimento aspirina”, como os caras-pintadas de 1992. E como se muitos suspeitassem que não fazia sentido repudiar o “vandalismo”, em um país sob policiamento militarizado.
A hostilidade aos partidos eleitorais cedeu lugar à hostilidade aos oligopólios bancários e midiáticos. O repúdio ao “vandalismo” cedeu lugar ao repúdio à violência policial e à criminalização dos movimentos sociais.
É claro que tudo isso acendeu o sinal vermelho das oligarquias políticas e financeiras. Surpreendentemente, também atraiu o repúdio de partidos autodeclarados de esquerda, como o PSTU e setores do PSOL.
Estes setores militantes mostraram uma surpreendente conivência com a violência policial, evidenciada pela frase: “sou contrário à brutalidade da polícia, mas…”. O “mas” é seguido de alegações de que os blocos negros “provocavam” a violência policial e esvaziavam as ruas. Esse discurso era esperado na mídia e políticos de extrema-direita (que de fato o proferiram e publicaram), mas não em partidos e indivíduos que se declaram de esquerda.
Trata-se de uma completa falta de lucidez. Os blocos negros são reação à violência policial, e não o contrário. Os tipos de ação coletiva se diversificaram e descentralizaram, assumindo muitas vezes a desobediência civil como método. Ao lado dos tradicionais passeios pela rua, ocupações de casas legislativas e ações performáticas ganharam espaço.
Muitas pessoas de mentalidade conservadora abandonaram as manifestações e voltaram ao seu habitual coro com o discurso de “guerra ao vandalismo” da direita e da pseudo-esquerda. E não poderíamos deixar de lado a intensificação da repressão violenta, protagonizada pela corporação policial-militar mas contando com a colaboração desavergonhada de juízes, promotores, parlamentares, polícia judiciária, serviço secreto e, é claro, dos oligopólios da mídia.
O que fica mais óbvio é que não se trata simplesmente de uma repressão às depredações politicamente motivadas. Essa simples tarefa poderia ser realizada em maiores dificuldades por uma polícia competente e civilizada, com foco na prevenção e respeito aos cidadãos. A criminalização na verdade atinge o conteúdo político-filosófico, o próprio anticapitalismo cada vez mais forte das manifestações, propondo a radicalização da democracia e uma verdadeira redistribuição de riquezas. Além da pobreza e da juventude, criminaliza-se uma visão política específica. Com e sem máscaras, vestidos e não de preto, multidões sofrem perseguição e violência.
Esses fatos deixam mais explícitas as condições de uma “democracia de fachada” existente no Brasil. A transição da Junta Militar para os Governos Eleitos trouxe uma série da avanços no reconhecimento formal de direitos, muito mais que na sua efetivação.
Convivemos com uma pesada e maldita herança do período ditatorial. O policiamento foi militarizado. As desigualdades econômicas aprofundarem-se. A violência e a corrupção se expandiram. Os agentes da repressão política do antigo regime seguem impunes e seus atuais simpatizantes dentro das forças militares e judiciário bloqueiam e sabotam as investigações sobre os seus crime.
Os “filhotes da ditadura”, empresários e políticos ligados ao antigo regime ditatorial, seguem enriquecendo e influindo decisivamente sobre a política local e nacional.
Vivemos sob um regime democrático? É difícil dizer. A impressão é que a ditadura nunca deixou de existir nas favelas e rincões do país, fatos evidenciados pelos dados disponíveis sobre a violência policial. Mas que essa ditadura, que focava sua violência sobre os pobres, vai se expandindo novamente sobre outros setores da população, com o âmbito de liberdade de expressão, associação e manifestação tornando-se cada vez mais estreito.
É como se, ao pressionar a democracia para que se tornasse mais democráticas, víssemos a fachada do edifício ruir e revelar a carranca sinistra de uma ditadura que viola dos direitos básicos dos cidadãos. Até que ponto isto chegará?
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