Sonhar, resistir, construir: Os sentidos da soberania latino-americana
Tempo de leitura: 3 min
Mesa Catalina Eibenschutz reúne vozes críticas da América Latina para refletir sobre descolonização, desenvolvimento e alternativas ao modelo hegemônico
Por Fernanda Regina da Cunha, no Cebes
No quarto dia do XVIII Congresso da Associação Latino-Americana de Medicina Social e Saúde Coletiva (ALAMES), realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), o Grande Debate Catalina Eibenschutz foi espaço de reflexões profundas e provocadoras sobre os caminhos da soberania e da descolonização na América Latina.
Com mediação da médica e socióloga Asa Cristina Laurell, a mesa reuniu o filósofo boliviano Rafael Bautista, a militante internacionalista Stephanie Weatherbee Brito, da Assembleia Internacional dos Povos (AIP), e o vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Reinaldo Guimarães.
A diversidade de trajetórias e perspectivas deu força a um debate pulsante, que transitou entre filosofia crítica, experiências populares e políticas públicas em curso — reafirmando a urgência de pensar alternativas concretas frente às crises civilizatórias que marcam o presente.
Descolonizar também é reinventar o pensamento
Rafael Bautista abriu a mesa com uma crítica contundente ao uso acrítico de conceitos herdados da modernidade ocidental. Para ele, não é possível propor emancipação com as mesmas ferramentas teóricas que sustentam o sistema moderno-colonial. A descolonização, nesse sentido, deve ser mais que um objetivo: deve ser o método.
Com base na experiência boliviana do Estado Plurinacional, Bautista defendeu uma soberania que não se limite ao aparato institucional, mas que se enraíze nas lutas dos povos historicamente oprimidos. “A soberania está no povo que alcança a autoconsciência de que suas lutas presentes são também as lutas do passado”.
Ele também enfatizou que o viver bem, inspirado nos povos originários, permanece como um horizonte civilizatório potente, não como retorno ao passado, mas como abertura a formas de vida não capturadas pela lógica do capital.
A crise do império e a chance de reconfiguração
Stephanie Weatherbee Brito trouxe à discussão a leitura da Assembleia Internacional dos Povos sobre a crise do imperialismo estadunidense e as disputas geopolíticas em curso. A ascensão de Donald Trump e a fragmentação da ordem global indicariam, segundo ela, uma oportunidade histórica para os países do Sul reivindicarem soberania real.
“Essa nova ordem só terá algo de novo se garantir soberania para os povos historicamente mutilados”, destacou. Ao apontar os 80 anos do bombardeio de Hiroshima como símbolo da violência fundante do imperialismo, Stephanie reforçou que qualquer reconfiguração que mantenha estruturas de dominação não é de fato nova.
Apoie o VIOMUNDO
Ela enfatizou ainda a emergência da China, o papel dos BRICS frente às sanções unilaterais e a fragilidade de projetos soberanos duradouros na América Latina. “Não basta reivindicar direitos — é preciso construir alternativas com participação ativa do povo”, concluiu.
Soberania sanitária e política industrial: o caso brasileiro
Reinaldo Guimarães levou ao debate a experiência brasileira no campo da soberania sanitária, com foco na construção do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. A política, iniciada nos anos 1990 e fortalecida nos governos Lula e Dilma, busca articular o SUS à produção nacional de insumos estratégicos, como vacinas e medicamentos.
Para ele, soberania sanitária não significa autossuficiência total, mas sim a capacidade de reduzir vulnerabilidades externas e responder com autonomia às necessidades da população. A retomada do tema pelo atual governo, por meio da Nova Indústria Brasil, aponta para uma nova janela de oportunidade.
Guimarães propôs que a Alames crie um fórum permanente sobre o tema e defendeu: “A indústria da saúde deve entrar na agenda latino-americana como estratégia de soberania regional”.
O povo como sujeito e horizonte da política
As intervenções provocaram reações intensas da plateia, especialmente sobre o sentido de “povo” e sua relação com o Estado.
Bautista reforçou que o “povo como povo” é aquele que se reconhece como protagonista de sua própria história, e não como concessão de um Estado que o exclui.
Stephanie lembrou que o poder popular não é inimigo do Estado, mas sua alma viva quando este está comprometido com os interesses populares.
Encerrando a mesa, Asa Cristina ressaltou a potência do debate e sua importância estratégica para os movimentos e governos da região:
“É uma obrigação dos governos progressistas pensar a fundo esses problemas. E nós, da Alames, devemos seguir fomentando esse tipo de discussão crítica e propositiva.”




Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!