Vargaftig: Interferon cubano em teste na China mostra que a socialização dos meios de produção leva ao progresso

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Foto: Sputnik

Uma pergunta assola o mundo: evolução ou estabilidade das espécies

por Boris Vargaftig* 

Em meu primeiro artigo desta série, descrevi a oposição entre o criacionismo, discurso religioso anticientífico sobre a natureza, e o evolucionismo, que procura explicações racionais, baseadas em observações no terreno e em experiências científicas.

Discutiremos abaixo a grande crise da genética da então União Soviética (URSS), que levou a desastres científicos, econômicos e humanos – morte na prisão da maior autoridade do país em genética de plantas.

Para dar contexto, peço licença para apresentar um pequeno histórico.

Ao estudar a hibridação das ervilhas, o monge Gregório Mendel (1822-1884) criou uma nova disciplina, a genética.

Seu trabalho inicialmente não repercutiu no mundo cientifico, mas foi redescoberto no começo do século 20 por cientistas que, honestamente, reconheceram sua prioridade.

A grande fraqueza do chamado mendelismo é que faltava então o conhecimento que, na segunda metade do século 20, a biologia molecular traria, ao atribuir uma base material ao neodarwinismo.

As descobertas subsequentes à de Mendel e sucessores levantaram também importantes objeções.

Ao permitirem a localização topográfica, celular, da mensagem genética, elas fortaleciam os adeptos da separação entre a mensagem genética propriamente dita (o genótipo, localizado nos cromossomos, filamentos localizados nos núcleos celulares) e o chamado fenótipo – as características físicas dos organismos, como a cor da pele e dos olhos, as estruturas anatômicas e bioquímicas.

Ou seja, tudo o que constrói o indivíduo, da bactéria ao elefante.

A discussão conceitual, científica, transformou-se em tragédia na URSS.

Dez anos após a tomada do poder pelos bolcheviques dirigidos por Lenin e Trotsky, havia ocorrido uma deformação burocrática, com a formação e solidificação de uma casta privilegiada, com interesses separados dos da classe trabalhadora, que em princípio assumira o poder.

Ondas de repressões sucessivas levaram – como Trotsky previra – à reintrodução do capitalismo na já Russia, nos fins do século 20, por métodos que associaram a dissolução da URSS através de leis reacionárias sobre a propriedade ao terror de Estado, ao gangsterismo na transformação da propriedade coletiva, que restava de um programa socialista, à total privatização.

Assim, em 1926-1927, a oposição de esquerda é liquidada, Trotsky é desterrado na Ásia soviética, antes de seu exílio na Turquia.

É nesse contexto que surge o herói negativo desta história, o agrônomo Trofim Denissovitch Lyssenko, que mostrou que variedades de plantas invernais semeadas na primavera – técnica nomeada “vernalização” – são produtivas se previamente submetidas ao frio.

Lyssenko descreveu uma técnica para este procedimento, que na realidade era conhecido.

As fortes perdas de grãos na Ucrânia no inverno 1927-1928 e a epidemia de fome de 1932-1933 despertaram o interesse pela vernalização e Lyssenko ganhou o apoio do ministro da Agreicultura, Yakovlev.

Lyssenko e seu inspirador, Ivan Vladimirovitch Mitchurin, então considerado como refundador da agronomia soviética, praticam uma agronomia fantasista, à margem da agronomia oficial, representada então pelo geneticista e agrônomo Nikolai Ivanovitch Vavilov, presidente da Academia Lenin de Ciências Agronômicas e do Instituto de Pesquisas para a cultura de plantas, entre 1919 e 1931.

Vavilov havia organizado um programa de coleta sistemática de plantas provindas de todas regiões do mundo e
iniciado pesquisas para aperfeiçoá-las.

A partir de 1931, Lyssenko ataca Vavilov, ao afirmar que seus próprios métodos permitiriam atingir os objetivos a curto prazo, de forma bem mais satisfatória para a produção.

As duas escolas se afrontam em 1936 e 1939 em congressos científicos.

A maioria dos cientistas se cala ou tenta amortecer Lyssenko, temendo as represálias contra os “especialistas burgueses”, como passaram a serem denominados os geneticistas considerados anti-marxistas.

A repressão começa em 1936 contra alguns geneticistas, no quadro geral do terror contra os chamados “inimigos do interior”.

Um geneticista muito conhecido, Hermann Muller, futuro prêmio Nobel e simpatizante comunista que havia se instalado na
URSS para estimular sua pesquisa genética, parte do país em 1937 (após enviar carta a Stalin), enquanto Lyssenko avança e Vavilov é preso em 1940, para morrer em prisão em 1943.

Lyssenko triunfa em 1948 e passa a dirigir a agronomia e a biologia soviéticas, mas cai após a morte de Stalin em 1953, sendo definitivamente afastado e “esquecido” em 1965, após a queda de seu último protetor, Nikita Kruchev.

A situação precária da genética após 1939 era pouco conhecida no exterior e cientistas, como o inglês Haldane, consideraram que tudo não passava de propaganda anti-soviética.

Nesse intervalo, a apologia da genética pretensamente “marxista” chega ao máximo. Por exemplo, o poeta Aragon, membro do
Comitê Central do PC francês, “descobre” seu próprio talento biológico e se lança na defesa de Lyssenko, através da revista que dirige.

Lembremo-nos que naquela época o seguidismo do PC francês ao stalinismo era total e influía fortemente em toda intelectualidade.

Rara exceção, o biologista Jean Rostand exprime dúvidas a respeito das pretensões e resultados de Lyssenko e compara suas teorias
exóticas às do grande cientista do século 17, Lamarck, adepto da transmissão dos caracteres adquiridos, teoria que seria refutada (com variantes e controvérsias, como sempre).

O futuro prêmio Nobel e diretor inovador do Instituto Pasteur de Paris, Jacques Monod, rompe com o PC, referindo-se ao “lamentável e grotesco episódio”.

Outro eminente cientista e membro do PC, Marcel Prenant, se recusa a encabeçar uma campanha lyssenkista na França.

É excluído do Comitê Central, denunciado pela intelectual Annie Kriegel, a mesma que extravasaria um anticomunismo extremo bem mais tarde. A formação marxista dos stalinistas deixava bem a desejar…

A conclusão desta história transcende à pessoa caricata de Lyssenko, que será esquecida, como ocorrerá com um personagem de nosso entorno imediato.

A ciência tem uma relevância e um conteúdo político inegáveis. Por definição, novas teorias não são nem boas nem más. É o futuro e os resultados de outros laboratórios e experimentadores que resolverão, até nova ordem, qualquer contenda.

A direção conceitual da pesquisa não é exclusiva dos pesquisadores, mas estes têm que ter um papel principal nas decisões, dentro do contexto orçamentário livremente discutido e sem exclusivas políticas.

O cientista Pavlov, um dos fundadores da neurobiologia, existia antes do poder soviético e não era marxista ou simpatizante do regime.

Isto em nada impediu que o próprio Lenin, quando a jovem URSS enfrentava gravíssimos problemas de financiamento, tivesse optado por atribuir-lhe meios materiais invejáveis.

Partia-se do princípio que, para um projeto democrático, é essencial que a ciência avance, nos moldes que ela mesma determina.

Veja-se a situação presente no Brasil, de cortes orçamentários decididos por um ministro impossível, que a curto prazo comprometerão a pesquisa em geral, inclusive em imunologia, base da vacinologia.

O surto viral covid-19, em curso, deveria fornecer material extremamente útil para as próximas epidemias, que são inevitáveis. E sem pesquisa de ponta, dita fundamental, isto corre enorme risco.

Um comentário final. É moda atacar Cuba e seu regime, que sofrem de um bloqueio histórico implacável.

E não é que vão chamar de volta os médicos cubanos, rotulados de espiões e terroristas pelo presidente do Brasil, quando partiram?

Por que será que este pessoal é tão competente e disponível e, portanto, tão necessário?

Cuba tem um instituto de pesquisas imunológicas de excepcional qualidade.

Uma variante do interferon beta, hormônio celular de ação antiviral, está sendo testado na China, sendo fabricado por métodos de engenharia molecular num laboratório cubano lá instalado.

Isso é extraordinário.

Esta tecnologia de ponta mostra, com todos os defeitos que possam ser atribuídos a Cuba dita socialista, que a socialização dos meios de produção, traço herdado do tempo do “socialismo real”, é elemento de progresso, como o foi na URSS.

Inspirei-me livremente em diversos artigos, particularmente no de Yann Kindo, na revista Contretemps, 01/09/2017, “L’affaire Lyssenko ou la pseudo-science au pouvoir”.

*Boris Vargaftig é médico farmacologista, professor titular aposentado da USP


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