PL das cobaias humanas: Lula tem até dia 28 para vetar artigos que põem em risco proteção dos participantes e execução das pesquisas

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Abertura do 2º encontro ampliado da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), em 31 de agosto de 2023. Da esquerda para a direita, Fernando Pigatto, presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Laís Bonilha, coordenadora da Conep, e Carlos Gadelha, secretário de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde (Sectics/MS). Foto: CNS

Por Conceição Lemes

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem até a próxima terça-feira, 28 de maio, para decidir sobre o Projeto de Lei das Pesquisas com Seres Humanos, o PL nº 6007/2023.

É o PL das cobaias humanas.

O presidente pode sancionar, como o Senado Federal aprovou em 23 de abril.

Ou acatar os oito vetos recomendados ao Executivo por 40 entidades da área da Saúde e de Direitos Humanos (aqui, a íntegra da nota).

SOB MEDIDA PARA AS FARMACÊUTICAS E PESQUISADORES 

O Projeto de Lei 6007/2023 começou no Senado como PL200/2015 e na Câmara dos Deputados foi identificado como PL 7082/2017.

Sua origem, a demanda a parlamentares das grandes companhias farmacêuticas associadas a pesquisadores.

Justificativa: necessitavam de segurança jurídica e previsibilidade de tempo para recrutar pessoas para entrar em pesquisas no País.

Por exemplo, em estudos para testar novos medicamentos a fim de avaliar a eficácia deles.

Área, diga-se de passagem, que envolve muito dinheiro, rentável para vários setores.

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In continenti, os parlamentares ‘’capricharam’’ na lição de casa.

Elaboraram um projeto de lei voltado para atender apenas aos interesses, principalmente financeiros, dos ‘’patrocinadores’’ estrangeiros – as grandes companhias farmacêuticas – e dos profissionais pesquisadores.

Não é à toa que, durante a tramitação no Congresso Nacional, o projeto foi sendo alterado para beneficiar ainda mais as indústrias farmacêuticas e os profissionais pesquisadores em prejuízo dos participantes de pesquisa — em grande parte, pessoas usuárias do Sistema Único de Saúde (SUS).

DIREITOS HUMANOS DESRESPEITADOS

Na verdade, os interesses das pessoas que se voluntariam a participar dos testes de novos remédios acabaram relegados a plano secundário.

Tiveram desrespeitados direitos humanos garantidos pela ética em pesquisa.

Ficaram no prejuízo, inclusive físico, com aumento de risco à saúde, tanto que logo passou a ser chamado de ‘’projeto de lei das cobaias humanas’’.

O PL original tinha três objetivos explícitos:

1: Facilitar a realização de estudos clínicos no país, flexibilizando as regras, fragilizando a proteção das pessoas participantes, e abrindo espaço para interferência de mercado nas pesquisas com seres humanos.

2: Criar uma lei exclusiva para a Pesquisa Clínica com Seres Humanos, por ser o principal interesse de indústrias e pesquisadores.

3: Criar um Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.

O ponto 2 foi modificado depois na Câmara dos Deputados, passando a abranger todas as pesquisas com seres humanos no Brasil.

Já os objetivos 1 e 3 foram mantidos.

DESINFORMAÇÃO, INCOMPETÊNCIA E/OU MÁ-FÉ? 

É como se Brasil nunca tivesse se preocupado com a questão da ética na realização de pesquisas.

Os legisladores ignoraram totalmente um histórico bem-sucedido de 36 anos:

1. Para começar, o Brasil já possui um sistema nacional de pesquisas com seres humanos, que tem à frente Conep — Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.

2. A Conep é uma comissão intersetorial do Conselho Nacional de Saúde (CNS), a instância nacional do controle social no SUS.

3. Em 1988, o CNS elaborou a primeira regulamentação nacional sobre a ética na condução de pesquisas com seres humanos.

4. Em 1996, o próprio CNS, por meio da resolução 196, criou a Conep ”como a instância normativa, deliberativa, reguladora, consultiva, educativa e formuladora de diretrizes para a ética em pesquisa com seres humanos no Brasil”.

5. O Conselho Nacional de Saúde possui em sua estrutura representantes dos usuários do sistema de saúde (50%), dos trabalhadores (25%) e dos prestadores de serviços (25%), entre os quais a indústria farmacêutica.

Quer dizer, pesquisadores, participantes de pesquisas e patrocinadores, por meio de entidades de representação, participam do CNS.

5. Atualmente, o sistema brasileiro de ética em pesquisa com seres humanos é composto por 892 CEPs – os Comitês de Ética em Pesquisa.

7. Os CEPs existem em todas as regiões do País, para garantir a proximidade com a população que participa das pesquisas no local.

Entre coordenadores, relatores, administrativos e assessores são mais de 16 mil pessoas envolvidas diretamente com o sistema, sob a coordenação da Conep. 

Diante da magnitude do sistema criado há 36 anos, de projeção internacional, por que instituir um outro Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, como objetiva o PL 6007/2023?

Desinformação, incompetência e/ou o má-fé dos que propuseram e elaboraram o projeto de lei para as pesquisas clínicas no Brasil?

ENTIDADES DA SAÚDE E DE DIREITOS HUMANOS ALERTAM 

O fato é que, em 23 de abril, o Senado Federal aprovou o PL nº 6007/2023, que seguiu, para apreciação do Executivo.

Desde a aprovação, entidades da Saúde, do Controle Social e dos Direitos Humanos têm alertado os legisladores e o governo federal sobre o risco de retrocesso em questões éticas e de proteção na execução de pesquisas clínicas no Brasil.

Em 13 de maio, 40 entidades representativas dessas áreas divulgaram nota conjunta, recomendando à Presidência da República oito vetos ao projeto de lei.

O principal é ao artigo 2º, inciso XXVI, que tem um enorme cavalo de Troia, alertou o médico epidemiologista e professor Heleno Rodrigues Corrêa Filho, em artigo publicado aqui no Viomundo.

O professor Heleno foi um dos primeiros a apontar os problemas éticos relacionados ao PL 6007/2023.

O artigo 2º, inciso XXVI, diz o seguinte:

“XXVI – instância nacional de ética em pesquisa: colegiado interdisciplinar e independente, integrante do Ministério da Saúde, sob a coordenação da área técnica responsável pelo campo da ciência e tecnologia, de caráter normativo, consultivo, deliberativo e educativo, competente para proceder à regulação, à fiscalização e ao controle ético da pesquisa, com vistas a proteger a integridade e a dignidade dos participantes da pesquisa, e para contribuir para o desenvolvimento da pesquisa dentro de padrões éticos”.

O projeto define a Secretaria de Ciência e Tecnologia em Saúde (Sectics), do Ministério da Saúde, como local para abrigar a Instância Nacional de Ética em Pesquisa ‘’de caráter normativo, consultivo, deliberativo e educativo, competente para proceder à regulação, à fiscalização e ao controle ético da pesquisa’’.

Quer dizer, as mesmas atribuições da Conep.

As 40 entidades signatárias da nota discordam peremptoriamente.

Em entrevista ao Viomundo, Laís Bonilha, coordenadora da Conep, fala a respeito.

A Conep é a guardiã da ética em pesquisa no Brasil. Da esquerda para a direita, Laís Bonilha, Ana Lúcia Paduello, coordenadora-adjunta, e Neilton Araújo de Oliveira, conselheiro, em audiência na Conep.

Confira a entrevista.

Viomundo – Por que as 40 entidades são contra se colocar a Instância Nacional de Ética em Pesquisa exclusivamente na Sectics, como sugere o PL nº 6007/2023?

Laís Bonilha – Explícito conflito de interesses.

Viomundo — Em que medida?

Lais Bonilha — É atribuição da Sectics fomentar o desenvolvimento de pesquisas, enquanto a principal atividade de um sistema de ética em pesquisas é a proteção dos participantes das pesquisas. 

E nem sempre os interesses  de participantes coincidem com os dos patrocinadores e dos pesquisadores.

Logo, é inadequado colocar a análise ética sob a guarda da área técnica responsável pelo campo da ciência e tecnologia. Fragilizaria a proteção dos participantes. 

Além disso, a Sectics é uma instância totalmente apartada do controle social. 

Logo, a análise ética, ao ser colocada exclusivamente na Sectics, também deixa de estar sob o controle social.

Deixamos de contar com a participação ativa da sociedade na atualização da normatização que visa proteger qualquer pessoa que participe de pesquisas no país.

Viomundo – O que senhora defende?

Laís Bonilha – Não apenas eu. Nós, das 40 entidades signatárias da nota enviada ao Exceutivo, defendemos que a Instância Nacional de Ética em Pesquisa continue sendo a Conep, uma comissão do Conselho Nacional de Saúde, que agrega em local democrático e protegido pela Constituição Federal todos os interessados no desenvolvimento de pesquisas.

Sustentamos que o Presidente da República faça constar que a Instância Nacional de Ética em Pesquisa seja a Conep, uma comissão do CNS.

Viomundo – Por quê?

Laís Bonilha — A Conep é fundamental para garantir os direitos dos participantes de pesquisas — antes, durante e depois do estudo.

A análise ética da pesquisa representa a corresponsabilização com a proposta apresentada por pesquisadores e patrocinadores. É uma rede de proteção, que favorece a todos.

Por isso, insisto: a Conep é fundamental para garantirmos o desenvolvimento de pesquisas éticas, assim como proteger a segurança e os direitos dos seus participantes.

Viomundo – Muita gente acha que o processo no sistema CEP/Conep é meramente burocrático.

Laís Bonilha – Seguramente, não é.

Viomundo – Há pesquisadores que também têm essa noção.

Laís Bonilha – Essa impressão não condiz com a realidade. Precisamos, portanto, ressignificá-la, modificá-la, melhorando o nosso trabalho,  divulgando a importância da Conep.

A análise ética não é tarefa burocrática. Ela significa participar de pesquisas com segurança e garantia de direitos.

Viomundo – Que outro ponto do PL é fundamental ser vetado?

Laís Bonilha – O artigo 33.

Pelo projeto, os patrocinadores das pesquisas, que são as grandes indústrias farmacêuticas, não têm mais a obrigatoriedade de fornecer o medicamento testado ao participante após o término do estudo.

Nós discordamos dos muitos critérios adicionados no texto aprovado no Senado, como as barreiras para o participante acessar esse direito.

Veja bem. O patrocinador beneficia-se dos dados colhidos durante a pesquisa, para elaborar o medicamento a ser comercializado futuramente.

Consequentemente, por questão de justiça e razões éticas, o participante deve ser contemplado com o acesso ao medicamento que ajudou a desenvolver.

Além disso, de acordo com o projeto aprovado, o direito ao acesso pós-estudo será decidido apenas pelo médico pesquisador. Não é ético [veja, ao final, o quadro ”O povo brasileiro é que pagará a conta”]. 

Viomundo – Até hoje como tem sido?

Laís Bonilha – De acordo com a norma vigente, a resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, o participante tem o direito de receber do patrocinador [lembrando, sempre que é a indústria farmacêutica] o medicamento testado após o término do estudo. Isso é válido enquanto for benéfico à sua saúde, já que colocou sua saúde à disposição do desenvolvimento de um novo produto a ser comercializado.

Ele contribuiu, deve receber o remédio, é injusto colocar barreiras.

Viomundo – Então, o paciente que se voluntariar agora para participar de pesquisa com novos medicamentos, caros ou raros, não terá mais esse direito?

Laís Bonilha – Não. Por isso, recomendamos ao Presidente da República o veto ao artigo 33 do projeto de lei.

Viomundo – Qual a justificativa das 40 entidades da Saúde e de Direitos Humanos para o veto ao artigo 33?

Laís Bonilha – Vou reproduzir aqui exatamente a nossa justificativa, que consta do documento enviado ao Presidente da República:

”Não é adequado interromper o direito ao acesso pós estudo aos/às participantes de pesquisas, visto que é direito adquirido, por justiça, nem na disponibilidade comercial do medicamento, nem disponibilidade na rede pública de saúde, o que significaria repassar aos/às contribuintes a responsabilidade do patrocinador de fornecer o acesso pós-estudo”.

Viomundo – Qual a expectativa de vocês?

Laís Bonilha – Esperamos que o Presidente vete os artigos apontados por nós. E a comissão mista de senadores e deputados mantenha os vetos, não permitindo, assim, que os participantes de pesquisas no Brasil percam seus direitos e sua proteção, garantidos hoje pela regulamentação em vigor.

Importante: mesmo sem haver uma lei até hoje, os participantes de pesquisas foram protegidos no Brasil pela regulamentação do Conselho Nacional de Saúde, inclusive durante a pandemia de covid 19.

O Sistema CEP/Conep respondeu prontamente, agilizando a análise ética para rápido início das pesquisas com vacinas, procedimentos e medicamentos.

Viomundo — O que diria para alguém que dá de ombros para os vetos que as 40 entidades recomendaram ao presidente Lula?

Laís Bonilha — É importante se interessar pela proteção e direitos dos participantes de pesquisas. Qualquer um de nós pode, de repente, decidir participar de alguma pesquisa, bem como nossos familiares, pessoas da nossa comunidade.

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