Marcelo Kimati: Retomada do modelo de Saúde Mental superado há 20 anos causará desassistência em proporções trágicas

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Amadorismo, superficialidade e obscurantismo: a proposta de mudança na política de saúde Mental no País

Por Marcelo Kimati, especial para o Blog da Saúde

Está em curso no Ministério da Saúde um processo de revogação de portarias que estruturam a política de saúde mental no país desde a década de 1990.

O projeto chama a desconstrução da política em vigor  de início de uma “nova saúde mental”, baseada em intervenções médicas.

O impacto imediato da ”nova saúde mental” é o fim do financiamento de milhares de serviços e seu provável fechamento, causando desassistência a milhões de pessoas com transtornos graves e usuários de drogas.

A proposta reproduz uma narrativa não fundamentada sobre o caráter “ideológico” do modelo de atenção atual, envolvendo argumentos falaciosos.

Por exemplo, define centros de atenção psicossociais para usuários de drogas como locais de tráfico. E os consultórios na rua como serviços que perpetuam a desassistência de pessoas em situação de rua.

O processo de discussão envolve representantes de entidades médicas, como o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).

Em função dessa característica, dá um papel central a psiquiatras, acabando com a característica multidisciplinar.

A proposta abre espaço ainda para:

— expansão da epidemia de uso de antidepressivos no país;

— aumento de financiamento público da rede psiquiátrica privada;

— aumento dos gastos do Estado com psicotrópicos.

DESATUALIZAÇÃO

Ainda que se baseie num discurso de cientificidade, a bibliografia referida no projeto é vergonhosamente ultrapassada, com parcas 38 referências (incluindo portarias). Apenas duas delas têm menos de 10 anos.

Ignora, por exemplo, que o mundo enfrenta hoje uma epidemia de uso crônico de psicotrópicos, em especial de antidepressivos.

A literatura internacional aponta que a existência e disponibilidade de psiquiatras na rede não tende a diminuir essa demanda.

Ao contrário, o modelo baseado no atendimento ambulatorial cria um sistema gerador de demanda, com grande dificuldade de altas médicas.

O desenho do modelo da ABP tem ainda dimensionamento irreal.

Por exemplo, está previsto um ambulatório de psiquiatria para atendimento em município de pequeno porte, com 10 horas de psiquiatria por semana. Isso possibilita 80 atendimentos de psiquiatria por mês.

Ora, considerando a atual epidemia de psicotrópicos, um município de 20 mil habitantes tem potencialmente 2 mil usuários de medicamentos psiquiátricos.

Num acompanhamento de qualidade assistencial mínima, gera 2 mil atendimentos por mês, ou seja, 25 vezes mais horas de psiquiatra.

Isso — atenção! — no início do seu funcionamento.

Acontece que mais de 20% dos seguimentos psiquiátricos evoluem para uso crônico e o tempo médio preconizado de antidepressivos é de 8 a 12 meses, podendo ser de 24 meses, segundo alguns estudos.

Assim, a demanda passa a ser cumulativa. Ao fim do primeiro ano, os 2 mil atendimentos/mês se tornariam 5 mil.

Como o crescimento é exponencial, esse modelo muito rapidamente estará em colapso, com filas de espera, desassistência e dispensação de psicotrópicos sem atendimento.

SUPOSTA CIENTIFICIDADE

Uma das críticas que fundamentam a  “nova saúde mental” , proposta pela ABP, é que o atual modelo não tem protocolos norteadores, o que promove uma excessiva individualização das práticas terapêuticas.

Uma avaliação de protocolos de tratamento, especialmente daqueles voltados para transtornos de humor, mostra enorme heterogeneidade quanto a tempo de prescrição, dosagem utilizada e frequência de atendimentos.

Da mesma maneira, a cada novo manual diagnóstico, essas condutas se modificam,  somando novas categorias a serem medicadas, novas formas de diagnóstico e novas indicação de psicotrópicos.

Da mesma forma, pouquíssimos desses protocolos foram testados a médio e longo prazos, existindo cada vez mais indicativos de ocorrências não previstas em sua criação, como aumento de risco de recorrência, existência de eventos graves na interrupção dessas drogas e consequente cronificação de uso.

Os protocolos, no contexto utilizado, tendem a entender com excessiva superficialidade o sofrimento mental e a criar entraves burocráticos ao acesso de usuários ao sistema.

A suposta cientificidade se esgota quando nenhum artigo sobre o modelo de atenção em vigor é estudado, citado ou discutido neste projeto, sendo que milhares foram publicados nos últimos vinte anos.

A suposta cientificidade esconde, na verdade, uma profunda ignorância dos autores.

AMADORISMO

Qualquer profissional com alguma experiência de gestão pública sabe que uma política tem de apresentar diversos requisitos para ser implantada.

Nenhum deles é discutido pela ABP. Vejamos:

1) o modelo apresentado pela ABP tem capacidade de fazer ofertas de atendimento integral e universal?

Nada indica que sim, pois não é calculado o número de profissionais que deveriam estar prestando serviços ao SUS.

Isso ocorre num contexto de um projeto centrado na presença maciça de psiquiatras, que inexistem tanto no sistema público quanto no privado.

Os modelos institucionais não apresentam sistema de acolhimento, mas de triagem, sendo que o modelo “porta aberta” é o que hoje sustenta a eficiência da rede, mesmo após cinco anos de sucateamento. O modelo gera, em sua concepção, o aumento do número de leitos em hospitais psiquiátricos.

Qual o número de leitos a serem implantados? Qual a efetividade esperada?

Como pensar essas instituições como diametralmente opostas ao modelo existente hoje que tem péssima qualidade, baixíssima capacidade resolutiva e que até poucos anos tragavam a maior parte dos recursos de saúde mental no País?

São muitas as perguntas a um modelo reacionário, que tenta resgatar um modelo ineficiente, caro e associado a amplas violações de direitos humanos.

2) qual a capacidade de gestão desses operadores na mudança radical do modelo sem gerar desassistência?

A incapacidade de gestão do atual Ministério da Saúde está sendo escancarada na pandemia de covid. Preciso argumentar mais sobre esse ponto?

Entretanto, há um exemplo recente na saúde mental que é ilustrativo.

No âmbito da pandemia, o Ministério da Saúde  publicou a portaria Nº 2.516, de 21 de setembro de 2020, com a finalidade de aumentar recursos para a compra de psicotrópicos ao longo do ano.

A baixa execução do recurso demonstrou mais uma vez a incapacidade de articulação, indução e execução do Governo Federal, um precedente que seguramente se repetirá ao longo dos próximos 24 meses.

3) qual o custo do modelo? Como ampliar recursos para executá-lo?

Uma crítica que a ABP faz em seu projeto é que “os países desenvolvidos investem 5% a 12% do orçamento da Saúde em Saúde Mental” , enquanto no Brasil o investimento é de 2% do orçamento total da saúde.

O subfinanciamento do SUS e da Saúde Mental são pautas desde a década de 1990, sendo que o cenário tornou-se mais complexo com o congelamento de gastos públicos.

Qual o custo previsto? 2, 5 ou 12% do orçamento da Saúde?

Se 5% ou 12%, como viabilizar com o congelamento de gastos?

Gestão pública é algo demasiadamente sério. Ter um consultório com muitos pacientes não habilita ninguém a se aventurar nesse campo

SUPERFICIALIDADE

Um dos conceitos que ajudaram a construir e consolidar a rede de saúde mental foi o de território, não só geográfico, mas cultural, sociológico, econômico e histórico.

Qualquer abordagem que considere minimamente que transtornos mentais têm alguma relação com a vida social não pode ignorar esse conceito.

O projeto proposto pelo Ministério da Saúde apresenta uma oposição formal a não considerar qualquer achado que não parta originalmente de um fenômeno orgânico ou cerebral.

Nenhuma política nacional teve sucesso quando ignorou o brasileiro, suas particularidades, sua heterogeneidade e complexidades regionais.

O melhor exemplo é a guerra contra as drogas, que tende a reduzir o usuário a substância utilizada.

Os impactos a médio e longo prazos do processo de desmonte de uma rede pública de saúde mental da qual milhões de usuários dependem exclusivamente é de difícil previsão.

Transtornos mentais graves e uso de drogas estão epidemiologicamente associados a aumento de vulnerabilidade, empobrecimento e diminuição da expectativa de vida.

A retomada de um modelo superado no Brasil há mais de 20 anos pode reproduzir o holocausto promovido pelos manicômios no país.

*Marcelo Kimati é médico psiquiatra e professor de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Paraná (UFPR)


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