Luísa da Matta Machado: Por que precisamos falar de mortalidade materna durante a pandemia

Tempo de leitura: 4 min
Fotos: Arquivo pessoal e Pinterest

por Luísa da Matta Machado Fernandes*, especial para o Blog da Saúde

No início de abril, o Ministério de Saúde decidiu incluir as gestantes e as mulheres que deram a luz há bem pouco tempo — as chamadas puérperas — no grupo de risco para o novo coronavírus.

Na ocasião, mais de um mês já havia se passado desde os primeiros casos no Brasil, mas quase nada se sabia vulnerabilidade desse grupo em relação à covid-19.

O Ministério da Saúde justificou a decisão com base na história de maior letalidade e outras doenças (comorbidades) quando gestantes e puérperas enfrentam outros vírus e infecções.

À primeira vista, quem leu essa notícia pode ter sido levado a crer que o Brasil estava se antecipando, para garantir às mulheres os cuidados adequados e necessários.

Infelizmente, desde então, a realidade que passamos a testemunhar é outra.

Para começar, sequer conseguimos registrar a contento a mortalidade materna por covid-19.

Até o momento o Boletim Epidemiológico nº 17, do Ministério da Saúde, foi o único que registrou mortalidade materna.  Falava em 36 óbitos, mas esse número é muito distante do real.

Levantamento feito pelo grupo de pesquisadoras coordenadas pela ginecologista Melania Amorim encontrou 124 grávidas ou puérperas mortas pela covid-19, entre 16 de fevereiro e 23 de maio [1]

Essas 124 mulheres são apenas as contabilizadas no mar de subnotificações.

A gravidade da situação aumenta quando observamos que quase 40% dessas mulheres não tiveram acesso a um respirador.

Indício de que foram vítimas da falta de assistência adequada em tempo apropriado.

Problema, vale dizer, não exclusivo das mulheres nesta pandemia no Brasil, mas é igualmente grave.

A essa situação conhecida internacionalmente como “too little too late” – muito pouco muito tarde – se soma a descontinuidade do cuidado na Atenção Primária à Saúde (APS).

Em muitos lugares as consultas de pré-natal foram interrompidas, por falta de suporte e estrutura para serem realizadas de forma adequada e segura para as mulheres e trabalhadores da saúde.

Se as equipes de Atenção Primária à Saúde não têm acesso a equipamentos de proteção individual, tecnologia para monitoramento remoto dos pacientes com condições crônicas, suporte para fazer a vigilância em saúde no território e estão incompletas devido ao subfinanciamento do SUS, a continuidade e longitudinalidade do cuidado é interrompida.

Assim, devemos contabilizar na conta das mortes por covid-19 as mulheres que ainda morrerão por causas potencialmente preveníveis com um bom pré-natal, como hipertensão, hemorragia, infecção, complicação de aborto inseguro e mortes indiretas como cardiovasculares.

E por que falamos de mortalidade materna em tempo de pandemia?

É importante não apenas pelo registro das mortes, mas porque este é um indicador de saúde sensível às desigualdades sociais.

Como já foi dito, a pandemia tem desvendado, escancarado e aprofundado as desigualdades do nosso país.

Dentre os objetivos do milênio estabelecidos pela Organização Mundial de Sáude (OMS), o único que o Brasil não atingiu foi o de Mortalidade Materna.

Este deveria então passar a ser a nossa grande prioridade de enfrentamento para as metas da Agenda 2030.

Em 2015, foram pactuados os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) e o Brasil se comprometeu chegar até  2030 com 30 mortes mortes por 100 mil nascidos vivos.

O último dado divulgado pelo site oficial do ODS Brasil é de 2015 e apresenta mortalidade materna de 62/100.000 [2].

Diante do atual cenário da pandemia, é possível prever que o registro de mortalidade materna no Brasil vai crescer nos próximos anos.

E, mais grave ainda, saberemos pouco sobre quem são essas mulheres, uma vez que sequer temos informações de raça/cor.

A ausência do monitoramento e registro oficial das mulheres grávidas e puérperas durante a pandemia faz parte do projeto de esconder quem são as mulheres que estão morrendo.

Em 2017, mais da metade dos bebês no Brasil nasceram de cesariana (57%).

E estudos mostram que, pelo menos, 47% dessas eram desnecessárias.

Essa taxa é reflexo de um sistema de cuidado da saúde materna bastante intervencionista, conhecido internacionalmente como “too much too late” [3].

É muito provável que cresça no País a taxa de cesarianas que coloca a vida de mulheres e bebês em risco.

Escutamos com frequência relatos de indução a cesarianas sendo justificadas pela covid-19 sem embasamento científico.

Muitos médicos, em vez de promoverem o parto normal, estão usando o medo da pandemia para indicação de cirurgias de alto risco, lastreados apenas na conveniência pessoal

O parto normal diminui o tempo de internação em hospitais, tem menor risco de complicações no pós- parto e a recuperação da mulher é muito mais rápida.

Em vez  de criar ambientes seguros nas maternidades de baixo risco para que as mulheres tenham seus filhos, a recomendação de hospitais e muitas secretarias municipais  foi de afastar os acompanhantes das salas de parto.

Desde 2005, o Brasil tem uma lei que garante à mulher o direito de ter, ao seu lado, acompanhante de sua escolha durante todo o pré-parto, parto e pós-parto.

Durante a pandemia, esse direito vem sendo negado às mulheres, aumentando o risco de sofrerem violência obstétrica.

Acesso a cuidados baseados em evidências científicas para todas as mulheres é considerado um direito reprodutivo fundamental, com base na noção de que cuidados e serviços maternos de qualidade devem ser humanos e dignos [4].

A atual agenda global de saúde destaca que mulheres e crianças devem não apenas sobreviver ao nascimento, mas prosperar e atingir todo o seu potencial de saúde e vida.

Pesquisas que ouviram as mulheres brasileiras já nos mostraram que elas não querem ter que escolher entre o medo da morte e uma péssima assistência ou uma cesariana.

Quanto mais informadas as mulheres, mais exigem seus direitos sexuais e reprodutivos e um cuidado humanizado.

Essa é a nossa única saída para não continuarmos morrendo.

Exigir políticas públicas agora e no pós-pandemia que garantam a autonomia das mulheres.

Interromper o número crescente de mortes das mulheres grávidas e puérperas no Brasil é urgente e parte de um modelo de cuidado da justiça reprodutiva.

Se as políticas e ações não são  protagonizadas pelo governo federal, precisamos que estados e municípios atentem para esse fato.

Precisamos que as notificações passem a contar esses números e publicizá-los.

É urgente que as mulheres sejam ouvidas para que as políticas locais nesse momento de pandemia garantam seus direitos, ativando o trabalho de formiguinha e potência que o SUS tem, em especial a partir das ações da Atenção Primária de Saúde

*Luísa da Matta Machado Fernandes é pesquisadora da Fiocruz-Minas no Instituto René Rachou e da FESF-BA. É fonoaudióloga e doula. Seu doutorado em Saúde Pública tem como foco as política de saúde materna no brasil uso das práticas baseadas em evidência e o conhecimento das mulheres sobre o parto.

[1] http://rehuna.org.br/numeros-oficiais-sobre-gravidas-com-covid-19-estao-longe-da-realidade-dizem-pesquisadores/

[2] https://odsbrasil.gov.br/objetivo3/indicador311

[3] Fernandes LMM, Lansky S, Oliveira BJ, Friche AAL, Bozlak CT, Shaw BA. Changes in perceived knowledge about childbirth among pregnant women participating in the Senses of Birth intervention in Brazil: a cross-sectional study. BMC Pregnancy Childbirth. 2020 Dec 5;20(1):265.

[4] Fernandes L da MM. Pregnant women’s knowledge and use of evidence-based practices during labor and childbirth after participating in a health education intervention – Senses of Birth [Internet]. State University of New York; 2019. Available from: https://pqdtopen.proquest.com/doc/2331266636.html?FMT=ABS


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!

Deixe seu comentário

Leia também