Flavio Wittlin e Bernardo Wittlin: Educação popular em saúde, ‘vacina’ contra o colapso da imunização

Tempo de leitura: 5 min
O programa brasileiro de imunização sempre foi referência mundial. Porém, a cobertura geral de vacinação passou de 95,07%, em 2015, para 63,08%, em 2022. Resultado: Brasil está entre os 10 piores países, num total de 177, segundo relatório da OMS. Fotos: susconecya, Ricardo Marajó/SMSC, Aloisio Maurício/Fotoarena/Estadão, Sesc/RJ, reprodução

Uma “vacina” contra o colapso vacinal: educação participativa e popular em saúde

Na era da pós-verdade, precisamos de uma abordagem “pós-Zé Gotinha” para resgatar a alta cobertura vacinal.

Por Flavio Wittlin* e Bernardo Bastos Wittlin**, especial para o Viomundo

O ano de 2023 chega ao Brasil como uma lufada de esperança.

As trevas que baixaram aqui nos últimos anos começam a se dissipar. Assim se anuncia na saúde, com a bem-vinda indicação pelo novo governo de uma ministra cuja trajetória é identificada com os princípios do SUS. Não é para menos.

Vivemos ainda sob o impacto de uma tragédia sanitária que, no caso brasileiro, não pode ser encarada somente como contingência epidemiológica. É fruto de uma condução política de desmonte, negacionismo e morte.

Tal fato não se limitou ao manejo da pandemia, mas atravessou diversas políticas públicas de saúde.

É o caso emblemático do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que, em 2023, completa 50 anos.

Haveria motivos de sobra para celebrarmos o marco de um programa que sempre foi referência mundial. Só que não.

Segundo dados do Ministério da Saúde, a cobertura geral de vacinação passou de 95,07%, em 2015, para 63,08%, em 2022.

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Em relatório global sobre imunizações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas (Unicef), o Brasil passou a figurar entre os 10 piores países em termos de cobertura vacinal, num total de 177 países.

De fato, a pandemia comprometeu o acesso, levando a uma forte queda planetária nas taxas vacinais.

Só que, em nosso caso, a queda já vinha ocorrendo desde 2016, ano do golpe parlamentar que escancarou a porta para a adoção de políticas de choque neoliberal.

Agora, voltamos a ter boa parte da população suscetível, em especial crianças, a uma gama de infecções imunopreveníveis, capazes de produzir grande morbidade, sequelas e mortes.

No que se refere ao sarampo, a imprevidência já cobrou seu preço. Em 2016, o Brasil havia recebido da OMS o certificado de eliminação da doença, mas perdeu-o três anos depois, face a surtos sucessivos da doença em diversos estados.

Além disso, corremos o risco real de reintrodução da poliomielite, a qual já foi eliminada em quase todo o mundo.

Quais seriam as razões que explicam este retrocesso no Brasil?

Auditoria recente do Tribunal de Contas da União no PNI identificou graves problemas estruturais, entre os quais a

“deficiência no acompanhamento da situação vacinal, dificuldade de acesso aos serviços de vacinação, necessidade de maior coordenação das ações de comunicação para esclarecimento de crenças e percepções equivocadas acerca das vacinas, limitações da qualidade dos sistemas e dos dados do PNI e necessidade de atuação conjunta entre as principais intervenções públicas e níveis de governo”.

Além de enfrentarmos os problemas de acesso às vacinas, é necessário considerarmos outros desafios de fundo.

Atualmente, considera-se o fenômeno de hesitação vacinal como o principal desafio a ser enfrentado para garantir altas coberturas.

Segundo o grupo de experts em imunizações da OMS, a hesitação vacinal é definida como “atraso em aceitar ou recusa das vacinas recomendadas, apesar de sua disponibilidade nos serviços de saúde”.

Trata-se de um “fenômeno comportamental complexo, contexto-específico, variando ao longo do tempo, do local e dos tipos de vacinas”.

Indivíduos hesitantes estariam no meio do caminho entre dois polos: aqueles que aceitam totalmente as vacinas e aqueles que as recusam totalmente — os chamados antivax.

E o que, por sua vez, explicaria o crescimento da hesitação vacinal?

Um conceito útil e muito aludido é o chamado “paradoxo da prevenção”: quando uma doença passa a ser controlada eficazmente pelas medidas de prevenção, como a vacinação, as novas gerações já não se sentem tão ameaçadas e tendem a relaxar em relação a tais medidas.

Talvez então bastasse realizarmos campanhas que rememorem o “terror” das velhas doenças. Embora válida, esta hipótese não é capaz de explicar tudo: como explicar, por exemplo, a hesitação renitente à vacina contra a covid-19, doença que tão recentemente ceifou centenas de milhares de vidas no país.

Por muitas décadas, na percepção coletiva da população brasileira, as vacinas eram consideradas boas e confiáveis, representavam proteção, não importando quais e para quê. Havia, de fato, uma cultura pró-vacina.

Tal confiança abraçava o próprio PNI e a ciência. Todavia, isto parece vir se erodindo. Nesta erosão, fenômenos seculares, como mitos e boatos, são potencializados por formas modernas de comunicação e circulação de informações. Há nas mesmas um solo fértil para a disseminação de desinformação em torno das vacinas.

Agravando nossa tragédia particular, o negacionismo científico e vacinal entronizou-se institucionalmente no país, consubstanciado com o ideário dos movimentos de extrema-direita. Este ideário alcançou inclusive, de forma aterradora, parte considerável da categoria médica e outros profissionais de saúde.

Durante a pandemia, assistimos ao presidente da República promovendo uma verdadeira campanha vacinal às avessas, o que levou parte significativa da população a recusar as vacinas contra covid-19.

Ainda serão necessários estudos para avaliar o impacto deste fenômeno. Não será espantoso constatarmos uma elevação da hesitação vacinal com associação a determinados perfis políticos e religiosos, atingindo todas as demais vacinas.

Algumas perguntas.

Para vencer o desafio que se coloca, será que basta reativarmos as campanhas tradicionais de vacinação?

Para reverter a desconfiança e o negacionismo, será que basta estampar o Zé Gotinha por todos os cantos?

Claro, não queremos apregoar o abandono das importantes campanhas publicitárias de massa, incluindo aquelas com o carismático personagem.

Mas gostaríamos de desferir uma provocação: na era da pós-verdade, não precisaríamos de uma abordagem pós-Zé Gotinha?

Aqui entra o relevante papel da educação em saúde de caráter participativo e popular.

Por participativa, compreende-se uma educação em saúde com engajamento de alta intensidade a superar antigos paradigmas e práticas educacionais “de cima para baixo”, que enxergam pessoas e comunidades como meros receptáculos de informação.

Tais práticas, pouco efetivas, desconsideram as subjetividades, percepções, valores, aspectos culturais e demandas de cada educando.

Em oposição, uma educação participativa de alta intensidade funda-se numa relação dialética, tendo a ciência e o saber técnico de um lado, e a consciência e subjetividade populares de outro.

Para ser efetiva, deve ocorrer de forma capilarizada, nos territórios, sejam bairros, comunidades periféricas, quilombos ou aldeias, tendo como aparelhos sociais as unidades básicas de saúde, escolas, locais de trabalho, praças, entre outros.

Por popular, compreende-se uma educação em saúde de alto engajamento que resgate e incorpore o protagonismo popular organizado e centrado na luta por direitos sociais.

Este protagonismo deve ser exercido desde a formação de educadores e multiplicadores até a condução das práticas educacionais nos territórios. Movimentos sociais e entidades civis progressistas que atuam no campo dos direitos e da saúde têm, nesse sentido, muito a contribuir.

Dada a importância que as comunidades têm para a educação participativa em saúde de alta intensidade, a atenção primária (APS) passa a desempenhar um papel central neste campo.

Portanto, é necessário fortalecer tais ações estrategicamente dentro da APS.

Tais iniciativas, porém, devem ser compreendidas não só como parte dos “pacotes de serviços” prestados pelas unidades de saúde. Devem ser vistas como de domínio social e aberto, portanto fomentadas e incentivadas através de amplas interações com atores, entidades e movimentos sociais.

Dentre as metodologias que, a nosso ver, devem ser exploradas e estimuladas estão aquelas inovadoras, tendo como paradigma a educomunicação em saúde de alto engajamento, marcadamente influenciada pela perspectiva de Paulo Freire.

Como definiu o professor Ismar Soares, a educomunicação é um campo de práticas próprias da interface comunicação e educação, articulando iniciativas voltadas a facilitar o diálogo social, por meio do uso consciente de tecnologias da informação. Isto inclui práticas educacionais que utilizam mídias – como fotos, vídeos, rádio, internet, podcasts e videogames – de forma altamente participativa e cooperativa.

Sua implementação no campo da saúde facilitaria a aquisição, aperfeiçoamento ou mudança de hábitos que impactam a saúde, contribuindo igualmente para o reconhecimento de direitos e deveres e a desconstrução da desinformação neste campo.

Lembremos, por fim, que a vacinação é uma forma consagrada de imunização ativa, ou seja, estimula o próprio sistema imune a produzir anticorpos e resposta celular contra os agentes invasores. Que isto sirva então a uma analogia inspiradora.

No enfrentamento da desinformação e do negacionismo vacinal, a educação participativa e popular em saúde de alta intensidade está para as consciências, como as vacinas estão para a imunidade.

*Flavio Wittlin é médico, especialista em Educação em Saúde.

**Bernardo Bastos Wittlin é médico infectologista.

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