Ana Paula Guljor: Incerteza quanto ao futuro agrava dor psíquica na pandemia; tema de congresso virtual

Tempo de leitura: 6 min

por Conceição Lemes

Neste período, deveria ser realizado em Pernambuco  o 7º Congresso da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

Mas, devido à pandemia e à necessidade de garantir prioritariamente a saúde das pessoas, ele foi adiado para data a ser agendada posteriormente.

Daí, o Pré-Congresso Brasileiro de Saúde Mental, da Abrasme, que acontece virtualmente nesta quinta e sexta-feira, 30 e 31 de julho. A programação está no topo.

Eu entrevistei a médica psiquiatra, professora e pesquisadora Ana Paula Guljor sobre o evento.

Integrante da diretoria da Abrasme, ela é doutora em Saúde Pública. Coordena o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) – Fiocruz.

Blog da Saúde — Qual a importância de a Abrasme realizar o pré-congresso neste momento?

Ana Paula Guljor –– Para responder esta pergunta é preciso falar da Associação Brasileira de Saúde Mental como  entidade fundada em 2007 com o objetivo de agregar o campo da saúde mental em uma entidade que pudesse ser representativa e congregasse a diversidade de saberes que envolve esta questão.

Consequentemente, a Abrasme não está restrita aos profissionais da psiquiatria e/ou psicologia. Entre seus filiados há profissionais de várias áreas, usuários e familiares.

Uma pluralidade que espelha as diretrizes da Abrasme: o respeito aos direitos humanos, à cidadania e à liberdade são os norteadores do cuidado.

Blog da Saúde — Na prática, reflete a própria Reforma Psiquiátrica brasileira que, como política,  foi construída com ampla participação da sociedade? 

Ana Paula Guljor — Exatamente. Portanto, apesar do adiamento do 7º Congresso, temos a compreensão da importância de garantir o debate sobre a questão da saúde mental que supere a temática sintoma, diagnóstico e medicação.

Para a Abrasme, a saúde mental precisa ser abordada de forma ampla, pautada na pessoa e não na doença.

Historicamente os portadores de quadros graves de sofrimento psíquico foram tratados como pessoas à margem da sociedade e tiveram seus direitos fundamentais sequestrados.

Blog da Saúde — O que buscará então este pré-congresso?

Ana Paula Guljor — Ele acontece no contexto de uma pandemia que desnuda a desigualdade.

Assim sendo, o pré-congresso da Abrasme buscará trazer para a agenda da saúde mental os múltiplos aspectos que envolvem hoje o sofrimento psíquico, como o racismo estrutural, a democracia — fundamento da construção de políticas com a participação social —  a questão de gênero, os movimentos sociais, a arte e as culturas.

O pré-congresso buscará também a defesa de uma política de saúde mental que pressuponha o cuidado em liberdade e a inclusão social como parte de um processo civilizatório.

O pressuposto da clínica desenvolvida nas últimas décadas pelos centros de atenção psicossocial, consultórios na rua, moradias assistidas, entre outros, pauta os temas que citei acima como inerentes às condições de possibilidade de sua real efetividade.

Isto fez com que, em meados 2020, já tivéssemos mais de mil inscritos e uma grande quantidade de trabalhos submetidos para apresentação no 7º Congresso.

Isto nos sinaliza sobre a necessidade de travarmos este diálogo virtual até que seja possível realizar os tradicionais congressos que já chegaram a reunir 7 mil participantes.

Blog da Saúde — Tem saído na mídia muitas matérias relatando o aumento dos problemas de saúde mental devido à pandemia. Isso está acontecendo mesmo? 

Ana Paula Guljor –Acreditamos que  este momento de pandemia pelo covid-19 nos traz questões complexas sobre o sofrimento psíquico.

O sentimento de desamparo, o luto, a insegurança quanto ao futuro, entre outras emoções geradas pelo atual momento, não necessariamente se traduzem em doenças. Mas, há, sim, um incremento real no sofrimento.

O cuidado fundamental é olhar cada sujeito em sua singularidade e, deste modo, identificar as necessidades de acolhimento e suporte de acordo com as características apresentadas por cada pessoa.

Assim, evitamos o risco de patologização e sua consequente estigmatização. Uma análise reducionista gera resposta no mesmo escopo.

A análise precisa ser complexa e considerar os diversos aspectos contextuais sejam clínicos, econômicos, sociais ou subjetivos.

Não atentar para esses fatores pode levar muitos a serem influenciados por uma lógica de mercado, cujo objetivo é a venda de medicamentos e a promoção do especialismo em várias categorias profissionais.

As pessoas que já possuíam previamente problemas de sofrimento psíquico, principalmente os de ordem mais graves, são parte desta população mais vulnerável aos agravos.

A população idosa com aspectos que vão desde a solidão no período de isolamento à dificuldade de acesso à tecnologia, impedindo a manutenção da comunicação com as redes inter-relacionais e até a dificuldade do manejo cotidiano na casa ou condições precárias de subsistência financeira, são pontos podem gerar sofrimento e causar adoecimento.

Sabidamente o rompimento de redes e restrição de liberdade geram sofrimento no campo dos Direitos Humanos.

Tanto que já temos notícias de graves violações no manejo do cuidado em hospitais psiquiátricos com internos contaminados por covid-19.

Voltando à tua pergunta. Efetivamente houve um aumento da procura por cuidado em saúde mental por motivos de várias ordens. Por exemplo, angústia advinda do medo de contaminação e morte, perda de entes próximos — muito frequente entre profissionais de saúde da linha de frente ou trabalhadores de serviços essenciais.

Enfim, esta temática daria um longo debate, mas destaco principalmente a incerteza sobre o futuro como importante fator de agravo, e sua origem é singular em cada sujeito, grupo e/ou localidade.

Blog da Saúde — O aumento e/ou agravamento do sofrimento emocional neste momento é fruto só da pandemia ou também da grave crise política e econômica que o País enfrenta?

Ana Paula Guljor –– A situação de crise que vivemos desde antes da covid-19 agravou-se de forma geométrica na pandemia.

A crise atual é uma crise política e ética com ênfase em um recorte econômico. O atual governo vem gerando o empobrecimento progressivo da população, a desassistência com uma gradual desmontagem do SUS e sua capilaridade que, se potente, teria melhores condições de ofertar mais suporte e evitar mortes.

No caso dos povos originários, a gravidade da desassistência não se traduz apenas por contaminação e morte que já seriam gravíssimos. Há também uma não proteção que destrói nossa própria história e origem.

Falamos de um caminho rumo ao caos que diariamente assistimos. O que se vê é a destruição em todas as áreas das políticas de proteção social garantidas pela Constituição cidadã de 1988.

Blog da Saúde — Isso afeta toda a população?

Ana Paula Guljor  — Acredito que afeta a população como um todo e impõe sofrimento a todo e qualquer indivíduo que possua uma visão mais ampliada e crítica.

Não somos uma ilha e não sairemos deste cenário sem ações coletivas, solidárias de redução das desigualdades.

Quem morre mais e se contamina mais é a população vulnerável com recorte de cor e classe, mas os danos serão sempre coletivos – dano existencial, moral, econômico. Dano à nossa civilidade.

Blog da Saúde — Pela programação do pré-congresso, além da clínica de saúde mental na pandemia, há temas como Democracia (resistir e enfrentar), Racismo e Direitos Humanos e Perspectivas na América Latina. Por que estes temas são tão importantes neste momento?

Blog da Saúde — Na visão da Abrasme, a saúde em seu conceito pleno não pode ser garantida sem a democracia.

Sergio Arouca, sanitarista da Fiocruz e do movimento de Reforma Sanitária brasileira já pautava esta afirmativa em fins do período da ditadura militar e em sua fala de abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986 – Saúde é democracia.

Portanto, a democracia é estruturante entre os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira.

Nesse sentido, precisamos discutir saúde mental sem perder de vista que o sofrimento psíquico grave não pode ser cuidado apenas pelo olhar sobre a doença.

O racismo e as discriminações por gênero, orientação sexual e classe precisam estar contextualizados quando se pensa em integralidade da saúde, nas necessidades do sujeito e em sua inclusão social.

Ponto importante a ser enfrentado para grande parte da clientela que hoje frequenta os dispositivos de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial, moradores dos serviços residenciais terapêuticos, pessoas acompanhadas pelos consultórios na rua etc.

Ampliar as discussões, jogar luz sobre a importância dos movimentos sociais e da luta política pela construção de estratégias participativas da sociedade para garantir as políticas de proteção social e redução das desigualdades são vitais.

Isso permite a qualificação do debate, principalmente para um público plural e aos associados que se configuram não apenas em profissionais da saúde mental, mas também usuários, familiares, gestores públicos e profissionais de outras áreas, como o Direito.

Assim, contribuímos com a instrumentalização dos vários grupos para os enfrentamentos que temos no cotidiano da saúde mental, principalmente dos riscos que hoje corremos com o atual governo.


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