Como Marta Lamas sou uma feminista inconveniente, vamos negociar?
Tempo de leitura: 18 minPor Conceição Oliveira do Blog Maria Frô, twitter: @maria_fro
Sou mulher isso me torna feminista?
Não sou uma intelectual do feminismo, quero crer que tenho uma prática de combate ao sexismo na convivência diária com homens e mulheres, próximos ou distantes. Digamos que as condições materiais me fizeram refletir sobre minhas próprias ações e discursos e a prestar muita atenção em como me educar, educar meus companheiros e educar uma menina que pari para que ela saiba que merece todo o respeito de seus semelhantes, assim como deve respeito a todos os seus semelhantes. Desejo e me esforço educando-a para que ela aprenda que tem direitos iguais aos homens, que consiga identificar sinais de opressão e reagir a eles do modo mais eficiente possível.
Eu enfrentei uma gravidez sozinha, porque me separei no primeiro mês de gestação. Não fiz aborto e defendo a discriminalização do aborto. Não acho que por ser mulher eu esteja automaticamente qualificada a falar com propriedade sobre o feminismo. Mas acho que entendo um pouco o que é ser mulher numa sociedade sexista e como mãe de uma garota de quatorze anos eu queria compartilhar dois eventos recentes.
Adolescer num universo sexista
Não é fácil ser adolescente do sexo feminino num mundo machista onde do vendedor de pastel do zoológico a um atrevido cliente de um restaurante ambos se sentem no direito de ignorar a diferença de idade, o comum acordo que se estabelece em situações de paqueras (azaração ou o termo que sua faixa geracional preferir) e investir no assédio de mão única.
O vendedor de pastel passa uma cantada, ela se mantém firme percebendo a inadequação, o amigo ri e ela educa o amigo: “Se o pasteleiro disse que para mim o queijo quente era quatro reais, você ao invés de rir poderia perguntar a ele — “Senhor e para mim, quanto custa?” E educa novamente: “Isso é sério, fulano, não ria”. Ela não riu, ela intuiu que qualquer ação de simpatia ali poderia ser lido como consentimento e ela não queria consentir. Comprou seu lanche e se afastou do engraçadinho.
Na mesa do restaurante com sua mãe presente, dois casais de amigos, mais duas adolescentes e uma jovem universitária, ela era a mais jovem. Um rapaz de 28 anos se deu ao direito de ir à mesa para incomodá-la. Estávamos sentadas na mesma fila de cadeiras, mas em pontas opostas. Conversando com os casais, não percebi a investida. Uma de minhas amigas foi a primeira a entender e me chamou a atenção, eu pensei que era o garçon. Quando compreendi, antes que eu me levantasse para perguntar ao sujeito o que ele desejava e talvez lhe dar uma joelhada no saco, ele se afastou da mesa.
Fui conversar com minha filha e ela sequer olhou para o indivíduo, não me pediu socorro e conseguiu impor limite ao assediador inconveniente, desrespeitoso e sem a menor noção de perigo.
Eu tive uma mãe que, à sua maneira, ensinou-me que somos merecedoras de respeito e que precisamos descobrir um modo de impô-los aos desrespeitosos. Também já fui inúmeras vezes assediada por sujeitos inconvenientes que se acham no direito de nos dizer gracinhas, fazer gracinhas que não tem nenhuma graça. Em um carnaval em Salvador um sujeito se achou no direito de beliscar a minha bunda. Eu me achei no direito de procurar uma pedra e atirar em sua cabeça. Sou boa de pontaria.
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Acompanhando o crescimento de minha filha, vejo como esta objetificação do corpo feminino é duradoura, persistente, agressora e parece pouco incomodar o mundo adulto masculino que consome tranquilamente as ‘gostosas’ com nomes de frutas e seus simulacros em revistas, shows, programas de tv… O problema é quando a ‘gostosa’ é nossa filha e tem apenas quatorze anos.
Vão pensando aí pais e mãe de ‘gostosas’ ou futuras ‘gostosas’ se é agradável, aceitável, confortável vermos nossas crias assediadas, sem consentimento das mesmas e, lembrem-se que nem sempre a filha está acompanhada do pai; a irmã do irmão; a namorado do namorado, a esposa do marido. Lembrem-se, a gente precisa ter direito de ir e vir sem precisar ter um homem a tira colo para que sejamos respeitadas!
As feministas no centro do debate?
Na semana passada um erro do jornalista e blogueiro Luis Nassif desencadeou a reação das feministas e no meio de tantos ruídos, teimosias, um certo oportunismo e uma profunda generalização a blogosfera tornou-se um lugar de muitas intolerâncias.
No auge do quiprocó ouvi de feministas blogueiras e de blogueiros de ‘esquerda’ uma cobrança de tomada de posição: eu como feminista deveria me opor ao Nassif, não bastava que eu deixasse claro que considerava o termo feminazi inadequado, que não aprovava o tratamento dado no twitter às mulheres diante dos primeiros enfrentamentos e sugerisse a ele algumas leituras. Assisti um pouco incrédula Nassif virar chacota na rede e meter os pés pelas mãos.
Também o vi se desculpar, mas para algumas e alguns isso não foi suficiente, mesmo que a pessoa que ele efetivamente agrediu e magoou, ele tenha telefonado para se desculpar diretamente e a pessoa tenha ficado feliz com o ato (é sempre bom ouvirmos desculpas sinceras). Tenho cá para mim que a partir de agora os leitores de Nassif terão chance de conhecer o belo trabalho da Marcha Mundial das Mulheres. De minha parte isso é muito importante. Mas há os descontentes.
Continuo assistindo incrédula que após um equívoco e a inabilidade de se lidar com o erro possa ser transformados na ruína moral de uma pessoa e inúmeros blogueiros e blogueiras contrários aos machistas progressistas (e descontentes com a Amélia progressista que vos fala) transformem Nassif e mais 300 blogueiros e blogueiras em Judas de sábado de Aleluia.
A guerra teve alguns protagonistas, todos se consideram acima de qualquer suspeita e no direito de colocar o dedo na fuça do outro e estabelecer os parâmetros de conduta e fazer julgamentos em praça pública e impingir estereótipos. Foram raríssimos os textos equilibrados que, sem desconhecer a razão das mulheres, consideraram o julgamento de Nassif em praça pública virtual algo excessivo.
Colocou-se em questão o caráter das pessoas, avacalhou-se com as mulheres que não resolveram linchar o Nassif: ‘nassifetes’ nos tornamos, achei curioso, eu, por exemplo, não sou leitora diária do Nassif e me aproximei mais dele durante esta contenda. Tenho para mim que é sempre bom ouvir as pessoas, dialogar, mostrar nosso ponto de vista, mesmo quando discordamos.
Na semana seguinte, de ambos lados da contenda investigou-se as posições políticas, as ideologias, decretou-se que os blogueiros progressistas são machistas (eles não linkam blogs femininos e feministas em seu blogroll, mesmo que entre os blogueiros da comissão organizadora três deles apenas tenham blogroll); eles não chamaram blogueiras para a entrevista com o presidente (mesmo que os três grandes ‘blogueiros progressistas machistas’ não estivessem na entrevista e mesmo que Rovai que ficou com a batata quente na mão nas negociações com o Blog do Planalto tenha sim feito o convite para quatro mulheres e elas por diferentes motivos não tenham ido e a amélia progressista aqui (uma das convidadas) tenha avaliado que por ser uma entrevista com blogueiros fazer a questão pela twitcam não me tornava menos mulher ou menos blogueira. Com a entrada de Idelber no debate exige-se também que escolhamos o lado, as armas.
Investigou-se de que lado esteve A ou B na contenda X e Y, quantos links tinham, quantos livros leu… Com campos assim tão delimitados ai de você sendo mulher ou homem que ousasse discordar dos grupos em contenda: vira macho sexista, amélia progressista, feminista barraqueira, intelectual de araque e por aí vai.
Assisti durante essas duas últimas semanas uma verdadeira cruzada contra reputações. Desculpem-me os que adoram ver o circo pegar fogo, que não conseguem entender que a internet ficou monocórdica, que faz tempo que este debate deixou de ser em torno do uso equivocado de um termo por um blogueiro e que dificilmente algum lado sairá vencedor. Para mim deu, faz tempo que meu limite para esta contenda ultrapassou.
As blogueiras feministas
A blogosfera brasileira (de esquerda, pois parece que virou palavrão falar progressista) tem muita mulher, eu não conheço todas, mas este embróglio me fez conhecer várias delas.
Estas blogueiras não têm tabus, em suas diferenças discutem de tudo deste universo dos seres que sangram todo mês em idade fértil se não estiverem em gestação. Quando eu digo tudo é tudo mesmo: falamos de literatura, arte, estereótipos, propaganda, hábitos, desabafamos, debatemos calorosamente. Por vezes um post nos anima a discutir ou a discussão vira um post.
Já debatemos, por exemplo, como nos incomodam as propagandas sexistas que atormentam nossos meninos e meninas desde a mais tenra infância estimulando um consumismo extremo, com mundos divididos em clube do bolinha e da luluzinha, com meninas sendo educadas para vestir rosa, para a maquiagem, a maternidade, as tarefas domésticas e os meninos para voarem até à lua e lutarem com monstros alienígenas. Nós estamos em pleno século XXI e parece que os publicitários não dão a menor bola para que os educadores falam e parece que nossos políticos não estão muito preocupados não. A Bárbara fez um post interessante sobre isso esses dias (A Alma do Negócio). Além do que ela aponta e a discussão proposta pelo vídeo selecionado no seu post ao assistir canais infantis e ver as propagandas salta aos olhos como são raros os brinquedos onde meninos e meninas podem brincar juntos, compartilhar e se sujar! É impressionante como o discurso publicitário insiste em convencer os pais a comprar o tal brinquedo asséptico que não vai dar trabalho!
Nós também falamos de depilação para homens e mulheres, falamos de coletores menstruais. Coletores menstruais? Nunca ouviu falar? A Iara do Foi feito pra isso te explica e talvez leitores e leitoras entendam que com um pouco de habilidade as mulheres podem fazer dar samba dois temas: ciclo menstrual e meio ambiente.
As blogueiras feministas tem um blog coletivo fruto da lista que nasceu de um acirrado e profícuo debate sobre se feministas votavam ou não no Netinho: Blogueiras Feministas.
Claro que a discussão que abalou Bangu da blogosfera também fez parte do nosso debate interno na lista, mas muitas de nós anda achando que essa discussão não tem mais nada a ver com o feminismo.
Reavaliando nossos discursos
Somos agredidas simbolicamente e, por vezes, fisicamente. Sujeitos inconvenientes como os que apontei no início deste texto, por vezes, em conluio com outras mulheres, deixam de ser apenas inconvenientes e partem para a pura e simples violência sexual, corpos virgens são rifados para deleite desses seres. Triste mundo onde todos se transformam em mercadorias e mercadores.
Quando as minhas amigas feministas ‘radicais’ montam o barraco, rodam a baiana, penso que essas e outras questões as movem na indignação, justíssima indignação. Mas parece que há um limite. O que será que nós mulheres precisamos fazer para nos fazer compreender? Parece que estamos sendo ineficientes em nossa luta, em nossa indignação. Parece que não estamos conseguindo deixar claro aos nossos companheiros de luta e àqueles que, de algum modo, não são ogros inconvenientes que a luta pela igualdade de direitos das mulheres (incluindo neles o direito de uma adolescente de 14 anos poder comprar um queijo quente sem ouvir gracinhas ou sentar-se à mesa de restaurante com a sua mãe sem que um sem noção venha chavecar) não é uma luta contra os homens, mas contra a opressão sobre nós.
Lendo a entrevista que a antropóloga feminista mexicana Marta Lamas deu ao Página 12 percebi que muitas das minhas inquietações em torno de um discurso e práticas eficientes contra o sexismo e em prol da igualdade dos direitos estavam ali presentes. Apesar de discordar de algumas questões pontuais (não acho que machismo seja um problema de classe e idade, por exemplo), me descobri uma feminista inconveniente; tem hora que acho que somos chatas e falamos demais e não conseguimos que nos ouçam.
Depois das minhas, fiquem com as provocações da antropóloga feminista mexicana.
A má fama
Por: Flor Monfort Do Página 12, via Crônicas e Críticas da América Latina (em espanhol)
Tradução: Victor Farinelli
19/12/2010

Depois de 40 anos de feminismo, a mexicana Marta Lamas se cansou da horizontalidade que caracteriza o movimento, e também do discurso reativo. Se não houvesse cedido a usar salto e maquiar-se o suficiente, diz, não haveria sido tão escutada na hora de conseguir a descriminalização do aborto no Distrito Federal mexicano, já vigente há três anos. Se por esses detalhes deve ser criticada pelas ativistas do seu país, a antropóloga e docente da Universidade Autônoma do México, criadora do Grupo de Informação em Reprodução Escolhida (GIRE), as critica também, pela intransigência que não serve para somar empenho em prol das conquistas desejadas. Lamas, diretora e fundadora da revista Debate Feminista, uma das publicações que marcaram a agenda de gênero na América Latina, propõe uma revolução na linguagem e no discurso para que o feminismo se faça escutar.
O encontro se deu na ComisSão de Direitos Humanos do Distrito Federal do México. No Dia da Não Violência Contra as Mulheres, Marta Lamas se preparava para acompanhar suas grandes amigas e companheiras de luta, Marisa Belausteguigoitia e Consuelo Mejía, detentoras do Prêmio Hermila Galindo, um reconhecimento aos que impulsionam a igualdade de gênero. “Eu não aceito prêmios”, disse quando lhe perguntei se ela também o havia recebido. “É que não aceito que me premiem por fazer o meu trabalho”, agregou. Tampouco permitiu, na entrada da sala, que lhe pusessem uma fita lilás: “Quando for pela violência contra mulheres e homens, eu a colocarei”, explicou à moça que tentou prendê-la em sua jaqueta. Quando começou o ato, solene e coreografado, Lamas começou a passar recados. “Quando chamarem a Marisa fazemos “el Goya”, lhes dizia a outras mulheres. Dois, três, dez poltronas atrás, as pessoas foram se avisando. Quando Belausteguigoitia, diretora do Programa Universitário de Estudos de Gênero da UNAM, subiu ao palanque, todas as que escutaram o recado de Lamas se levantaram e quebraram o silêncio com o Cântico que caracteriza a universidade, canto que desde os Anos 40 se usa para salvar o time de futebol, mas que já é um grito de guerra do espírito que caracteriza a instituição.
É que Lamas gosta de agitar, discutir, se chatear e conciliar, repensar estratégias quando as anteriores não dão resultado, mas sobretudo, insiste em reconhecer, no aparato político existente, a matéria com a que deve aprender a negociar para ter resultados visíveis, palpáveis na vida das mulheres.
Filha de pais argentinos tem conhecimento do debate legislativo que transita na Argentina, para descriminalizar o aborto, luta que carregou nos ombros desde 1991, em seu país, e a qual conseguiu, por fim, uma legislação positiva no Distrito Federal mexicano, em 2006.
P12 Como o alcançaram?
– Com uma mudança de discurso. Se eu digo “meu corpo é meu e faço o que quero com ele”, de alguma forma estou irritando muita gente, porque se seu corpo é seu, os demais não se sentirão comprometidos com a sua causa pessoal. Se, ao invés disso, digo, “o aborto é um problema de saúde pública, um problema de justiça social e um problema da democracia”, vou encontrar muita gente que se sente incluída ou comprometida. Então, foi basicamente mudar o discurso, tirar da simples discussão de “Aborto sim ou aborto não”.
Começamos a fazer inserções pagas na mídia, mas conseguindo a adesão de Octavio Paz, Carlos Monsiváis, Carlos Fuentes, para torná-lo um tema da sociedade progressista ilustrada, não meramente das feministas. E, obviamente, houve feministas que não gostou que fizéssemos isso, porque deixou de ser seu tema e passou a ser um tema da sociedade, mas foi justamente quando se tornou tema da sociedade que os políticos se deram conta de que se Monsiváis ou Fuentes diziam que havia que descriminalizar, então não era só um problema das loucas feministas. (grifos nossos). Mas não é fácil, são estratégias. Aos políticos é preciso ajudá-los, armar para eles um discurso, e com isso se deve aprender a não ser protagonista. (essa fala vai revoltar muitas de minhas companheiras)
P12 Por que há tantas mulheres jovens, inteligentes e autônomas que não estão dispostas a lutar pelas causas feministas? Houve um fracasso na militância?
– Creio que é uma reação generacional. As jovens necessitam se diferenciar das que as antecederam, e as jovens, pelo menos no México, não estão se casando antes dos 30 anos (eu me casei aos 19, veja a diferença), e creio que sua vida é diferente. Então até que não enfrentem a discriminação no trabalho ou o peso da maternidade solitária, não terão as condições materiais, como diria Marx, para se dar conta de que existe a discriminação, e que afeta também a elas.
Você se torna feminista porque vê certas situações que machucam. Eu vejo com minhas alunas, que variam entre 22 e 34 anos, têm interesses por outras coisas, como o ambientalismo, por exemplo, outro tipo de lutas sociais. E o feminismo se vê como uma coisa antiquada, do tempo das suas mães. Por outro lado, as coisas que sofríamos há 40 anos não são as mesmas que sofrem as mulheres jovens de hoje em dia. Quando se é jovem, existe a ilusão de que sua vida será diferente do que se conhece, junta uma quantidade de projetos, e depois a vida vai impondo seus limites. A atual geração não costuma escutar as mães dizendo “você fica lavando os pratos para que seu irmão possa ir jogar futebol”.
P12 Certo, mas esse tratamento diferenciado ainda existe, talvez seja mais sutil, mas existe…
– Exato, é mais sutil. Ainda existe, mas não é tão evidente e, além disso, há um discurso social sobre a quantidade de opções que temos. Então, creio que uma mescla de tudo isso resulta no fato de que muitas jovens não se assumam como feministas. E também há o fator deste ser o continente de um feminismo que é muito intolerante, muito sectário. Não necessariamente todas as feministas são sensatas e amáveis; tem algumas que estão muito irritadas e transmitem uma imagem muito agressiva. (grifos nossos) Se temos muitas jovens que querem ter relacionamentos com homens, e isso contrasta com que há um discurso de um setor do feminismo que é muito anti-homens. (nossinhora! Mas não se assanhem fãs do André.)
No Encontro Feminista deste ano, havia um grupo de moças que questionava por que não deixam entrar os homens, se isto também se trata de que eles mudem, ou não? E muitas mulheres diziam que não; houve outro grande debate para ver se entravam as trans. Então, tudo isso está marcado generacionalmente.
P12 Tampouco há uma empatia ou identificação geral com o tema da violência de gênero. Quando uma mulher é morta a golpes por seu parceiro, mesmo após o caso se tornar público, ainda resiste um ar de que faz parecer um crime privado, sobre o qual não se pode opinar.
– Creio que a falta de empatia é com o discurso vitimizante. Isso acontece também aqui na Argentina, e está relacionado com o fato de haver violência de vários tipos. O tema violência é muito complicado, e gera debates como: por que vamos valorizar mais a morte de uma moça assassinada a golpes que a de um sujeito atingido por uma bala perdida da polícia? Sei que são casos diferentes, e problemas diferentes, mas trato de explicar o porquê dessa falta de empatia. Também é verdade que a empatia tem a ver com a identificação, e pode haver muitas mulheres com medo de se identificar com as maltratadas e assassinadas, preferem minimizar, não ver o problema, e o discurso tão vitimizante de “todos os homens são maus” não as convence. Ou seja, alguns homens batem nas mulheres, assim como algumas mulheres batem em seus filhos, e isso tampouco se visualiza. Então, creio que se trata de não reduzir situações sociais complexas a um estereótipo.
P12 Mas a militância também precisa dessas reduções para operar, se não é impossível. Se a militância não exacerba algumas questões, seu discurso termina sendo velado.
– Eu sei, mas veja, creio que o que a militância tem de fazer, e isso foi dito por Celia Amorós, é conceitualizar, porque é a única maneira de politizar as questões. Se você conceitualiza bem o que está passando com esse homem que mata a golpes a essa mulher e se pergunta: quando esse homem era um menino, como sua mão o tratou? E pode ver toda uma cadeia de coisas, e quiçá isso, dê visibilidade ao tema e soe menos redutivo que “o homem que matou a mulher a golpes”. É evidente que pesam também os medos que essas pessoas têm, as resistências…
P12 Parece que o feminismo, como pensamento crítico, não é capaz dessa conceitualização efetiva. Quando uma mulher é estuprada ou assassinada por um homem, se fala de como ela estava vestida, se o provocou o se era ou não atraente. Até mesmo o Estado recebe às vítimas de violência sexual com esse preconceito.
– Sim, é fato. Como também foi dito por Catherine Gallagher, que fala muito a respeito de como se necessita falar “das mulheres” para buscar visibilidade, mas como, ao fazê-lo, soa piegas como para não permitir que muitas pessoas se identifiquem, tanto homens como mulheres. Porque existem homens que até se identificariam mais com essa etiqueta que suas companheiras mulheres. Eu diria que tudo está relacionado com a classe social e a idade. Há muitos rapazes que realmente se importam com o tema e se posicionam contra a desigualdade, mas são jovens de classe média alta, universitários, politizados e interessados. O complicado de generalizar é isso. O feminismo deveria poder transmitir uma idéia não essencialista (grifos nossos), com a suficiente complexidade para reconhecer que nem todas as mulheres são vítimas ou boas, há mulheres más e vitimizadoras, e nem todos os homens são maus e vitimizadores, também há os que são solidários e vítimas.
P12 Assumir a diversidade entre os rols mais estereotipados.
– E observar: quais são os eixos majoritários de conduta? A maioria das agressões entre um casal se dá de homens a mulheres, e a maioria das agressões a crianças partem das mulheres, sobre seus filhos, então é muito difícil montar um discurso político com tantos matizes, mas no México levamos 40 anos de feminismo. Se, depois de 40 anos, não se pode reformular um discurso mais matizado e mais localizado, as pessoas dirão: “é o mesmo de sempre”. É um problema das feministas em todo o mundo: como fazer para falar de algo que existe – a desigualdade entre homens e mulheres – e, ao mesmo tempo, reconhecer que as coisas estão mudando, e que também há mulheres que se aproveitam disso. Por exemplo, com a lei de guardar vagas. Aqui no México temos garotas que entraram porque o namorado, ou o irmão lhes disse “entra e depois desiste que eu entro no seu lugar”, e enfim, são mulheres. Então, creio que o assunto principal é romper a ideia essencialista do que é uma mulher e o que é um homem, e reconhecer que há muitas maneiras de ser homem, e muitas de ser mulher. (grifos nossos)
P12 E os mitos sobre o amor e o sacrifício? As ficções e os relatos que travam aos adolescentes que mantêm essa premissa do romance como algo doloroso, que se deve suportar para finalmente ser feliz. Não é necessário derrubar também isso? É possível fazê-lo?
– Aí entra o tema da subjetividade, não é só o mito, é que a construção da feminilidade e da masculinidade, na tradição judeu-cristã de Ocidente, leva séculos e exige certo tipo de desenvolvimento, de atitude, de sentimentos, de abnegação, de que as mulheres são ternas e os homens são fortes e valorosos. Toda essa questão que se viu como complemento entre os sexos está começando a se desmontar, mas ainda vamos tardar mais de um século nisso, nós não vamos ver a conclusão dessa mudança.
As mudanças culturais são coisa de séculos, nós começamos na metade do Século XX a fazer mudar temas da sexualidade, por causa dos anticoncepcionais, e ainda hoje existe uma moral sexual dúbia que castiga as mulheres que têm uma vida sexual livre tachando-as de promíscuas, galinhas, putas, etc.; e os homens não. Levamos 50 anos de mudanças impressionantes, também em temas da maternidade, com os ventres de aluguel e a doação de óvulos, mas ainda nos falta. Ademais, a capacidade dos seres humanos de simbolizar não vai se perder, e como se simbolizam a diferença sexual? É claro que existem elementos que não podemos medir, que implicam em uma questão biológica: não é a mesma coisa ter ou não ter certo tipo de testosterona no corpo.
P12 Aí se coloca em jogo o quanto de biologia e quanto de cultura…
– E isso é muito difícil de responder, porque, desde que nascem, meninos e meninas são tratados de formas distintas, em relação à cultura, a linguagem, então, de antemão está a perspectiva de que se é menina se vestirá de rosa e se é menino se vestirá de azul… É muito difícil separar biologia e cultura, talvez seja impossível.
P12 Também há teorias atuais das neurociências, sobretudo nos Estados Unidos, que afirmam, apesar dos 50 anos de luta feminista, que o cérebro da mulher está feito para cuidar e o do homem para triunfar.
– Os ianques têm feito questionamentos muito interessantes às neurociências, desde os quais lhes puseram limites, e por exemplo, nesse caso, evidentemente, não era por aí. Se por um lado o poder da linguagem é impressionante, há sociedades que puderam estabelecer uma espécie de neutro, ao invés de masculino e feminino, e creio que daí foi possível fazer uma série de mudanças simbólicas muito importantes. Em castelhano é muito difícil, temos que dizer “el antropólogo” ou “la antropóloga” (nota do tradutor: a mesma obrigatoriedade do sufixo generativo que impõe o português, “o antropólogo” ou “a antropóloga”), quando digamos “antropologue”… Há um filólogo maravilhoso, morto recentemente, Antonio Latorre, que dizia que temos que começar a usar o “e”: les estudiantes (nota do tradutor: o mesmo poderia ser proposto ao português, um sufixo que simbolizasse uma figura neutra).
P12 No feminismo parece haver uma divisão entre acadêmicas e ativistas. Essa fratura dificulta o trabalho ou o retroalimenta?
– No México, há muitas acadêmicas que estão vinculadas com grupos de indígenas, grupos de trabalhadoras domésticas e não há tanta separação entre teoria e práctica. Aqui, a divisão se deu muito mais entre as chamadas autônomas e as institucionais, as que decidiram formar associações civis ou ONGs, e tentar incidir dali (as reformistas), e as que querem conservar uma certa pureza, então, não querem fazer nada com o governo, querem criar uma cultura só de mulheres feministas.
Creio que todo grupo ideológico tem, no seu seio, diferenças e confrontos. O problema é dar a possibilidade de debater as diferenças e não estigmatizar. Creio que não querer dialogar é imaturidade política: os grupos sectários, para mim, são bastante ignorantes. (grifos nossos). Vejo que no México há muitas feministas acadêmicas que têm uma inserção de ativismo e não ocorre o mesmo com os grupos mais culturalistas, mais radicalizados, que somente funcionam no seu circuito: só lêem umas as outras, só publicam umas as outras, não lhes interessa o pensamento intelectual dos homens, e há homens que também servem para articular nosso discurso, obviamente. Não creio no feminismo, creio nas feministas, distintas e variadas. Creio que necessitamos mulheres políticas, senadoras, deputadas, juízas, intelectuais e funcionárias.
P12 Também está claro que as leis, às vezes, nos servem, mas falta que elas se estabeleçam culturalmente, e para emplacar mudanças culturais é muito difícil trabalhar rápido. Como elaborar estratégias para acelerar alguns processos?
– A lei é como um quadro, não serve para tudo. O que necessitamos é processar a subjetividade, e um debate público. Se tivéssemos, por exemplo, num bom horário televisivo, às duas ou três pessoas mais lúcidas do movimento feminista, juízas, advogadas, psicanalistas etc, falando de como a criação dos filhos fará ou não com que um homem adulto se torne um espancador, estaremos desatando processos na subjetividade. O que necessitamos é de intervenções simbólicas, comunicação social bem pensada (grifos nossos). A lei é letra morta. Eu, às vezes, leio as demandas feministas como uma lista de desejos de uma criança ao Papai Noel, se daí você parte prá “quero um canal de televisão”, “quero uma estação de rádio” etc, estará ajudando a mudar a ordem simbólica, que é o que nós queremos mudar. Imagine se houvesse telenovelas feministas. Não seria maravilhoso? Mas não temos escritoras feministas fazendo roteiros de televisão.
P12 Mas você está agora num programa de televisão muito visto no México, “El Mañanero” (O Madrugador), todas as semanas. Que repercussão teve?
– É em televisão aberta e chega às camadas mais populares do país. Me dão meia hora e os taxistas me reconhecem e me comentam. Sobre isso temos que apontar: venho formando quadros acadêmicos há 40 anos, mudamos leis como a do aborto aqui na Cidade do México, mas entendo que é preciso fazer tudo ao mesmo tempo. A Miss Universo 2010 é mexicana, então quando saiu, disseram à diretora do Instituto das Mulheres do Distrito Federal mexicano, que é uma feminista sensacional, mas que se equivocou, porque disse que o Miss Universo era um concurso de cabeças de gado que lhe dava vergonha. Imagine o choque de toda essa gente que se encanta com o concurso e se sente orgulhosa…
Então teve de se retificar, devido às queixas. Portanto, temos má fama, carregamos um estigma, não temos recursos, não temos poder, não somos uma potência econômica, não podemos impor nossa agenda aos partidos políticos nem nas discussões públicas, não temos canal de televisão… então temos que ser inteligentes e buscar de que maneira fazemos atraente nosso discurso e nossa proposta para as pessoas. (grifos nossos)
P12 Com a violência acontece o mesmo?
– Claro, parece que é um tema somente das feministas, e para mim é um erro. No México, a lei para eliminar a violência de gênero aponta como uma das causas o desamor. Em termos jurídicos, é uma imbecilidade. Os juristas sérios deste país se riem dessa lei. Imagine que se a violência é um ato de desamor, quem define isso? Essa é a lei que as feministas defendem, ao invés de dizer que foi uma primeira tentativa, que é preciso melhorar. Veja, nos dias em que íamos à Câmara dos Deputados fala do tema do aborto, nós púnhamos meias, salto alto, nos pintávamos, toda aquela coisa… e as outras mulheres diziam que essas eram concessões que não estavam dispostas a fazer. Eu sim estava disposta.
Talvez há 40 anos não, mas decidi deixar de fazer meu trabalho dentro das regras do movimento feminista, porque para mim era muito desgastante, a horizontalidade me parece perfeita, aprendi muito e desenvolvi um montão de coisas. Mas, há 20 anos, disse: agora chega, vou fazer uma organização vertical, vou ser a diretora e vou trabalhar de frente com os que tomam as decisões. Quem são os que tomam as decisões no nosso país? Os políticos, os meios de comunicação e os funcionários. Fizemos palestras com jornalistas, falamos com os políticos (grifos nossos) e lhes dissemos: “Olha, o presidente da França acaba de dizer que ainda ele sendo católico, não pode tomar esta decisão em nome de todos os franceses. Vocês, o que pensam disso?
Expor o tema de forma em que os demais possam se convencer. Por que um político se interessaria por essa conversa de que “o corpo é meu”? Mas se eu digo que o presidente da França, se sente interpelado… Tem um livro do Serge Moscovici, “Psicologia das Minorias Ativas”, onde ele diz que uma minoria, por menor que seja, pode chegar a se converter em interlocutor da maioria, na medida em que é constante. Então, se você é sério com o seu tema e lhe trabalha arduamente, em algum momento ele se transforma numa referência. (grifos nossos)
Nós mesmas nos propomos justamente isso no GIRE (Grupo de Informação em Reprodução Escolhida), em 1991, e não conseguimos a descriminalização do aborto porque nossos deputados são bonzinhos e convencidos. Jogamos com a conjuntura política, e quando eles decidiram dar uma brechinha, nós já tínhamos o projeto escrito, ou seja, é preciso estar preparado. Os políticos não se movem pela justiça nem pela vida das mulheres, se movem por seu prestígio pessoal, então, é aí onde é preciso mudar a estratégia.
E isso, para muitas feministas, é quase claudicar, nos princípios. Creio que neste momento, já são três anos com o aborto descriminalizado, temos hordas de garotas que fazem abortos gratuitos e seguros. Que me critiquem minhas companheiras feministas, não me importa. Me importa que estas mulheres não tenham que arriscar suas vidas num aborto clandestino.
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