Corumbá silenciou no ato de 14 de dezembro
Não é que, injustificável e inexplicavelmente, o bastião trabalhista dos anos 1950-60 e depois reduto oposicionista ao regime de 1964 — responsável pela histórica eleição de Wilson Barbosa Martins como primeiro governador democraticamente eleito em 1982 –, determinante na eleição de José Orcírio Miranda dos Santos, o “candidato azarão”, em 1998, se silenciou no ato nacional pela soberania popular de domingo?
Por Ahmad Schabib Hany*, no blog O caminho se faz ao caminhar
Bem que tentaram. O incansável companheiro Anísio Guilherme da Fonseca [conhecido como professor Anísio Guató], ao acolher a proposta de realizar o ato de domingo, dia 14 de dezembro, na feira-livre, no meio da manhã, ficou mais de uma hora esperando a chegada de cidadãs e cidadãos desassossegados para entoar o repúdio ao golpismo pela cúpula da Câmara Federal e Senado da República.
A incansável professora Mônica e três de minhas irmãs estiveram presentes, como cidadãs conscientes do significado histórico — e prático — do Estado Democrático de Direito.
Manifestação silenciosa e legítima, ainda que imperceptível para o grande público.
Sem panfletos, amplificador de som e uma estratégia elementar para um ato público dessa relevância, o emblemático manifesto de indignação foi marcado pelo silêncio. E certos dirigentes sindicais e partidários questionam por que não realizamos, ainda que sem qualquer apoio logístico!
Ora, em pleno Estado Democrático de Direito, para que servem as organizações da sociedade civil senão se querem se somar às manifestações legítimas da cidadania? Claro, precisamos dar um desconto aos pobres burocratas, que sequer conhecem a história das conquistas das classes oprimidas.
Como as tantas tentativas de protesto durante a longa noite que desabou sobre a sociedade civil brasileira entre os anos de chumbo e o burburinho rebelde do final dos anos 1970.
O martírio de Vladimir Herzog, Manoel Fiel Filho e Santo Dias, cada um ao seu tempo, foi determinante para esse levante da sociedade civil, em que o corajoso engajamento de Dom Paulo Evaristo Arns, da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Associação Brasileira de Imprensa (ABI) exerceram um protagonismo indiscutível.
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Na rebelde e cosmopolita Corumbá de meados dos anos 1970, da maneira mais discreta possível, os desassossegados de então faziam suas vigílias como se vivêssemos na Idade Média, tamanha a repressão.
O querido e saudoso escritor Adolpho Jorge da Cunha — autor de trilogia que faz resgate histórico da poaia, ou ipecacuanha em Corumbá e Cáceres –, proprietário do Hotel Luzia, situado à rua XV de Novembro (onde atualmente se situa o Lincoln), era o mais dedicado dos organizadores.
Nas poucas oportunidades em que a Vida me propiciou momentos de conversa franca com esse baluarte da resistência, nos advertiu que quando o fascismo acena, é hora de ousar, empreender contra, sem hesitar.
Uma pena que os burocratas de sindicatos, partidos e coletivos corumbaenses de hoje não tivessem conhecido os protagonistas da resistência à ditadura em Corumbá. Porque os tais “luas pretas” — para usar locução nominal criada pelo imortal Brizola –, a bem da verdade, só deram as caras depois de derrotada a ditadura, em 1985. Enquanto viver, darei-me o direito — na verdade, o dever iniludível — de afirmá-lo e reafirmá-lo.
Se o ato tivesse sido público hoje na Corumbá de vergonhosos medos e conchavos, o meu manifesto seria tornado público antes de publicado por escrito.
Eis a íntegra, até porque bajulador de tiranos e ditadores não intimidam nem amedrontam os que têm consciência política e, sobretudo, de classe. Mas vamos à íntegra do manifesto, a seguir.
SEM ANISTIA, SEM DOSIMETRIA, SEM PATIFARIA!
Pela soberania, pela democracia, pelo respeito ao povo brasileiro!
Têm, sim, que cumprir a pena quem atentou contra o estado de direito, usou o cargo para liderar uma trama golpista, não reconheceu sua derrota eleitoral, planejou assassinar, com requintes de crueldade, o presidente eleito, o vice-presidente eleito e o presidente da Corte Superior Eleitoral, usando ilegalmente prerrogativas conferidas pelo cargo de presidente, ministro, comandante, assessor e auxiliar da Presidência!
Quem ousou invadir e destruir o patrimônio público, as sedes dos Três Poderes da República, com o maior cinismo, à luz do dia, sem pudor nem comedimento, não têm anistia, nem dosimetria.
Trata-se de fazer valer o que está no arcabouço jurídico brasileiro. Nem mais, nem menos. E sem casuísmos! Não é que eles mesmos vivem a bradar que “bandido bom é bandido morto”?! E agora, amarelam, como covardes que são — aliás, que sempre foram.
Eles têm procurado “naturalizar” os crimes que cometeram para manter o seu “mito” no poder. O cara passou quatro anos falando e fazendo besteiras em vez de trabalhar! Não conseguiu se eleger porque não teve competência, capacidade, e agora vem com “mi-mi-mi”! Ora, cresça e apareça!
Sem ir longe, na Argentina a pena para esse tipo de crime é prisão perpétua. Ou eles não sabiam que generais da ditadura e altos oficiais golpistas de lá estão até hoje na prisão, sem direito a perdão, qualquer indulto ou anistia?
Na França e na Itália, a lei é bem mais dura: quem comete golpe ou crime de lesa-pátria é condenado à pena capital, isto é, à pena de morte, simples assim. Porque golpista que não é punido volta a praticar o crime, e quando o consuma faz verdadeiro massacre, quando não um genocídio, e destrói todas as instituições do país.
É chegada a hora de dar um basta aos golpistas e seus asseclas que vêm brincando com coisa séria. Não se trata de pauta-bomba, muito menos de pataquada! O Congresso Nacional teve suas prerrogativas resgatadas pelo movimento popular pró-constituinte durante a Nova República.
Se hoje todos têm liberdades é porque nós as conquistamos, e não abrimos mão de sua proteção! Golpistas têm, sim, que ir para a prisão, não importa o cargo ou a patente! Nossa geração foi às ruas e foi atrás da organização da sociedade civil em todo o Brasil para conquistar as liberdades democráticas e fazer a nova Constituição.
As Diretas-Já e a Constituinte foram conquistas de toda uma vida, e que permitiram a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), entre tantas outras leis. Leis que permitiram transformar em direitos efetivos e políticas públicas velhas demandas do povo brasileiro, que durante décadas eram reivindicadas e prometidas, mas não realizadas.
Fomos nós, nas ruas e com muita batalha, que conquistamos também a revogação, a anulação, do entulho autoritário — todos os decretos e atos institucionais da ditadura que tiravam direitos e permitiam abusos autoritários, como prisão sem ordem judicial, habeas corpus e proteção aos presos. Pois é, eles defendem que preso seja torturado e morto. Nós, ao contrário, asseguramos que seja protegido, como o seu “mito” está sendo.
Não permitiremos que voltem, sob outros nomes, pretextos ou argumentos, essas leis que envergonham as instituições democráticas no Brasil e no mundo. As leis têm que ser iguais para todos: “pau que bate em Chico, bate em Francisco”, ensina a sabedoria popular.
Por que o ato contra as traquinagens de Hugo Motta e seus aliados?
Um garoto mimado do interior do Brasil profundo não pode enxovalhar e muito menos pôr em risco a governabilidade, o Estado Democrático de Direito. Como bem disse o jurista Lenio Streck, como um menino sem vivência legislativa pôde ter sido guindado à presidência da Câmara dos Deputados? Até porque é o terceiro na linha sucessória.
Ao impor pautas-bomba sem qualquer pudor ou articulação com as forças que compõem o Congresso Nacional, ele tem agido mais como um militante que como presidente de uma das Casas do Parlamento!
É um deboche, um acinte à nação: a sociedade civil precisa pôr um limite à sanha golpista que ainda teima impor seus delírios fascistas no lombo da população!
Sem anistia, sem dosimetria, sem patifaria!
Pela soberania, pela democracia, pelo respeito ao povo brasileiro!
Reitero: quem atentou contra o Estado de Direito, usou o cargo para liderar uma corja golpista, não reconheceu sua derrota eleitoral, planejou assassinar, com requintes de crueldade, o presidente eleito, o vice-presidente eleito e o presidente da Corte Superior Eleitoral, usando ilegalmente prerrogativas conferidas pelo cargo de presidente, ministro, comandante, assessor e auxiliar da Presidência, têm, sim, que cumprir pena, e ponto final!
*Ahmad Schabib Hany é graduado em História, já lecionou a disciplina em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Ativista de movimentos por democracia, direitos humanos, cidadania, saúde pública, povos indígenas, preservação do meio ambiente. Atualmente, está empenhado na criação da Universidade Federal do Pantanal, em torno da qual se reúne o Movimento UFPantanal.




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