Nelice Pompeu: Ser mulher é viver sob risco constante

Tempo de leitura: 4 min
Catarina Kasten, assassinada. Taynara Souza Santos, teve as pernas amputadas. Layse Costa Pinheiro e Allane de Souza Pedrotti Mattos, assassinadas. Lais Angeli Gamarra, agredida por influencer. Fotos: Reprodução de internet

Por Nelice Pompeu*

Todo dia, o Brasil acorda com mais um nome interrompido.

Cada feminicídio dilacera uma família inteira, desfaz futuros e reafirma que, neste país, basta existir como mulher para viver sob risco constante.

Essa violência nasce do machismo estrutural enraizado no cotidiano, da sociedade patriarcal que impõe limites e de uma misoginia tratada por muitos como se fosse parte natural da vida.

É impossível encontrar uma mulher que não tenha sofrido algum tipo de violência simplesmente por ser mulher.

Enquanto escrevo, outros casos estão acontecendo. Em alguma casa, em alguma rua, atrás de uma porta trancada ou diante de olhares que escolhem não ver, uma mulher tenta sobreviver. Muitas vezes ela está ao nosso lado, é uma amiga que carrega um pedido de ajuda silencioso.

A misoginia e o machismo percorrem lares, ruas, instituições, trabalhos, universidades, a política e as redes sociais.

Eles se manifestam quando um homem decide que uma mulher não pode liderar, quando outro afirma que se ela não for dele não será de mais ninguém, quando um agressor vigia, persegue e pune como se tivesse posse.

Também eles surgem quando mulheres reforçam discursos que sustentam o patriarcado e mantêm vivo esse ciclo de violência.

É preciso dizer sem temor que o machismo não está restrito à extrema direita. Ele também se infiltra no campo progressista, onde muitas vezes se esconde atrás de discursos corretos e práticas contraditórias.

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A naturalização de tudo isso fortalece a impunidade e sustenta o silêncio que sufoca vítimas e protege agressores.

A violência contra a mulher assume formas físicas, psicológicas, sexuais, morais e patrimoniais.

Cada uma delas corrói, fere e desumaniza. E quando a mulher denuncia sua palavra raramente encontra acolhimento. Só é levada a sério quando vira estatística, quando já não há mais tempo para salvá-la.

Vivemos uma verdadeira epidemia de feminicídio. Os casos se acumulam nas manchetes todos os dias, e ainda assim não representam a totalidade da violência.

Há inúmeros outros episódios que poderíamos citar.

Casos e casos que ocuparam o noticiário, além de tantos outros que permanecem silenciosos, escondidos nas sombras da impunidade, sem testemunhas, sem proteção e sem Justiça.

Falar é romper o silêncio que mata. É afirmar que nenhuma vida pode ser interrompida para preservar o conforto de quem agride.

O poder público deve proteger, jamais calar. Que nenhuma autoridade seja usada contra mulheres, mas sempre a favor delas.

E a trágica realidade se repete diante de nós.

Em Florianópolis (SC), uma mulher discutia com o marido quando foi esfaqueada e quase não sobreviveu.

O ataque só foi interrompido porque seu filho de cinco anos se colocou entre os dois com a coragem que nenhuma criança deveria precisar ter. O agressor fugiu a pé, deixando para trás a mãe ferida e um menino que foi obrigado a agir como proteção.

Na capital paulista, Taynara Souza Santos foi arrastada por um quilômetro, perdeu as pernas e quase a vida.

Allane Pedrotti e Layse Pinheiro foram assassinadas no Cefet, na cidade do Rio de Janeiro, por um homem que não aceitava ser chefiado por mulheres.

Catarina Kasten, de 31 anos, foi morta enquanto ia para uma aula de natação numa trilha de Santa Catarina, estado com recorde de feminicídios neste mês de novembro.

Outra mulher foi baleada em uma pastelaria por alguém que não suportava o fim de um relacionamento.

Lais Angeli Gamarra, de 30 anos, pediu a prisão preventiva do influenciador Thiago da Cruz Schutz, o Calvo do Campari, acusado de agressão e tentativa de estupro.

Ela precisou fugir para sobreviver, já que a permanência dele em liberdade representa risco real e iminente tanto para sua vida quanto para o andamento da investigação.

A pergunta que ninguém precisaria fazer mas que continua ecoando: quem será a próxima? Porque todos os dias o Brasil amanhece sem mais uma mulher que não conseguiu voltar para casa.

Essa violência começa muito antes do ato que destrói. Ela é semeada no machismo estrutural que organiza relações, no patriarcado que tenta definir nossos limites e na misoginia cotidiana que atravessa casas, ruas, trabalhos, universidades, a política e as redes sociais.

Nenhuma mulher deve ser esquecida.

Nenhuma deve ser desacreditada.

Nenhuma deve ser silenciada.

Nenhuma pode ser punida ou processada por ousar não se calar.

A Lei Maria da Penha é conquista viva, fruto da coragem de muitas, mas só cumpre sua missão quando há investimento, equipes preparadas e presença real do Estado.

A cada feminicídio, uma família inteira se desfaz. A cada tentativa de assassinato, um futuro é arrancado.

A cada agressão, uma mulher recolhe seus pedaços para seguir existindo. Mesmo assim seguimos. Ser mulher no Brasil é resistir para sobreviver.

Resistimos quando denunciamos.

Resistimos quando apoiamos outra mulher.

Resistimos quando transformamos medo em voz e voz em caminho.

Resistimos quando lembramos que cada nome interrompido era mundo, sonho e história.

Precisamos romper o pacto de silêncio que sustenta o patriarcado.

Precisamos de sororidade que protege.

Precisamos de políticas que impeçam tragédias antes que elas aconteçam.

Precisamos de coragem coletiva para impedir que novos nomes ampliem uma lista que jamais deveria existir.

Escrevo por mim, pelas que vieram antes e pelas que virão.

Pelas que perderam a voz e pelas que seguem falando, mesmo quando tudo ao redor treme.

Escrevo porque transformar dor em palavra é transformar palavra em luta.

Por Taynara Souza Santos

Por Allane Pedrotti

Por Layse Pinheiro

Por Catarina Kasten

Por Lais Angeli Gamarra

Por cada mulher que teve sua história interrompida pela violência.

Por nenhuma a menos

*Nelice Pompeu é professora, promotora legal popular e integrante do Movimento Escolas em Luta

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Comentários

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Luiz Carlos Siviero

Texto brilhante!
Verdade que deve ecoar sempre e sempre!

Hercules Maia

A lei é branda com esse tipo de criminoso.
É mais dura com quem furta bolacha no mercado.
A moça de SP tem 2 filhos pequenos. DOIS. E agora.

Zé Maria

Onde há Fascismo, há Crime.

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