Justiça gaúcha proíbe o uso do 2,4-D e cria precedente histórico contra agrotóxicos
Decisão inédita da Vara do Meio Ambiente do RS atende a anos de mobilização social e científica. O Cebes reforça que a saúde deve estar no centro das políticas agrícolas
Em uma decisão histórica para a proteção ambiental e a saúde coletiva, a região da Campanha gaúcha conquistou a proibição do uso de herbicidas à base de 2,4-D.
A juíza Patrícia Antunes Laydner, da Vara Regional do Meio Ambiente do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, assinou a sentença em 1º de setembro.
O resultado reflete uma longa mobilização de setores da sociedade civil e da comunidade acadêmica, que há anos alertam para os riscos do agrotóxico. A participação de entidades, incluindo o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), que levou ao debate evidências científicas sobre a toxicidade da substância, foi crucial para a decisão.
“O cerne da questão são os perigos à saúde da população mediante o uso de herbicidas à base de 2,4-D em plantas convencionais e transgênicas tolerantes a este químico”, explica a professora Maria Eneida de Almeida, da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), representante do Cebes, que integra o Fórum Catarinense de Combate aos Agrotóxicos e Transgênicos (FCCIAT).
Durante sua participação na audiência pública promovida pela Assembleia Legislativa do RS, em 26 de maio, no campus da UFFS em Erechim, a professora destacou as duas dimensões relacionadas à alta toxicidade do herbicida: a dimensão individual, que aborda os efeitos biológicos e sistêmicos no organismo humano, e a dimensão coletiva, que evidencia os impactos sociais, ambientais e laborais.
A professora Vanderléia Laodete Pulga, do curso de Medicina da UFFS em Passo Fundo e pesquisadora da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), destacou os impactos já comprovados dos agrotóxicos sobre a saúde reprodutiva de mulheres e crianças: “Dos vinte agrotóxicos mais utilizados no Brasil, 15% são extremamente tóxicos, como o 2,4-D. Os estudos mostram mutações no DNA, anomalias congênitas, alterações hormonais, maior incidência de câncer em mulheres e abortos espontâneos. Entre as crianças, há registros de câncer, problemas genéticos, atrasos no desenvolvimento e infertilidade. O desafio emergente é pensar a agricultura como prática sustentável, capaz de garantir o cuidado com a vida e com a saúde da população”.
Os riscos do 2,4-D
O 2,4-D é um dos herbicidas mais antigos e amplamente utilizados na agricultura. Parte da fórmula do chamado Agente Laranja, usado na Guerra do Vietnã, ele é classificado no Brasil como “extremamente tóxico (Classe I)” pela Anvisa. Estudos científicos demonstram associação do 2,4-D a efeitos endócrinos, genotóxicos, reprodutivos, carcinogênicos e neurodegenerativos, incluindo linfomas não-Hodgkin, malformações fetais e doença de Parkinson.
Apoie o VIOMUNDO
Diversos países já restringiram ou baniram o produto, entre eles Dinamarca, Suécia, Noruega, províncias do Canadá e regiões da Austrália e da África do Sul. No Brasil, além da volatilidade que facilita a deriva e a contaminação de lavouras vizinhas, preocupa também a presença de resíduos em alimentos e água, assim como a exposição crônica de trabalhadores rurais.
O parecer técnico e o posicionamento do Cebes
Em 2014, foi apresentado à ANVISA o documento “Parecer Técnico sobre Riscos à Saúde Humana e Animal associados ao Uso de Herbicidas à Base de 2,4-D em Plantas Convencionais e Transgênicas Tolerantes a Herbicidas”.
O texto, elaborado pelo Grupo de Estudos em Agrobiodiversidade (GEA/NEAD/MDA), reuniu evidências científicas sobre os graves riscos do 2,4-D, desde a desregulação endócrina até o potencial carcinogênico.
O Cebes foi um dos signatários do parecer, ao lado de mais de 50 organizações científicas e sociais, como a Abrasco, o Instituto Nacional do Câncer (INCA), o IDEC e o MST.
Ao recomendar o banimento do herbicida, o documento consolidou a posição histórica do Cebes contra os impactos dos agrotóxicos na saúde e no ambiente.
A decisão e seus desdobramentos
A sentença da juíza Patrícia Laydner alinha-se às evidências científicas e às recomendações de organismos internacionais de saúde. Seu impacto poderá fortalecer movimentos sociais, pesquisadores e entidades da saúde coletiva que defendem um modelo agrícola menos dependente de venenos.
Durante a audiência em Erechim, o professor Antônio Inácio Andrioli, docente da UFFS e coordenador do Observatório Social e Ambiental da Soja no Cone Sul (Soyacene), alertou para o fato de já existirem dezenas de plantas resistentes ao herbicida: “O 2,4-D já não funciona mais. Estamos diante de um coquetel de herbicidas altamente tóxicos, usados sem monitoramento adequado, que contaminam o solo, a água e a vida”.
“As evidências científicas não deixam dúvidas: o 2,4-D deve ser incluído na relação de substâncias proibidas, sob risco de perpetuar danos irreversíveis à saúde das populações urbanas e rurais”, reforça a professora Maria Eneida de Almeida.
Leia também
Gustavo Guerreiro: Kirk, a direita e a santificação do ódio




Comentários
Nenhum comentário ainda, seja o primeiro!