Schabib Hany: Mino Carta, presente, hoje e sempre!

Tempo de leitura: 7 min
O presidente Lula compareceu ao velório do jornalista Mino Carta. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Mino Carta, presente, hoje e sempre!

Gigante do Jornalismo, Mino parte no dia em que a maior aberração da política brasileira senta no banco dos réus. Foi mais que referência da ética jornalística, como seu amigo Claudio Abramo, verdadeiros operários da informação, da formação e da transformação.

Por Ahmad Schabib Hany*, blog  O caminho se faz ao caminhar

Que quinzena! Primeiro, partem o cartunista Jaguar (de O Pasquim, Bundas e Pasquim21) e o geopolitólogo libanês Assad Frangieh (colaborador do canal Geopolítica, do amigo e conterrâneo Professor Lejeune Mirhan).

Em seguida, o escritor e cronista Luis Fernando Veríssimo nos deixa. No dia 2 de setembro, foi-se o Gigante do Jornalismo Mino Carta, o jornalista que viveu para informar, formar e transformar, tendo criado meios emblemáticos com os quais já entrou para a História.

Quando um ser humano da dimensão de Mino Carta se eterniza o vácuo abissal permanece por anos, décadas e séculos sem ser preenchido.

Filho, neto, irmão e pai de jornalistas com letra maiúscula, Mino — tal qual Claudio Abramo, outro ítalo-brasileiro cujos pais migraram pelo fascismo — foi gigante do Jornalismo que generosamente nos compartilhou suas experiências ímpares.

Conforme o Presidente Lula reconheceu no início da tarde da terça-feira fatídica, ao lado da filha Manuela Carta, quando chamou Mino de companheiro, como a vida lhe proporcionou (foi visitado em duas ocasiões por ele e Fernando Morais durante o cativeiro da quadrilha da leva jeito, em Curitiba).

Costumo dizer que Mino Carta e Claudio Abramo me ensinaram o português e, de quebra, o senso crítico que me acompanha desde a adolescência, atiçado, obviamente, por meu saudoso e querido pai.

Se meu letramento ocorreu com a revistinha da Disney (à revelia de meu pai, crítico ferrenho da indústria cultural estadunidense e seu uso ideológico desde sempre), o inovador Jornal da Tarde (criado em 1965 por Mino e equipe por ele escolhida), preferido de Seu Schabib por se contrapor ao sisudo O Estado de S.Paulo, foi, acrescido da Folha de S.Paulo de Claudio Abramo, Jornal do Brasil de Alberto Dines e Presencia de Huáscar Kajías Kaufman (de La Paz), a forma como ele nos induziu a lidar com jornais e revistas, ao nos pedir o favor de ler para ele, uma estratégia muito inteligente de nos desenvolver no hábito da leitura.

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Nunca fui leitor de Quatro Rodas que, em 1962, ele criou para Victor Civita, dono da Editora Abril, mesmo sem saber dirigir um carro ou, como revelou, não conseguindo identificar um Volkswagen ou um Mercedes Benz.

Passei a folhear as publicações graças a minhas Irmãs, que trocavam revistas com a saudosa Dona Lídia (querida amiga cuiabana que nos ensinou a amar o povo brasileiro e Companheira do imigrante português Seu Manuel Adelino, dono da verduraria da Frei Mariano em frente do Clube Riachuelo). Diferentemente de Seu Manuel, pouco letrado, Dona Lídia lia até os livrinhos de romance de Corín Tellado, publicados pela extinta Editora Vecchi.

Foi como vim conhecer edições antigas da Quatro Rodas, pois eu gostava da editora da arvorezinha (até 1968 a mesma logo da Editorial Abril argentina, fundada em 1941 e dirigida até 1976 por Cesare Civita, Irmão mais velho de Victor, que o trouxe em 1948 para criar uma homônima no mercado editorial brasileiro), a mesma que publicava as da Disney, fotonovelas, Manequim e Claudia, que minha Mãe fazia questão de ler e guardar. Só em 1966 é que a Realidade apareceu nas bancas e passou a ser leitura obrigatória em casa.

Com o tempo, me dei ao desplante de comparar o expediente de cada uma delas. Foi então que vi pela primeira vez o nome de Luis Carta (na verdade Luiggi Carta), irmão mais velho do Mino, diretor editorial da Abril e, que por razões que desconheço, saiu da empresa da família Civita em 1973 junto com o diretor comercial Domingo Alzugaray e o diretor de revistas infantis, Claudio de Souza, mais tarde na Editora Três (de Luis Carta, Domingo Alzugaray e Fabrizio Fasano) [fundaram depois a Ideia Editorial Domingo Alzugaray, Claudio de Souza (ex-diretor editorial de infanto-juvenis da Abril), para revistas infantis, como Mister Magoo e Don Piloto (mas hoje HQ eróticos, para adultos)].

Em 1976, Luis Carta com o sócio Fabrizio Fasano abrem da sociedade com Domingo Alzugaray e fundam a Carta Editorial, responsável por trazer uma série de publicações internacionais, entre as quais a Vogue, tomada pela Editora Globo há poucos anos.

Realidade (inicialmente dirigida por Luis Carta), Veja (criada em 1968 e dirigida até 1975 por Mino) e Placar (criada em 1970) entraram em casa por iniciativa de minha irmã Soad, que também nos fez conhecer O Pasquim e Opinião, dois emblemáticos títulos da imprensa alternativa que, a partir de 1975, passaram a contar com Movimento, Já, Abertura Cultural, Folha de Eva e Ex.

Éramos uma prole de rebeldes com causa, pois desde tenra idade já sabíamos que Israel e Líbano eram herança da colonização europeia, isto é, britânica (Israel) e francesa (Líbano), com o falso discurso de democratizar (ou melhor, demonizar) a Arábia.

Não desacreditávamos, também, do porvir da humanidade longe do capetalismo, do sionismo e do imperialismo (não importa com que nome, mas o futuro pertence à humanidade, não aos parasitas que saqueiam e oprimem em todos os continentes todas as espécies de seres vivos, sobretudo humanos).

A seção Carta ao Leitor, assinada por Mino Carta (M.C.) entre 1968 e 1975 (só em edições especiais e datas emblemáticas Victor Civita assinava a seção), era leitura obrigatória. Seu texto elegante e análise profunda — que às vezes tinha que recorrer a eufemismos para driblar a censura — eram a marca indelével do jornalista que adolescente aprendeu a escrever em português. Além do talento ímpar, a generosidade de Mino foi fundamental para que se transformasse em referência, ainda que a contragosto.

Em 1968, poucas semanas depois do início da circulação de Veja, a revista marcou importantes conquistas, como o reconhecimento implícito da tortura no Brasil, para driblar a censura prévia (implantada com a decretação do AI-5, em 13 de dezembro), ao estampar na capa da revista que Médici, então eleito novo presidente do ciclo militar, não toleraria tortura no país.

Não demorou muito, e furou a bolha da censura ao revelar que Costa e Silva foi voto vencido pela linha dura do exército quando da decretação do AI-5, e em edições posteriores que, com base em relato de Dona Yolanda Costa e Silva, o marechal entrara em coma por longos meses depois de episódios que, anos depois, o ex-porta-voz de Costa e Silva, jornalista Carlos Chagas, chamou de golpe dentro do golpe em seus livros de memória.

Não por acaso, a IstoÉ, em uma edição de 1978, traz Lula, então dirigente sindical dos metalúrgicos do ABC, na capa, fato inédito até então.

Só depois de algum tempo a Veja faria o mesmo, seguida dos jornalões, como O Estado de S.Paulo e O Globo, este último tido como diário oficial da ditadura.

Marinho e Mesquita são iguais em quase tudo, mas principalmente na falta de dignidade e subserviência aos mandarins de plantão. Mino nunca mais voltou a trabalhar com a família Mesquita, tendo passado
brevemente pela Folha de S.Paulo quando Abramo ainda estava em atividade. Mas depois de uma colisão frontal com Otavio Filho, Mino nunca mais aceitou escrever uma linha no jornalão da Barão de Limeira.

Na Senhor, década de 1980, a cobertura dos bastidores da campanha pelas diretas (Diretas-Já, como denominara o cartunista Henfil em um livro de sua autoria) e em parceria com seu amigo Claudio Abramo, na Folha de S.Paulo, Mino Carta foi decisivo junto aos parlamentares e articuladores políticos para o crescimento da mobilização. Só depois da excepcional adesão popular ao comício convocado pelas oposições em São Paulo, Rio de Janeiro e Goiás, é que a campanha passa a ter cobertura pela Globo e Estadão.

O ex-presidente da OAB, Raymundo Faoro, amigo pessoal e em momentos críticos sócio de Mino, foi determinante nesse processo histórico. De igual forma, durante os trabalhos da Constituinte de 1987/1988, dando voz às forças democráticas e fazendo contraponto à cobertura maledicente dos veículos conservadores, como Estadão, Globo e os aliados do presidente José Sarney.

Discreto e transformador

Na verdade, creio que todos os da minha geração conheceram Mino Carta por meio do suplemento criado por Claudio Abramo e dirigido inicialmente por ex-integrantes de O Pasquim (Folhetim, que circulava nas edições de domingo da Folha de S.Paulo), Tarso de Castro, Marta Alencar, Fortuna e Plínio Marcos.

Depois que saiu da Veja e sobreviveu como artista plástico talentoso, como Claudio Abramo, as entrevistas que deu em diferentes meios alternativos da imprensa da época nos permitiram fazer ideia da complexa capacidade criativa daquele discreto diretor de redação de Veja, Jornal da Tarde e Edição de Esportes (da família Mesquita) e Quatro Rodas (dos Civita).

Mino Carta em 1976 se reuniu com seus ex-colegas diretores da Abril para criar a IstoÉ (era assim que em seu tempo se grafava). A revista nasceu mensal e somente depois de um ano é que se tornou semanal. Primeiro Editora Três, depois Encontro Editorial, com Luis Carta e Domingo Alzugaray.

Os exemplares da revista eram disputados nas bancas de Corumbá, pois Mino Carta era nome que dava crédito a qualquer publicação que ele dirigisse: Natércio e Lindolfo, um na Frei Mariano e o outro na Antônio Maria (as duas bancas na esquina com a Treze de Junho), não aceitavam pagamento adiantado, era preciso estar na banca na hora do desembarque das revistas.

Se a Veja dos bons tempos revelara talentos como Caco Barcellos, Fernando Morais e Sílvio Lancellotti, a IstoÉ de Mino permitira o reconhecimento de nova geração de Jornalistas, como Wagner Carelli, Nirlando Beirão e Maurício Dias, entre outros.

Mas a aventura de realizar com Claudio Abramo um ousado projeto diário de qualidade, o Jornal da República (que apenas durou cinco meses) — com jornalistas de maior credibilidade do país –, em 1979, os deixou inadimplentes e precisaram vender o título do jornal e a revista IstoÉ ao banqueiro e ex-diplomata Walther Moreira Salles.

Um favor que, anos depois, foi refeito, ao devolvê-lo aos donos do projeto, Domingo Alzugaray e Mino Carta, que haviam editado uma revista semanal com título novo (Senhor), adquirido de editora de fora do eixo Rio-São Paulo.

Por essa razão, depois de retomada a IstoÉ pela Editora Três, Mino passou a ser empregado do ex-sócio Alzugaray naquela que foi Istoé/Senhor, cuja edição emblemática com o motorista Eriberto França elucidou a corrupção de Collor e o levou ao impeachment em 1992.

Mais tarde, em 1994, em sociedade com o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, cria a CartaCapital, um título que se tornou símbolo de resistência democrática. A revista tem mais de três décadas e hoje é dirigida por Manuela Carta, sua filha.

Mino Carta se eterniza no dia em que inicia o julgamento do inominável fascista que assaltou os destinos da nação entre 2019 e 2022 ao lado de militares de altas patentes, envolvidos em tentativa de golpe.
Mino, que disse certa vez não sentir medo mas não ter esperanças, não pôde testemunhar o importante momento em que pela primeira vez altos oficiais vão para o banco dos réus na história do Brasil.

Mino Carta pode não estar fisicamente, mas seu legado no Jornalismo ético e na defesa intransigente da Democracia e do Estado de Direito é o alicerce ético e fecundo que permite esta conquista histórica.

Obrigado por ter existido, resistido e se mantido incólume em seus princípios, a despeito de tantas invertidas!

Mino Carta, presente, hoje e sempre!

*Ahmad Schabib Hany é graduado em História, já lecionou a disciplina em Corumbá, Mato Grosso do Sul. Ativista de movimentos por democracia, direitos humanos, cidadania, saúde pública, povos indígenas, preservação do meio ambiente. Atualmente, está empenhado na criação da Universidade Federal do Pantanal, em torno da qual se reúne o Movimento UFPantanal.

Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo

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Comentários

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Zé Maria

https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2022/09/emino-300×200.jpg

A imagem caravaggiesca, com a proteção da Virgem
do calendário, é de autoria de Hélio Campos Mello:
Na cozinha da casa plantada no topo do morro
atrás da fábrica da Volkswagen, Lula acaba de voltar
da prisão no Dops.
.
.
Mino Carta Contra a Farsa da Neutralidade

No dia de sua despedida, o exemplo de Mino volta
a ecoar diante dos novos inimigos da democracia.

Por José Guilherme Pereira Leite*, na Carta Capital

Não creio que as imagens valham mais do que as palavras. Essa porém, carrega consigo o poder efetivo das simbolizações. Nela, o jornalista Mino Carta conversa com o líder sindical Luiz Inácio da Silva, numa mesa de cozinha apinhada de objetos icônicos: cinzeiros improvisados em recipientes quaisquer, as velhas “ampolas” de cerveja, uma cesta de legumes e uma imagem de Jesus Cristo coroando a cabeça do jornalista. Lula sem camisa, nesse caso, é mais que uma simples metáfora:
é a nudez da notícia e de suas personagens que o jornalista persegue, a cozinha de uma casa brasileira sendo o ápice da investigação obsessiva, no limite da intimidade.

O ano, creio eu, era 1978.

A ditadura perdera parte de seu prestígio, ancorado, como sempre no contrário fascistóide:
o retrato oficial de gabinete, as fardas alinhadas, as medalhas no peito, as tropas em linha.

Aqui, no avesso, é tudo desordem, a mais bela e alegre desordem de uma copa-cozinha em dia de festa, um espaço apertado onde os corpos e os olhares se amontoam e atestam uma energia histórica incontível, a farra que acolhe, uma figuração perfeita da liberdade vulcânica que nenhuma tirania é capaz de liquidar, nenhuma, nem à esquerda nem à direita, porque o ser humano – a verdade é essa – está destinado a ser livre.

A falsa neutralidade e o teatro da isenção ainda fornecem poltrona estofada e ‘scotch on the rocks’ para biografias torpes, gente que agride diariamente a ligação vinculativa do jornalismo com a fraternidade e seu papel fundamental no combate à opressão, à falsificação e à simples fabricação de mentiras.

As “vozes edulcorantes” do jornalismo de bancada (repita-se, falsamente neutro) seguem vivas e poderosas.

Mas o exemplo de Mino Carta tem linhagem e tampouco desaparece.

Ele escolhe seus caracteres com base no seu caráter, e essa régua é difícil de ser vergada: contra a usurpação, contra a desigualdade, contra a concentração de renda, contra o mau exercício do poder.

Mino deixa o planeta nesse dia também simbólico:
o dia em que os antagonistas de sempre, pressupostos ocultos nessa fotografia tão intensa, são levados a julgamento por tentarem, novamente, limpar a mesa dessa cozinha, amordaçar os convivas e submeter o país ao cabresto de seu próprio oportunismo.

*José Guilherme Pereira Leite é Escritor, Ensaísta
e Professor Universitário.
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo.

Íntegra:

https://www.cartacapital.com.br/opiniao/mino-carta-contra-a-farsa-da-neutralidade/

.

Zé Maria

https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2025/09/Captura-de-Tela-2025-09-02-a%CC%80s-11.08.37-768×549.png

“Sobre Ser Filha do Mino”

“Arrivederci, Pai Querido.”

Por Manuela Carta, na Revista Carta Capital

“Ah, mas como é ser filha
de um cara tão brilhante
como o Mino?”

Incontáveis vezes ouvi essa pergunta ao longo da vida.
A resposta vinha fácil, porque eu sempre tive muito
orgulho de ser filha do maior jornalista do Brasil.
Ele, juntamente com minha mãe, uma das minhas primeiras grandes referências de caráter e retidão.
Como criador de tantas publicações, sempre será sinônimo de jornalismo honesto.
Centro das atenções de tantos embates, com suas
opiniões fortes e polêmicas, briguento mais para compor
uma persona, mas muito doce na intimidade, sempre
a bordo de uma taça de vinho.

Ainda menina, durante algum jantar no Gigetto com
os amigos artistas, divertidos, ou mais tarde vendo-o
capitanear jantares com intelectuais no velho Massimo
da Alameda Santos, percebi que o palco era dele e a mim
cabiam os aplausos.
O cara era genial mesmo – e eu era a primeira a tietá-lo,
embevecida.
Para mim, ele era de longe o melhor pintor, o melhor
tenista, o melhor contador de piadas, o melhor chef,
sempre o mais elegante nos seus tweeds e ternos
impecavelmente cortados pelo Mestre Tonin.
Com o aroma de Penhaligon’s impregnando suas
finíssimas gravatas Marinella, feitas à mão por artesãos
napolitanos, e seus lenços cashmere.
Um verdadeiro grand seigneur.

Meu pai herói, fã de Antonio Gramsci e Hannah Arendt.
E como eles pessimista no pensamento e otimista na ação.

Com ele trabalhei duas vezes, primeiro na Senhor,
depois na Istoé.
No meio tempo passei pela Folha, depois em assessoria
de imprensa, até que em 2001 aceitei o convite que ele
me fez para me juntar, no papel de publisher, ao projeto
da CartaCapital, que naquele momento viraria semanal.

“Isso aqui agora é nosso e precisamos de você
para trazer a grana, já que eu não entendo nada
de administração e números”, disse ele, que, de fato,
nunca aceitou o papel de patrão.

Naquela altura, abracei a missão de levar adiante
o que meu pai considerou seu melhor projeto editorial.
A parceria foi em grande medida bem sucedida também
graças a Mara Lúcia, hoje nossa sócia e fiel escudeira
do Mino há quase 40 anos, Sergio Lírio, nosso brilhante redator-chefe, além do professor Luiz Gonzaga Belluzzo,
suporte permanente e fundamental.

Apesar do grande desafio que é tocar uma marca com
ideais progressistas num país conservador e com uma
mídia de sentido único, acho que fizemos uma boa dupla
– ainda que entre tapas e beijos.
Sim, porque a uma certa altura eu me livrei (médio)
das questões freudianas, e passei a peitá-lo aqui e ali.
Eu relutava em me igualar a ele no temperamento, mas
sempre fomos muito parecidos, especialmente no
sangue quente.
Pena não ter herdado sua energia e genialidade.
Para quem presenciava, nossos embates pareciam mais
uma briga de trattoria napolitana: de vez em quando,
um mandava o outro para o inferno em alto e bom som.
Mas no outro dia estávamos lá, nos apoiando, prontos
a levar nossa Armata Brancaleone adiante.

Ah, como me aborrecia quando, pela enésima vez,
ele escrevia que o Brasil é o país da Casa Grande e
da Senzala, que isso aqui não tem conserto, que
nossa elite é um horror.
Eu argumentava, “troca o disco, papai”, mas ele, impaciente,
explicava que certas coisas precisam mesmo ser
repetidas ad nauseaum para serem devidamente entendidas.
Sábio Mino.
Infelizmente, ele tinha razão, o Brasil é muito atrasado
e ele não viu as coisas melhorarem de verdade.

CartaCapital, que no ano passado completou 30 anos,
foi um sonho do meu pai e passou a ser também meu
no momento em que entendi o propósito original da
empreitada, ser um veículo que de alguma forma
pretende apontar as tantas mazelas brasileiras,
colocando o dedo nas feridas que precisam ser
cutucadas e, quem sabe, influir nos rumos do País.

Levar esse projeto adiante, sem pretender substituir
o meu pai, mas tentando manter a qualidade e coerência
que sempre marcaram seu trabalho, com seu desassombro
e sem perder a capacidade de se indignar com as injustiças,
é a melhor maneira de honrar o seu legado.

No último ano, meu pai travou sua última batalha ao lutar
pela vida, na esperança de chegar à sua festa de 100 anos.
Mais uma vez, foi valente e destemido.
Aguentou o quanto pôde.
Espero que, na hora do juízo final, ele tenha conseguido
olhar a morte nos olhos, como sempre disse que queria.
E que encontre a esposa amada, Angélica, a velha e
querida avó Eugenia e o filho perdido, Gianni, reunidos
na sua inesquecível casa de San Remo, a bordo de
um prato de tomates temperados com bom azeite,
manjericão abundante e dois dentes de alho (sem alma,
naturalmente).
Tudo regado a Pigato.
Ao fundo, se ouvirá o barulho suave do Mediterrâneo,
o perfume das oliveiras e dos pinheiros-marítimos e
as músicas da Mina, do Fred Bongusto e do Peppino.

Arrivederci, pai querido. Que você reencontre suas
mais preciosas memórias na sua nova jornada.

https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/memoria/sobre-ser-filha-do-mino

.

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