Relatório da ONU 2025 desmascara governo Trump: Venezuela não é um ‘narcopaís’
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ONU 2025 desmascara o mito: Venezuela não é uma rota central para o narcotráfico
A revelação de que a Casa Branca havia autorizado o uso de forças militares contra “cartéis de drogas” na América Latina reativou um roteiro familiar na região: rotulá-los como criminosos para abrir caminho para uma intervenção. A estratégia dos EUA foi considerada “uma flagrante violação da soberania nacional”.
Esse cenário nos permite compreender o lugar que a narrativa do “Cartel dos Sóis” ocupa na arquitetura da pressão contra Caracas.
ONU 2025: Venezuela não é um ‘narcopaís’
O Relatório Mundial sobre Drogas 2025 do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) mais uma vez desvia o foco da Venezuela.
De acordo com uma análise do think tank venezuelano Misión Verdad, com base no Relatório Mundial sobre Drogas (WDR, na sigla em inglês), o país permanece livre de cultivos ilícitos, e este aparece com pouca menção como rota secundária.
Nesse sentido, demonstra que a “grande rodovia” para os Estados Unidos se origina pelo Pacífico colombiano e equatoriano (87% do fluxo), com 8% pelo Caribe/Guajira e “apenas 5%” tentando atravessar o território venezuelano.
Além disso, o relatório reitera que os Estados Unidos são o maior mercado consumidor e alerta para a crise dos opioides sintéticos. Em outras palavras, os dados traçam um mapa do problema em outros países e rotas, não na Venezuela.
O panorama europeu corrobora essa interpretação. A Agência Antidrogas da União Europeia (UE) relata que, em 2024, a Espanha realizou sua maior apreensão de cocaína (13 toneladas) em um único carregamento escondido atrás de bananas do porto de Guayaquil, Equador, e que a disponibilidade da droga permanece alta dentro do bloco europeu. A Venezuela não aparece como um corredor relevante.
Essa estrutura empírica ajuda a situar a acusação: em vez de fornecer provas judiciais, o rótulo de “Cartel dos Sóis” funcionou como um rótulo político para apresentar a Venezuela como uma “ameaça”, a fim de possibilitar listas e medidas coercitivas.
Fernando Casado documenta isso em sua investigação sobre o mito: em março de 2015, enquanto a Casa Branca declarava a Venezuela “uma ameaça” e ativava sanções, ocorreu uma torrente de “vazamentos” da (DEA) e do Departamento de Justiça para a mídia, incriminando altos funcionários, uma dinâmica que o autor conecta à escalada das hostilidades e ao cálculo da intervenção.
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Casado também descreve a arquitetura midiática que deu credibilidade ao dossiê: o ex-diretor da ABC News, Ángel Expósito, admitiu que, quando o veículo de comunicação “tem acesso a informações da CIA, a ABC publica as informações da CIA”, enquanto seu correspondente em Washington atuava como porta-voz de “relatórios confidenciais” fornecidos por agências norte-americanas.
O mecanismo consistia em ocultar a fonte, editorializar e converter informações de inteligência em “notícias” para causar danos à reputação.
Do ‘golpe da banana’ à securitização hemisférica
Consultado pela Sputnik, Diego Sequera, analista político e cofundador da Misión Verdad, remonta a situação atual à reviravolta que se seguiu em 30 de abril de 2019, quando a tentativa de golpe de Estado no país sul-americano fracassou.
“William Barr, o então procurador-geral dos EUA, propôs acusar o presidente de tráfico de drogas e transformar toda a narrativa não mais em uma questão política de ditadura-democracia, mas sim em uma questão de criminalidade, uma questão de segurança e uma questão de segurança hemisférica com projeção caribenha e tudo mais”, disse ele.
Para o especialista, essa mudança integrou a acusação a um paradigma que agora opera como política interna em Washington. Em suas palavras, “a política interna, então, não é uma questão de levar a democracia a lugar nenhum, é uma questão de ordem e segurança. E, nessa medida, ela se encaixa no Comando Sul”.
Sequera enfatiza a flexibilidade dos rótulos e sua adequação à matriz do crime organizado regional, e afirma que o “Trem de Aragua e o processo de hibridização dessas estruturas, que de fato envolvem o narcotráfico e, em alguns casos, operam como terroristas, buscam transformá-las, se não em atores políticos, em atores de poder muito mais institucionalizado. Nessa medida, esse paradigma de ameaça regional se reforça”.
Nessa leitura, o constructo “narco” se sobrepõe a outras ameaças maleáveis para justificar uma maior presença securitária. Nesse sentido, o analista questiona a viabilidade da implementação da diretriz de “combate ao narcotráfico” na América Latina.
No entanto, Sequera acredita que é preciso cautela em relação à “diretiva secreta” para mobilizar forças militares na região, pois “não se sabe se é um vazamento real ou um balão de ensaio […] o que o The New York Times noticiou, e ainda não é exatamente uma política oficial”.
Voltando aos dados, o analista contextualiza que, segundo o WDR 2025, os Estados Unidos são apontados como o principal país de destino da cocaína e lembra que, na Europa, o relatório oficial confirma apreensões recorde e detalha que a Espanha realizou sua maior apreensão em 2024 em um único barco transportando bananas de Guayaquil, no Equador. Nada disso coloca a Venezuela como um corredor central.
Assim, a narrativa do “Cartel dos Sóis” aparece para o especialista como uma engrenagem em um aparato político-militar mais amplo, cuja eficácia reside não em sua veracidade empírica, mas em sua capacidade de gerar consenso para a coerção.
Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Comentários
Zé Maria
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“Fatos não são necessários
em seu sistema de crenças”.
SIBONGILE NDASHE
Jurista Negra Sul-Africana.
Diretora-Executiva da Iniciativa para
Litígios Estratégicos na África (ISLA)
com atuação nos Sistemas Africanos
de Direitos Humanos.
Sobre o Presidente dos Estados Unidos
DA América, Donald Trump.
Em Entrevista à Revista Afirmativa
reportada pelos Jornalistas
Matheus Souza e Andressa Franco:
No dia 21 de maio, o presidente dos EUA, Donald Trump, tentou constranger o presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, durante uma reunião na Casa Branca.
No encontro, Trump solicitou para sua equipe que exibisse vídeos de um suposto “genocídio” da população branca no país africano.
Surpreso com a atitude – e com o vídeo – Ramaphosa respondeu ironicamente, dizendo que “gostaria de saber onde fica isso”, questionando a veracidade da acusação.
Mais tarde, constatou-se que tal como acusação de genocídio, o vídeo exibido por Trump era falso e ainda foi retirado de contexto.
Para compreender o porquê deste encontro e as razões pelas quais Trump dissemina a ideia de uma perseguição a um grupo étnico branco conhecido como “africânderes” [bôeres], é preciso entender alguns pontos desta narrativa que se desenrola entre os dois países desde o início deste ano.
No dia 7 de fevereiro, Trump emitiu uma ordem executiva publicada no site oficial da Casa Branca onde denuncia Ramaphosa pela promulgação da “Lei de Expropriação (13/2024)”, que concede ao estado o poder de confiscar terras sem a necessidade de pagar indenizações.
A medida do presidente sul-africano, que sofreu resistência dentro do Congresso, surge como uma tentativa de reparação após mais de 30 anos do fim do regime de “Apartheid” [Segregação Étnica] no país, onde a população negra ainda é minoria entre os donos de terras agrícolas.
No documento, o presidente estadunidense afirma que o objetivo da lei é “desapropriar terras agrícolas da minoria étnica afrikaner [africânder, em português]” e que tais políticas governamentais estariam sendo utilizadas para “desmantelar a igualdade de oportunidades em emprego, educação e negócios, além de retórica odiosa e ações governamentais que alimentam a violência desproporcional contra proprietários de terras racialmente desfavorecidos”.
No dia 12 de maio, um avião com 49 sul-africanos brancos pousou em Washington (DC), nos EUA, se tornando o primeiro grupo de africânderes a desembarcar em território estadunidense como refugiados.
Resguardados por um programa de reassentamento, esses indivíduos estão sob proteção direta de Trump, que alega protegê-los de uma “matança em larga escala de agricultores brancos”, chegando até mesmo a utilizar a palavra “genocídio”.
Um breve contexto sobre a origem dos africânderes mostra que há de fato um genocídio em sua história, mas não o descrito por Trump.
Durante o período colonial, os invasores brancos em território sul-africano – vindos especialmente da Holanda, França e Alemanha – obrigaram a maioria negra da população local a se instalar em bairros segregados das cidades e em reservas rurais. Isso aconteceu devido a uma lei de 1913, que proibia negros de adquirir terras fora dessas reservas, conhecidas como “bantustões” (terras natais).
Essas terras, que abrigavam a maioria negra (80%) do país, ocupam hoje 13% do território sul-africano, o que causa uma inequidade considerável entre as terras ocupadas pelos negros e brancos do país.
Os herdeiros dos colonos europeus – os africânderes – formam cerca de 5% da população, e com a aprovação da Lei de Expropriação, sentiram que seus privilégios estavam ameaçados, decidindo então apelar ao governo dos EUA por ajuda.
Um Olhar In Loco
Para entender melhor a questão dos africânderes e o porquê do interesse do governo Trump nestas pessoas, conversamos com a jurista sul-africana Sibongile Ndashe, diretora executiva da Iniciativa para Litígios Estratégicos na África (ISLA), com longa experiência na prática jurídica, defesa e pesquisa de gênero e sexualidade, além de atuar perante os Sistemas Africanos de Direitos Humanos.
Ndashe descreve a situação dos africânderes como “absurda”.
Segundo ela, a decisão dos EUA de endossar a ideia de um “genocídio branco” e abrigar esses descendetes de colonos mostra que “fatos não são necessários em seu sistema de crenças”. A pesquisadora explica que, apesar de diferentes estudos e relatórios desmascararem essa conspiração de direita, o governo estadunidense decidiu segui-la mesmo assim.
“Para tornar esse mito realidade, eles decidiram criar um procedimento especial para permitir que pessoas brancas se mudem para os EUA.
Eles os chamam de refugiados, mesmo que não atendam à definição legal de refugiado. Enquanto todos os outros programas de reassentamento de refugiados foram suspensos”, afirma Sibongile Ndashe.
A jurista explica que, assim como no Brasil, a questão racial é um problema vivo e constante na África do Sul. Devido a uma desigualdade sistêmica profundamente arraigada no país, a face da pobreza continua sendo predominantemente negra e, a da riqueza, predominantemente branca.
“Há tensões em torno de certos grupos de pessoas brancas, e africânderes, em particular, que escolheram viver isolados em um lugar chamado Orania. Politicamente, conviver com pessoas que querem voltar aos ‘bons velhos tempos’ pode ser irritante.
Já houveram incidentes, incluindo contestações judiciais esporádicas, sobre a preservação da cultura, língua e identidade africânderes”, conta.
Apesar das pequenas tensões ao longo de 30 anos de história, os africânderes e a população negra se “toleram” de maneira cordial, na maioria das vezes.
Essa informação é importante para salientar que a narrativa de uma violência sistêmica contra este grupo é falsa.
“A África do Sul tem uma alta taxa de criminalidade.
O número de africânderes assassinados é insignificante quando comparado às estatísticas gerais de criminalidade”, detalha Ndashe.
Elon Musk, empresário proprietário da Tesla e do X (antigo Twitter), atua como conselheiro da Casa Branca desde o início do governo Trump e por ser um grande defensor dos africânderes, é responsável por instigar o conflito diplomático entre EUA e África do Sul.
Nascido no país africano, apesar de uma origem muito similar, Elon nega que faça parte dos africânderes, porém compartilha do sentimento de que há uma “perseguição racial contra brancos” no país.
“Ele quer menos regulamentação, ataca regularmente as medidas de ação afirmativa da África do Sul que buscam desfazer a desigualdade racial e espalha desinformação”, explica Ndashesobre o posicionamento do bilionário.
Na África do Sul, a posição do governo norte-americano causa preocupação sobre possíveis sanções.
A ajuda humanitária ao país foi cortada, altas tarifas foram impostas e o embaixador expulso da embaixada nos EUA.
Ndashe explica que, apesar do boicote estadunidense, hà esperança para o avanço das reparações do povo negro sul-africano.
“O tema da União Africana para 2025 é Justiça para africanos e afrodescendentes por meio de reparações.
Há esforços renovados para levar as conversas adiante no continente […] e esperança de que essa legislação possa contribuir de alguma forma para remediar injustiças passadas”, conta.
A jurista explica que há uma responsabilidade moral, legal e ética para garantir que as reparações não acabem sendo apenas um debate global.
Ela finaliza enfatizando que “diante de desigualdades tão gritantes e ainda convivendo com gerações que prosperaram e sofreram sob o “Apartheid”, a discussão precisa ser trazida de volta para casa”.
https://revistaafirmativa.com.br/quem-sao-os-africanderes-brancos-herdeiros-do-apartheid-na-africa-do-sul-que-buscam-refugio-nos-eua/
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