Planeta apartheid
Por Jordan Michel-Muniz*
A segregação dos despossuídos mata, mata muito e todo dia.
Quem não vê está protegido por privilégios de classe. E de pele.
Apartheid vem da língua africâner, significa ‘condição de afastado dos outros’, referente às leis de segregação racial que classificavam pessoas como negras, de cor, indianas ou brancas, só estas com direitos e cidadania plenos. Ele existiu legalmente na África do Sul de 1948 a 1994, e ainda vige apartheid silencioso na Austrália.
Mas a segregação é multissecular, uma arma de dominação usada nas colônias por países europeus.
As colônias surgem de invasão e roubo, com a desculpa de salvar as almas de ‘indígenas selvagens’. Os corpos não contavam, daí os genocídios.
A cobiça europeia chamou tais crimes de missão civilizadora, junto com o golpe da catequese e as noções de raça e superioridade dos povos de pele branca. Escravizar indígenas e africanos visaria o aprimoramento cultural e moral, hipocrisia que o frade Bartolomeu de Las Casas denunciou já no século XVI.
A própria ideia de que a civilização ocidental brotou na branca Grécia Antiga é fraude racista, diz Martin Bernal em Black Athena: the Afro-Asiatic Roots of Classical Civilization (Atena Negra: as raízes afro-asiáticas da civilização clássica).
O regime de apartheid sul-africano pôs na lei este racismo que o colonialismo espargiu pelo mundo.
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Hoje fala-se em apartheid por analogia, do neonazismo genocida de Israel e da racialização da pobreza no Canadá à abissal desigualdade do apartheid social brasileiro, visível na proporção de negros e pobres encarcerados.
Há apartheid nas nações, contra etnias e despossuídos, e entre elas, na discriminação de migrantes pobres de pele escura como ‘ilegais’ em países ricos de gente branca.
Afora as superlotadas prisões insalubres, outro exemplo brasileiro é a contenção aplicada em favelas do Rio de Janeiro com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), regime de ocupação que faz suas próprias leis e invade casas chutando portas.
É a segregação territorial dos desfavorecidos, sem garantias constitucionais – eufemismo para apartheid. Às vezes, a separação é uma rua, e nem sempre é geográfica, ela está presente na qualidade das escolas e no acesso à saúde, saneamento básico, água, moradia…
No apartheid global, a União Europeia deixa migrantes se afogarem no Mediterrâneo ou rumo às Canárias, ou cria e financia campos de concentração no norte da África.
Em Vida Precária: os Poderes do Luto e da Violência, Judith Butler denuncia que “a perda de algumas vidas ocasiona o luto; de outras, não”, porque “certas vidas não são consideradas vidas”, foram desumanizadas.
Em 2018 Trump manteve crianças latinas migrantes separadas das mães e presas em jaulas, como animais.
Depois, com Biden, havia 20.000 crianças em centros de detenção. Agora o fascista Trump caça gente em situação de rua em Washington, para expulsar da cidade.
Quem quer morar na rua? Em A Nova Segregação: Racismo e Encarceramento em Massa, Michelle Alexander mostra que nos EUA “80% dos réus em processos criminais são indigentes”, sem advogado, que ao sair da prisão não têm direito à ajuda estatal para moradia.
São agressões sem fim, incluindo venda de órgãos, tráfico de escravos e violações sexuais. Crianças sofrem nas prisões do apartheid de Israel por terem atirado pedras contra tanques de guerra.
Existem fronteiras de todo tipo, não só físicas ou entre nações, formando a segregação planetária do “sistema global de casta”, como se lê no portal CrimethInc: elas impõem controles para a maioria e criam privilégios para poucos.
A globalização só vale para o capital e os donos dele, estes viajam livremente.
Os demais que fiquem nos ‘bantustões’ – termo pejorativo para confinamentos do apartheid sul africano – que viraram continentes: África, América Latina e Ásia, pois a miséria e a cor da pele convertem seus habitantes em migrantes ‘ilegais’, embora não haja regra explícita.
O “termo ‘raça’ não aparece, mas é o arame farpado onde o negro sangra sua humanidade”, diz Abdias Nascimento em O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado.
Por trás de cercas e muros existe ainda a violência passiva, quando a omissão é conivente e não se exerce
uma capacidade.
Por exemplo, quando sendo capaz de socorrer alguém ferido nada se faz, ou sendo possível erradicar a fome deixa-se milhões de pessoas sofrerem e morrerem por causa dela, ou quando o genocídio palestino pelo colonialismo racista de Israel é ignorado por nações da OTAN, as mesmas que sancionam Cuba, Irã, Rússia, Venezuela…
Nestas três situações não se usa o poder que se tem, e a violência está na inação. Pessoas, instituições e nações podem ser violentas pelo que fazem ou deixam de fazer.
Por que a passividade ante a banalização da violência, que a grande mídia naturaliza como ‘danos colaterais’ da manutenção da ‘ordem mundial baseada em regras’, regras dos países ricos, que ignoram leis internacionais e a ONU?
Qual ordem? A da acumulação capitalista ilimitada que não cessa de produzir miséria e devastação ambiental enquanto acirra a concentração de renda? A ordem neocolonial, a da multiplicação dos apartheids?
O que é causa, e o que é efeito, na guerra contra habitantes de favelas e migrantes ‘ilegais’?
A “travessia para o espaço dos expulsos”, como afirma Saskia Sassen em Expulsões: Brutalidade e Complexidade na Economia Global, sempre começa com a despossessão, com a tomada das terras e povoados dos pobres pelo agronegócio ou pela especulação imobiliária, empurrando os assim despossuídos para as ruas, periferias, favelas ou para a migração ‘ilegal’.
A segregação nunca foi ‘dano colateral’, e sim tática para dominar e expropriar. Os que migram antes foram invadidos e roubados, foram colonizados e espoliados, até que a fome e a penúria os fez buscar os países dos seus algozes brancos, onde a riqueza roubada está guardada e gera vida boa.
Apartheids também roubam, roubam direitos e vidas, mesmo de trabalhadores não segregados.
Graças à existência de ‘ilegais’ nos países ricos, sem documentos ou direitos, o capital rebaixa salários da classe trabalhadora local, nutrindo o discurso fascista e xenófobo dos que buscam poder e lucro pelo engano: apostam na luta entre explorados, para colher mais segregação e exploração.
A falta de poder político faz dos pobres alvos das violências dos ricos que controlam Estados.
É o poder político dos ricos que cria apartheids, e a omissão silenciosa e cúmplice os tolera.
Afinal, para que os povos precisam de tais Estados?
*Jordan Michel-Muniz é ativista social, mestre e doutor em filosofia pela UFSC, e pesquisa temas ligados à geopolítica, democracia e injustiças.
Este texto não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.
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Zé Maria
‘Racismo Estrutural’ é um Eufemismo Criado
por Intelectuais Brancos Racistas Travestidos
de Defensores de Liberdades e Direitos Humanos.