Empresas de espionagem israelenses estão alimentando Estado totalitário de vigilância mundial
Tempo de leitura: 6 min
A ferramenta de hackeamento Pegasus foi apenas o começo. Um novo levantamento sobre empresas de spyware revela que companhias israelenses estão sendo usadas por agências de países ocidentais para construir ditaduras perfeitas sob o disfarce da democracia
Por Nate Bear*, em português no site da Fepal
Na semana passada, mais um grupo de manifestantes pacíficos pró-Palestina foi preso pela polícia britânica sob suspeita de crimes relacionados ao terrorismo, incluindo um homem com deficiência em uma cadeira de rodas, enquanto o Reino Unido continua sua descida rumo ao autoritarismo em nome de Israel.
Se algum desses manifestantes estava com o celular no momento da prisão, a polícia provavelmente extraiu dados dos aparelhos usando softwares sofisticados de espionagem. Aqueles que não foram presos podem ter sido capturados por câmeras móveis em vans da polícia britânica, com seus rostos — e talvez até suas vozes — analisados e cruzados com bancos de dados policiais.
E, num paradoxo perverso, essa tecnologia de espionagem — que hoje sustenta as capacidades insidiosas e crescentes do Estado moderno de vigilância — provavelmente foi feita em Israel por espiões israelenses.
Mas não é apenas no Reino Unido.
Tecnologias de espionagem desenvolvidas por ex-agentes de inteligência israelenses estão sendo usadas em escala industrial por diversas agências em democracias ocidentais — desde forças policiais a agências de segurança nacional e forças armadas. Algumas dessas ferramentas foram consideradas ilegais, outras operam em zonas cinzentas da legislação, e muitas permanecem ocultas.
A escala do uso e a variedade de capacidades fornecidas por essa tecnologia israelense de espionagem é vasta: de softwares de reconhecimento facial e de voz, a interceptações telefônicas, rastreamento de localização, e extração forçada de dados de smartphones e outros dispositivos.
Essa tecnologia, criada por engenheiros de software treinados para codificar sistemas que impõem e sustentam o domínio israelense e o apartheid sobre os palestinos, está sendo vendida para serviços de segurança, polícias e agências de imigração em todo o Ocidente.
Embora muitas das informações contidas neste artigo não sejam inéditas, elas nunca haviam sido organizadas em um só lugar. As implicações para as liberdades civis globais da supremacia israelense na indústria de espionagem tampouco foram devidamente articuladas, e coberturas anteriores da mídia frequentemente omitem a ligação israelense dessas empresas.
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Este artigo descreve os principais atores, os vendedores e os compradores, além de identificar contratos recentes, até então não documentados, entre empresas israelenses de espionagem e compradores ocidentais.
Escândalos envolvendo empresas israelenses de spyware já foram amplamente divulgados na mídia tradicional, o mais famoso sendo o caso do Grupo NSO.
A NSO, empresa israelense fundada pelos ex-membros da Unidade 8200 Shalev Hulio e Omri Lavie, foi condenada em 2019 por um tribunal da Califórnia por vender seu software Pegasus a governos para que pudessem invadir contas do WhatsApp.
O Pegasus, capaz de realizar ataques do tipo “zero clique” (sem interação do usuário), foi usado para espionar dissidentes, ativistas de direitos humanos e jornalistas — e provavelmente por agentes sauditas para monitorar o jornalista do Washington Post Jamal Khashoggi antes de seu assassinato.
A empresa foi condenada a pagar US$ 167 milhões em indenizações à Meta, que moveu o processo. Em 2021, o governo Biden colocou a NSO na lista negra, impedindo-a de operar nos EUA. (O Departamento de Estado, contudo, afirmou explicitamente que nenhuma medida seria tomada contra Israel, embora seja o governo israelense quem concede as licenças de exportação desses softwares.)
Também incluída na mesma ordem executiva de Biden foi a empresa israelense Candiru, cujo software de espionagem, embora menos notório, foi vendido a governos para monitorar ativistas de direitos humanos, jornalistas, acadêmicos, funcionários de embaixadas e dissidentes. Assim como a NSO, Candiru foi fundada por ex-membros da Unidade 8200.
Em 2023, a administração Biden colocou mais duas empresas israelenses na lista negra: Cytrox e Intellexa, ambas fundadas por Tal Dilian, ex-comandante da Unidade 8200, com 24 anos de carreira nas FDI. Em 2019, Dilian, que mora no Chipre, demonstrou à Forbes como seu software podia invadir um celular em segundos.
Na Europa, cidades como Barcelona e Nicosia (no Chipre) tornaram-se centros de ex-militares israelenses da Unidade 8200 criando novas empresas de spyware.
Outra empresa, a Paragon Solutions, foi identificada recentemente como capaz de acessar silenciosamente dados do WhatsApp, Signal, Messenger e Gmail, sem interação do usuário.
Uma denúncia criminal foi apresentada em Roma depois que uma jornalista italiana foi hackeada pelo próprio governo usando software da Paragon. A empresa, fundada por ex-comandantes da Unidade 8200, é assessorada pelo ex-primeiro-ministro Ehud Barak e não está na lista negra dos EUA ou da UE.
Essas empresas são apenas a ponta do iceberg — os nomes que flertaram com a ilegalidade e acabaram descobertos ou alvos de ações judiciais.
Mais insidiosas ainda são as empresas israelenses que têm contratos públicos com agências estatais do Ocidente para espionar e invadir dispositivos móveis. Elas alegam operar de forma “legal”, diferente da NSO ou Candiru, mas os softwares usados são muitas vezes idênticos, e seu verdadeiro escopo é desconhecido.
Entre essas está a Cellebrite, fundada por Yossi Carmil, ex-soldado das FDI, e composta por dezenas de ex-membros da Unidade 8200. Seu produto principal é o Universal Forensic Extraction Device, que extrai contatos, localização, mensagens deletadas e chamadas de smartphones, tablets, cartões SIM e aparelhos GPS.
Nos EUA, a Cellebrite possui contrato de US$ 30 milhões com o ICE e outro de US$ 1,6 milhão com a Alfândega e Proteção de Fronteiras (CBP), para extrair dados de celulares apreendidos.
A empresa também trabalhou com o FBI para desbloquear o celular do homem que tentou matar Trump. Ela vem tentando se enraizar ainda mais no complexo de vigilância dos EUA. Em 2023, firmou contrato de US$ 1 milhão com uma grande força policial não identificada — provavelmente o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Além disso, mantém contratos com a Marinha, DEA, Guarda Costeira, Serviço de Pesca e Vida Selvagem, Comando de Operações Especiais dos EUA e Comando de Ataques Globais da Força Aérea.
No Reino Unido, a Cellebrite firmou contrato de £2 milhões com a Polícia Metropolitana de Londres em 2020. Em 2018, a Polícia da Escócia comprou 41 “quiosques cibernéticos” para desbloqueio local de celulares. Em 2022, a Polícia de Gales do Norte pagou mais de £250 mil por ferramentas para burlar senhas e forçar acessos.
A Polícia de Kent, que recentemente ameaçou prender pessoas com bandeiras da Palestina, também tem contrato com a Cellebrite. Em 2024, as polícias de Leicestershire e da Cidade de Londres assinaram contratos de £328 mil e £100 mil, respectivamente. A empresa também tem contrato com o Departamento de Transportes do Reino Unido.
A Cellebrite é fornecedora aprovada do sistema de Compras Dinâmicas de Forense Digital do Reino Unido, facilitando a contratação por todas as polícias do país. Hoje, pelo menos 26 das 47 polícias britânicas usam suas ferramentas — o número real pode ser maior, já que várias recusaram responder a pedidos via Lei de Acesso sob a justificativa de “segurança nacional”.
A própria Cellebrite se gabou de sua participação no genocídio de Gaza, afirmando ter sido “instrumental” para as operações de inteligência de Israel desde 7 de outubro.
Outra empresa, talvez ainda mais sofisticada, é a Cobwebs Technologies, fundada por ex-membros da Unidade 8200. Seus produtos, agora vendidos pela PenLink, incluem reconhecimento facial e de imagem por IA, além do WebLoc, que permite rastrear movimentos de celulares numa área definida, por meio da coleta de dados via anúncios embutidos em aplicativos.
A Cobwebs já assinou contratos com o ICE, o Departamento de Segurança Interna dos EUA (US$ 3,2 milhões) e o Departamento de Segurança Pública do Texas (US$ 5,3 milhões). O Departamento de Polícia de Los Angeles também usa seus serviços há anos.
A empresa abriu um escritório em Londres em 2020 para oferecer seus produtos às forças de segurança do Reino Unido, mas não há registros públicos de contratos com agências britânicas.
Outra gigante é a Cognyte, derivada da israelense Verint. Liderada por ex-membros do IDF e da Unidade 8200, a Cognyte fornece ferramentas de “inteligência de rede”, que monitoram grandes volumes de dados de torres de 4G/5G, metadados de telecomunicações, chamadas, sinais de rede e mensagens, com a promessa de identificar padrões e ameaças.
Nos últimos 18 meses, Cognyte assinou contratos com agências de segurança e forças armadas ocidentais no valor de quase US$ 60 milhões — incluindo um contrato de US$ 20 milhões com uma agência europeia, outro de US$ 10 milhões com uma força militar da Europa, e US$ 3 milhões com uma polícia americana. A embaixada dos EUA em El Salvador e o Serviço Secreto americano também são clientes.
A empresa Verint, que deu origem à Cognyte, também tem um longo histórico: em 2014, construiu a infraestrutura de escutas da Suíça; em 2017, recebeu US$ 35 milhões do Pentágono; e em 2018, firmou parte de um contrato de £50 milhões com a polícia britânica.
A Corsight AI, por sua vez, vendeu software de reconhecimento facial à Polícia de Essex (Reino Unido), e a tecnologia foi testada em palestinos antes de ser usada no genocídio em Gaza. A Corsight também vendeu para a PM de São Paulo e a polícia de Bogotá.
A Briefcam, outra empresa israelense, fornece análise de vídeo a polícias do Reino Unido e dos EUA. Na França, seus contratos foram cancelados por violar leis de privacidade. Polícias em Bruxelas e Varsóvia, assim como Chicago e Beverly Hills, também usam seus sistemas.
A NICE, outra companhia israelense fundada por ex-soldados das FDI, domina o setor de identificação de fraudes financeiras e também fornece ferramentas de vigilância urbana. Uma investigação de 2015 revelou que a empresa oferecia softwares secretos de espionagem a diversos países.
Por fim, vale mencionar a notória Black Cube, empresa criada por ex-agentes da Unidade 8200 e famosa por ter sido contratada por Harvey Weinstein para espionar suas vítimas. A Black Cube já esteve envolvida em inúmeros escândalos de espionagem.
O que tudo isso revela é que Israel e sua economia baseada no apartheid estão no centro do avanço global rumo a um mundo completamente vigiado, sem espaço para dissidência. Em nome da segurança, a tecnologia israelense está viabilizando o autoritarismo.
O apartheid e o estado permanente de guerra em Israel, aliados às empresas de espionagem dirigidas por seus ex-agentes, representam a maior ameaça às liberdades civis do mundo atual.
Não é surpresa que Israel tenha dominado esse mercado: seus cidadãos são criados em uma cultura militar de impunidade, onde a tecnologia serve à dominação, os “alvos de teste” são abundantes, e as regras de engajamento, inexistentes.
Ao comprar e depender das ferramentas de um Estado de apartheid para garantir sua “segurança”, os governos ocidentais acabam tornando o próprio apartheid israelense uma peça indispensável em seu avanço autoritário.
*Reportagem publicada originalmente em Do Not Panic!
**Este artigo não representa obrigatoriamente a opinião do Viomundo.




Comentários
Zé Maria
O Atual Esquema Panóptico de Controle e Vigilância Mundial
causaria Surpresa até em George Orwell e Michel Foucault.
Zé Maria
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Juntamente com as Big Techs
do Vale do Algoritmo (CA/USA).
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