Thiago Barison: Escola de futebol versus individualismo social

Tempo de leitura: 3 min

por Thiago Barison, sugestão de Igor Felippe

Assisti estarrecido à final do mundial de clubes. Minha expectativa para o jogo entre os melhores da América e da Europa se revelou ingênua. Passaram dois, cinco, dez minutos… e o Santos não havia trocado dois passes sequer. Do mesmo modo que eu ficava embasbacado, a espinha dorsal dos meninos da Vila era impiedosamente quebrada. Não havia força mental capaz de enfrentar a realidade que ia se impondo, cadenciada como uma dança. Foi uma imensa roda de bobinho, na qual bater seria mais humilhante que agüentar firme até o fim, e quem sabe diminuir o chocolate.

Lembrei das  colunas do Tostão no jornal que exaltavam o futebol coletivo contra a grosseria-organizada do Brasileirão. Eu, como bom corinthiano, nunca dei a mínima para os gringos. Assistir a jogos do futebol europeu sempre me pareceu coisa de filho-de-rico, que conhece o esporte bretão pelo videogame. Talvez por esse empedernido antimperialismo futebolístico, o choque tenha sido ainda maior. Era duro de aceitar. As primeiras palavras que me vieram após o silêncio imposto pelo Barcelona eram radicalizações das de Tostão, meu novo profeta na religião da pelota. Gritei no intervalo: CBF! Urgente! Tostão presidente!

Veio o segundo tempo e nada mudou. Um cara do Santos com a bola no campo de defesa — que no Brasil costuma ficar livre, para tédio geral — e surgiam três ou quatro do Barcelona avançando como cachorros vorazes atrás de uma baleiinha de pelúcia quicando no gramado. E sem faltas. Os chutões para frente rapidamente se tornaram a saída mais digna. Reparando na situação inversa — o Barcelona com a bola lá atrás, recebendo a marcação dos santistas —, percebi o fundamento dessa Escola de futebol: a capacidade de, mesmo pressionado, jogar de cabeça erguida, tocar de prima no pé e aparecer para receber. Toca e aparece, toca e aparece, e o que era uma situação tensa logo se alivia desenvolvendo-se pelo campo. No ataque, essa lógica, ao invés de suprimir os talentos individuais, os potencializava: ameaça chutar, tabela, corre atrás da zaga ou mesmo arranca com a bola no pé, como o faz Messi. Quatro a zero saiu barato.

Diante desse fato histórico, telefonei imediatamente para meus amigos. Mas ainda aventávamos explicações confusas e típicas do atual modo brasileiro de pensar o futebol. ― Eles têm mais dinheiro… (mas dos onze, nove craques do Barcelona foram formados na base… e a Espanha tá quebrada!). Comparações entre individualidades… ou o Santos amarelou… (eu agradecia a São Jorge por não ser o Timão!).

Após o jogo, diz o técnico do Barcelona: “O que tentamos fazer é passar a bola o mais rápido possível. De fato, isso é o que o Brasil fez em toda a sua vida, segundo contavam meus pais e avós”.

E o complexo de vira-lata começa a tomar forma de pensamento. De fato, a Seleção de 1982 que encantou o mundo era assim: bola de pé-em-pé. Até hoje quando assisto a jogos em imagens antigas, tenho a impressão de que não há a correria dos jogos atuais. Bobagem: era futebol jogado mesmo ― quem corria era a bola! Tudo começa a fazer sentido: o Brasil lutando contra a ditadura, Democracia no Corinthians, e a Seleção de 82 liderada pelo Doutor, calmo, artífice do passe, humilde, coletivo. No palco gramado, Sócrates representa um povo levantando a cabeça.

Mas deixamos de jogar assim. Vieram tempos difíceis. A juventude que joga descalça na rua viu a década de noventa dizer-lhe “não” no assunto oportunidade. O futebol se tornou talvez o principal caminho para o sucesso. O moleque sente que precisa se destacar. Driblar sozinho todos os obstáculos. É o individualismo social transportado para o jogo ― a melancolia dos que fracassam é tocante no filme “Boleiros”, de Ugo Giorgetti.

Bem, a lição vem-nos agora na forma de uma goleada histórica. O mais novo herói midiático foi o primeiro a reconhecer. E dá mesmo para mudar. Voltar à Escola do futebol-arte. Ora, nossos colégios primários abrigam, por uma questão de espaço, o Futsal, cujo fundamento, também por uma questão de espaço, é o segredo do jogo do campeão mundial. Temos uma massa de jovens puro-talento. Além dos donos da bola, podemos ser os donos do campo, como reivindica Chico Buarque. O Brasil é um gigante adormecido ― acordará para a Copa do Mundo? Saravá!

Thiago Barison é advogado e faz doutorado na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na USP

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