Síria: “O levante é uma revolução espartana, uma ‘revolução’ de escravos contra seus amos”
18/08/2011
Samar Yazbek, de 41 anos, é uma das escritoras mais importantes de sua geração na Síria. Autora de quatro novelas (entre elas, O perfume da canela, que em breve será lançada em francês), é colunista do diário pan-árabe Al-Hayat. De origem alauíta, a comunidade do clã de Assad, tem sido muito ativa desde o começo da revolução na Síria; isso custou a ela várias prisões, sobre o que escreveu um relato comovente que o [diário francês] Liberation publicou na quarta-feira passada. De passagem por Paris, nos ofereceu seu testemunho.
Christophe Ayad: Depois de tantos anos de ditadura, ficou surpresa com a revolução na Síria?
Samar Yazbek – Sim e não. Não, porque há mais de quatro décadas o povo sírio vive humilhado, sob o controle dos serviços de inteligência. Ultimamente estes serviços não só se dedicam a controlar o conjunto da sociedade, mas ditam as normas da vida cotidiana das pessoas. Na Síria não existe liberdade de expressão e de opinião. Inclusive para viajar ao Exterior é preciso obter autorização do regime. No país não existia qualquer atividade política. Vivemos sob um regime de partido único. Um regime militar, não uma república. Tudo isso, que não é novo, estava cada dia mais insuportável. Sob o regime de Hafez al-Assad não havia televisão por satélite, nem internet, nem Facebook, nem You Tube. O medo paralisava as pessoas. O regime podia reprimir uma cidade ou região sem que os fatos saissem à luz pública. Mas ainda assim sabemos que o regime de Hafez al-Assad desfrutou de apoio internacional: os norte-americanos e os israelenses o viam como necessário ao equilíbrio regional.
O que mudou com Bashar al-Assad [filho de Hafez]?
Com ele o regime se converteu em um clã familiar. Rami Makhlouf, primo do presidente, controla 60% da economia síria. Houve certa abertura econômica, mas só beneficiou a algumas famílias. Esta revolta é uma revolução ‘espartana’, uma revolução dos escravos contra seus amos. Os novos meios de comunicação permitiram a formação de uma opinião pública emergente em todo o mundo árabe; também na Síria. Uma nova geração de jovens escolarizados, que começou a se mobilizar por direitos humanos, passou a organizar manifestações, rapidamente reprimidas, para apoiar as revoluções na Tunísia e no Egito. Em 16 de março, intelectuais e familiares dos detidos se concentraram diante do Ministério do Interior e foram brutalmente reprimidos pela polícia e pela chabbiha [milícias armadas pró-regime]. Esta repressão desencadeou os acontecimentos de Dara, onde jovens foram detidos por grafitar contra o regime. Quando os pais foram visitar o governador, Atef Najib, primo do presidente, este respondeu a eles: “Esqueçam os seus filhos, façam outros! Se não souberem como fazê-lo, tragam-nos suas mulheres”. O que foi uma faísca.
Quando você se deu conta de que era uma revolução?
É uma verdadeira revolução que começou no campo, uma revolução dos marginalizados e esquecidos. O regime reprimiu e assassinou com muito mais impunidade porque considerava que estas pessoas eram o lumpen. Os intelectuais aderiram mais tarde. Fui à maioria das cidades em que houve manifestações, a Dara em Baniyas, a Latakia, a Duma [subúrbio de Damasco]. Ainda que não existisse nenhuma coordenação, as palavras de ordem eram as mesmas em todas elas. As pessoas queriam por um fim à constante intervenção dos serviços de segurança em sua vida diária. No princípio com demandas sociais e de respeito à sua dingidade. Um mês mais tarde, depois de todo o sangue derramado, surgiram as palavras de ordem pedindo a derrubada do regime.
Quando o exército interveio em Dara, no fim de abril, pensou que era o fim do movimento?
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A princípio tive medi de que a repressão acabaria afogando os protestos. Mas ali se produziu um milagre na Síria: enquanto Dara estava ocupada pelos tanques e se produzia uma verdadeira carnificina, se pôs em pé uma coordenação para construir a solidariedade com Dara. O regime começou a matar gente por todo o país e soubemos de iniciativas sobre as quais se ouve falar apenas aqui no Exterior: médicos que chegam clandestinamente a Dara procedentes de Damasco e de outras cidades. Os jovens dos comitês de coordenação criaram as bases de uma contra-sociedade.
Até o momento, as duas principais cidades, Damasco e Aleppo, não foram sacudidas pela rebelião. Por que?
Em primeiro lugar, porque nelas se concentram as classes sociais que mais se beneficiaram do regime. No entanto, se sentir que seus interesses estão ameaçados, a burguesia mercantil também se colocará contra al-Assad. O país atravessa uma crise econômica muito grave. A segunda razão é que todos os espaços públicos destas cidades estão ocupados por forças de segurança para evitar qualquer concentração. O poder está obcecado com estas cidades. Há pequenas manifestações diárias na capital, mas são cortadas pela raiz. Uma vez queríamos organizar uma marcha de mulheres no bairro de Sahet Arnous em Damasco. Fizemos circular o lugar da manifestação no boca-a-boca, para não sermos descobertas: sem Facebook, sem e-mail, nem mensagens de texto. Reunimos entre 80 a 90 pessoas. Em cinco minutos nos vimos cercados pela polícia e pela chabbiha, que nos atacou.
O regime está tratando de provocar confrontos religiosos. Funciona?
Não podemos negar o conflito religioso, mas no momento, apesar das tentativas do regime, não degenerou em uma guerra civil. Houve certos atos de vingança mas, dada a magnitude dos abusos do governo, se trata de incidente isolados. Eu sou de Jablah, perto de Latakia [oeste do país], uma cidade na qual convivem sunitas e alauítas. Um dia as forças de segurança mataram onze sunitas e logo foram aos bairros alauítas dizer aos residentes que se protegessem, porque os sunitas iam se vingar. Os chabbiha venderam armas aos alauítas e o resultado é que Jablah é uma cidade dividida em duas…
Quem são os chabbiha?
São milícias compostas de jovens alauítas nascidos nos anos 80 no entorno familiar de Hafez al-Assad. São de uma fidelidade absoluta ao regime. Seus integrantes são remunerados por realizar o trabalho sujo e trabalham de forma coordenada com os serviços de inteligência, a polícia e o exército.
O que pensa a comunidade alauíta, à qual você pertence, assim como o clã Assad?
A maioria é solidária com al-Assad. Pensam que se o regime cair eles vão pagar, apesar de não terem se beneficiado do regime. Existe uma memória profunda da perseguição e da exploração na qual vivia a comunidade alauíta no passado. No entanto, na elite, os jovens participam dos comitês de coordenação da revolução, especialmente em Latakia. Quanto aos cristãos, estão à margem: a maioria deles tem medo da maioria muçulmana e seguem sensíveis à propaganda do regime sobre a infiltração de grupos salafistas [sunitas fundamentalistas] nas manifestações.
Você mesmo foi presa…
Sim. No começo houve campanhas contra mim na internet. Fui detida várias vezes. Como sou uma autora conhecida na Síria e pertenço a uma família alauíta, não se atreveram a me manter na prisão. Mas, em cada ocasião em que fui detida, me vendaram os olhos e me interrogaram, fazendo ameaças durante várias horas. Como não podiam fazer nada contra mim, queriam que eu visse o que podia acontecer com gente presa e torturada. Queriam eu que me posicionasse contra a revolução. Como isso não funcionou, trataram de me desacreditar. Distribuiram panfletos apócrifos em minha cidade, me chamando de “traidora” e me ameaçando de morte. Os alauítas começaram a me ameaçar, o que me inquietou mais que as prisões. Depois da quinta chamada dos serviços de inteligência, decidi passar à clandestinidade. No início de julho, durante o assim chamado diálogo nacional, o regime anunciou que todos, inclusive as pessoas da oposição, podiam viajar livremente. Aproveitei o momento para sair do país.
Pensa em regressar à Síria?
Com certeza, é meu país. As pessoas estão morrendo lá e penso nelas todos os dias. Não estou exilada.
O regime suspendeu o estado de emergência e autorizou o multipartidarismo. Que pensa disso?
Não é mais que uma cortina de fumaça. Uma verdadeira reforma significaria o fim do regime. Se um dia existirem eleições livres na Síria, o regime de al-Assad terá chegado a seu fim. Se o poder acreditasse nas reformas, teria deixado de matar seu próprio povo.




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