Nelson Nisenbaum: O que o transtorno do déficit tem a ver com a dengue?

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O que o TDAH tem a ver com a Dengue?

por dr. NELSON NISENBAUM

Caros leitores e leitoras,

Acompanhando o debate sobre a questão do TDAH neste site, pude indentificar uma série de entendimentos por parte de leitores que evidenciam a falta de compreensão sobre miríades de variáveis e conceitos sobre a medicina, a profissão médica, o conceito de doença, a influência da indústria farmacêutica, entre outros.

A medicina é um patrimônio da humanidade construído ao longo de milênios, e não obstante os diversos sistemas filosóficos que a tenham provido do necessário substrato, mudou muito pouco na sua essência, qual seja, a de assistir o ser humano nos seus sofrimentos, evitá-los da melhor forma, não fazer o mal, e recuperar o recuperável, curar o curável.

A revolução cartesiana dotou, não só a medicina, mas a todos os campos do conhecimento, do ferramental filosófico pelo qual o conhecimento passa a ser construído pelas relações de causa e efeito, pelo entrelaçamento lógico e metodológico entre os elementos de construção, e pelo conceito de reprodutibilidade, todos como critérios de verdade científica.

Assim, o conhecimento que temos sobre a Dengue, que tomo como exemplo pela contemporaneidade e importância, nos dá como agente etiológico um vírus com 4 cepas; um vetor, o aedes aegypti com toda a sua gama de hábitos e nichos; toda a complexidade de seu quadro clínico tão variável; os critérios para suspeita diagnóstica; os critérios e métodos laboratoriais para a confirmação diagnóstica; as técnicas de tratamento escalonadas pela gravidade do caso, por sua vez medidas por diversos parâmetros clínicos e laboratoriais; o conjunto de medidas ambientais em pequena, média e grande escala para a contenção de focos e surtos, e assim por diante.

Todo esse conhecimento que se não nos salvou das epidemias registradas, certamente evitou uma tragédia muito maior, é norteado pelo mesmo sistema de valores e conceitos que nos trazem o conhecimento que temos sobre a AIDS, sobre a Hipertensão Arterial, sobre a Diabetes, sobre a Apendicite Aguda, enfim, sobre qualquer entidade clínica e nosológica sobre a qual tenhamos as capacidades médicas listadas no segundo parágrafo deste texto.

Vale portanto, o mesmo para o TDAH, como vale também para o conhecimento que permite manter vivo um paciente em hemodiálise ou fazer um transplante renal, ou seja, o conhecimento que temos, publicado na vasta literatura médica sobre o assunto, foi construído dentro de um sistema de valores e conhecimentos comuns a todo o restante da medicina, sendo também compartilhados com todos os ramos da ciência, seja na física, na química, na biologia, na sociologia, na psicologia e além.

A outra perspectiva é a da medicina como profissão, que está bem longe (e deve guardar a devida distância) da produção do conhecimento científico. É claro que estará aliada a esta produção nas entidades que tem esse fim, mas a medicina aplica o conhecimento geral e científico ao caso particular, e assim o faz com a devida particularidade, unicidade. Quase como que em um julgamento, onde o juiz interpreta as condições dadas para então adequar ao texto legal, que apenas raramente reproduz a realidade apresentada.

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Isto põe o médico em uma situação de confronto com variáveis não científicas, uma vez que o encontro médico-paciente é repleto de subjetividades, localidades e temporalidades que não pertencem ao campo da ciência. Portanto, do sucesso terapêutico, dependerá, por parte do profissional médico, um conjunto de habilidades que ultrapassam o campo da ciência, e abraçam o campo da linguagem, da cultura, da compaixão, do senso ético e moral, da psicologia, e até mesmo de algo que poderíamos chamar de arte.

Mais que isso, o que é sucesso terapêutico será definido, em primeiro lugar, pelo doente que procura o médico, e esta avaliação necessariamente contém a subjetividade deste indivíduo. Toda essa complexidade tem o objetivo de construir o que chamaríamos de verdade clínica, um conjunto de dados que exigirá ou não uma resposta do profissional à demanda do doente, seja lá qual for a patologia.

A medicina sofre, sem dúvida, as influências culturais, filosóficas, éticas e morais da época que vivemos, e o profissional médico é diuturnamente torturado por repetidos dilemas oriundos desses campos. Cabe a ele, por imperativo ético de fundamento, adequar-se da melhor forma a não faltar com os princípios milenares que sustentam esse edifício. Neste universo, e diante da enormidade do conjunto das instituições da saúde, públicas e privadas em todo o mundo, podemos com segurança afirmar que a medicina é um sucesso da humanidade, pois mantém-se em crescimento e evolução, com ampla aceitação pelas mais diferentes sociedades.

Os questionamentos apresentados por diversos debatedores neste site ao problema do TDAH, poderia portanto ser aplicado a qualquer patologia e respectivo tratamento que dispomos na atualidade, o que equivale a dizer em uma simplificação grosseira que creio pertinente, que a medicina que estamos praticando não é válida. Os argumentos utilizados pelos contestadores do tratamento medicamentoso do TDAH poderiam ser igualmente aplicados ao tratamento da pneumonia, da epilepsia, à prática da vacinação, e assim por diante, pondo portanto, em cheque, a medicina como um todo, o que parece paradoxal diante da credibilidade nela depositada por ampla maioria da sociedade e diante dos milênios desse sucesso, mas que como quase tudo no mundo, não alcança a unanimidade.

Voltando à especificidade do TDAH, muitos debatedores cobram as referências bibliográficas e científicas que fundamentam o arcabouço teórico-prático da doença, mas assimetricamente, não apresentam textos científicos como contestação, citando por vezes autores isolados, que apresentam suas opiniões e que devem ser respeitadas. Mas a ciência exige mais que opiniões, e por outro lado, é aberta à produção de novos conhecimentos em qualquer lugar e tempo.

Entretanto, para terem poder de contestação, deverão construir-se pelas mesmas metodologias aplicadas na produção daquilo que se quer contestar. Por esta razão, muitas vezes confrontamos-nos com assertivas, relatos e opiniões de autores que não pertencem ao mundo médico, e somos interpretados como arrogantes ou corporativistas, quando na realidade, trata-se apenas de tentar dizer que ciência confronta-se com ciência, e esta, tem seus territórios demarcados não por nós médicos, mas pela sociedades democráticas que adotaram a ciência como valor. E até prova em contrário, fazemos parte de uma delas.

*Médico, especialista em Clínica Médica e ativista em Saúde Pública

 

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