Sattar sobreviveu?

Tempo de leitura: 3 min

por Luiz Carlos Azenha, publicado originalmente em 21.03.2006

A foto acima foi feita quando eu e nosso guia, o iraquiano Sattar, estávamos num subúrbio de Bagdá.

Era sexta-feira, o domingo dos muçulmanos. Lá no fundo, dá para ver a cúpula e os minaretes de uma das mesquitas mais importantes da cidade.

É a mesquita de Kadhimiya.

Xiitas de todo o mundo visitam o lugar, onde está enterrado um parente do profeta Maomé.

Os mil peregrinos que morreram em Bagdá, num confronto sectário, estavam a caminho dela.

Atravessavam uma ponte sobre o rio Tigre.

Rumores provocaram a correria que matou muitas mulheres e crianças.

A tragédia de agosto de 2005 foi a maior desde que o Iraque ficou sob tutela dos Estados Unidos.

Visitamos o país semanas antes do início da ocupação americana.

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O motorista Sattar foi buscar nossa equipe em Amã, na Jordânia, para a viagem de automóvel que nos levou a Bagdá.

Os inspetores da ONU ainda estavam na cidade, procurando as armas de destruição em massa, nunca encontradas. Sattar é engenheiro civil.

Trabalhou em projetos de reconstrução de Bagdá depois da guerra do Golfo, a do Bush pai.

De início nos pareceu tímido e amedrontado.

Depois, ganhou confiança em nós.

Antes da ocupação americana, só havia um vôo charter, irregular, entre a Jordânia e o Iraque.

Por questões de segurança, todos preferiam fazer a viagem de automóvel.

Dez horas na ida, dez horas na volta. Sattar fazia o trajeto duas ou três vezes por semana.

Sattar viajava até Amã, a bela capital jordaniana, em busca de jornalistas, ativistas pela paz, delegações estrangeiras.

Pagava todas as propinas necessárias para azeitar a burocracia iraquiana na travessia da fronteira.

O motorista é um muçulmano devoto.

A caminho de Bagdá, enquanto eu e o cinegrafista Sherman Costa almoçávamos, pediu licença educadamente, apanhou um tapete no carro e foi para um canto do restaurante.

Ajoelhou-se para orar em direção a Meca.

A guerra já era tida como certa.

Sattar nos contou dos planos que a família dele fizera: iriam todos para uma fazenda, no interior, esperar pela invasão americana.

Na fazenda, o pessoal do Sattar já tinha estocado o essencial: comida, combustível para um gerador, baterias para ouvir as notícias pelo rádio.

Foto arquivo pessoal

A viagem Amã-Bagdá-Amã foi feita num 4×4.

Mas na capital iraquiana usamos o carro acima para perseguir os inspetores da ONU, enquanto as equipes das redes americanas voavam em jipes importados.

Durante a viagem, contei ao Sattar que tinha ouvido a notícia de que os americanos pretendiam iniciar o ataque a Bagdá com uma bateria de milhares de mísseis.

Sattar fechou os olhos e respirou fundo, como se tivesse tomado um tiro no coração.

Semanas depois, a informação que dei a Sattar se confirmou.

Foi a operação Choque e Espanto, do Pentágono. Deixamos o Iraque antes da invasão americana.

Quando nos levava de volta a Amã, Sattar não se importou quando decidimos fazer gravações em lugares onde era proibido filmar.

O espião destacado pelo governo de Saddam Hussein, que nos acompanhou durante os dez dias em Bagdá, já não estava conosco. Sattar não corria mais o risco de ser delatado.

Pelo que disse, estava dividido sobre a guerra: Saddam havia destruído o país, mas os americanos não tinham nada que ocupar o Iraque.

E aí, Sattar, o que você acha que vai acontecer aqui? “Tenho medo de que isso aqui se transforme numa Palestina”, respondeu.

Acertou na mosca. O último levantamento do site BodyCount, que conta o número de civis mortos no Iraque baseado em notícias publicadas pela imprensa, revela números impressionantes.

No dia 20 de março de 2006, a invasão americana do Iraque completou três anos.

Até então, segundo o BodyCount, foram ao menos 28.637 civis mortos.

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