Robert Fisk: Hipocrisia exposta pelos ventos da mudança

Tempo de leitura: 3 min

10/2/2011

por Robert Fisk, The Independent, UK

Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu

Nada como uma revolução árabe para expor a hipocrisia dos amigos. Sobretudo, se a revolução é revolução de civilidade e humanismo, movida pelo desejo de viver em democracia do tipo que conhecemos na Europa e na América.

A quantidade estrondosa de bobagens enunciadas por Obama e por La Clinton nas últimas duas semanas é só uma parte do problema. De “estabilidade” até “tempestade perfeita” – o Departamento de Estado deve andar assistindo muito “E o vento levou…”, em matéria de copiar Hollywood no eterno fracasso de jamais conseguir ver valores morais no Oriente Médio –, chegamos aos presidenciais “agora-significa-ontem” e “transição ordeira”, cuja tradução é: nenhuma violência até o ex-general Mubarak da Força Aérea afastar-se um pouco, para que o ex-chefe da segurança general Suleiman possa assumir o governo em nome dos EUA e de Israel.

O canal Fox News já informou seus telespectadores nos EUA que a Fraternidade Muçulmana – o mais “soft” dos grupos islamistas no Oriente Médio – estaria manipulando os valentes homens e mulheres que se atreveram a resistir à polícia política da ditadura. E magotes de ‘intelectuais’ franceses (as aspas são essenciais, no caso de figuras como Bernard-Henri Lévy, na inolvidável manchete do Le Monde) inventaram “a intelligentsia do silêncio”[1].

Todos sabemos por quê. Alain Finkelstein fala de sua “admiração” pelos democratas, mas também da necessidade de “vigilância” – o que sempre garante nota baixa para qualquer ‘filósofo’ – “porque hoje sabemos sobretudo que não sabemos em que dará tudo isso”. Essa citação quase rumsfeldiana só é superada pela ideia absolutamente ridícula, pela obviedade, da lavra de Lévy, segundo a qual “é essencial considerar a complexidade da situação”. Curiosamente, é exatamente o que os israelenses sempre dizem quando algum ocidental desorientado sugere que Israel pare de roubar terras árabes na Cisjordânia para lá instalar seus colonos de ocupação.

De fato, a própria reação de Israel aos acontecimentos no Egito – que ainda não seria hora de o Egito chegar à democracia (para não ameaçar o título de Israel como “a única democracia no Oriente Médio”) – tem tanto de inadmissível quanto de autoderrotista.

Israel estará sempre mais segura, se cercada por democracias verdadeiras, do que, como vive hoje, cercada de ditadores pervertidos e viciosos, ou de monarcas autocratas. Para seu alto crédito, o historiador francês Daniel Lindenberg disse uma verdade, essa semana: “Temos, infelizmente, de admitir a realidade: muitos intelectuais creem, sinceramente, que os povos árabes seriam geneticamente atrasados”.

Sem novidade. Aplica-se aos sentimentos subterrâneos dos europeus sobre todo o mundo muçulmano.

A chanceler Merkel da Alemanha anuncia que o multiculturalismo não funciona, e um aspirante ao trono da família real da Bavária disse, há pouco tempo, que há turcos demais na Alemanha porque “os turcos não querem ser parte da sociedade alemã”. E quando a própria Turquia – a mais perfeita combinação de Islã e democracia que há hoje no Oriente Médio – aspira a unir-se à União Europeia e quer partilhar nossa civilização ocidental, a Europa tenta por todos os meios, inclusive por meios racistas, impedir que a Turquia integre-se.

Em outras palavras, queremos que eles sejam iguais a nós, desde que fiquem bem longe. E então, se eles mostram que podem ser como nós, mas não querem invadir a Europa, fazemos o possível para instalar lá, no governo ‘deles’, mais um general adestrado nos EUA, para controlá-los.

Exatamente como Paul Wolfowitz reagiu ao Parlamento turco (porque não autorizara que as tropas que invadiriam o Iraque passassem por território turco), perguntando se “os generais nada disseram sobre aquela decisão?”, a Europa, agora, nos reduzimos a ouvir o que o secretário de Defesa Robert Gates dos EUA diz, rastejante, elogiando o exército egípcio por sua “contenção” – e aparentemente sem nem perceber que deveria elogiar, isso sim, o povo do Egito, os que desejam democracia, eles sim, magnificamente “contidos”, militantes da não-violência, em vez de elogiar um magote de generais-brucutus.

E é assim que, quando os árabes reivindicam dignidade, respeito e autorrespeito, quando clamam pelo futuro que o próprio Obama delineou no então elogiado – e hoje, suponho, já amaldiçoado – discurso na Universidade do Cairo em junho de 2009, nós desrespeitamos os árabes e manifestamos desprezo. Em vez de a Europa festejar que os egípcios estejam lutando por democracia, tratamos a luta e a reivindicação como um desastre.

É infinito alívio descobrir um jornalista norte-americano sério, Roger Cohen, que está “por trás das linhas” na praça Tahrir, e de lá fala a indesmentível verdade sobre essa nossa hipocrisia. E é desgraça sem alívio, quando falam os ‘líderes’. Macmillan deixou de lado as pretensões colonialistas, sobre a África não estar preparada para a democracia, e falou de “ventos de mudança”. Agora, os ventos de mudança sopram no mundo árabe. E nós lhes damos as costas.

++++

[1] O artigo, “A Paris, l’intelligentsia du silence”, de Thomas Wieder, foi publicado no Le Monde do domingo, 6/2/2011 em http://www.lemonde.fr/cgi-bin/ACHATS/acheter.cgi?offre=ARCHIVES&type_item=ART_ARCH_30J&objet_id=1147799, só para assinantes; pode ser lido na íntegra em http://www.protection-palestine.org/spip.php?article10086 (em francês).


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Comentários

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Roberto Locatelli

Grande Robert Fisk!

ZePovinho

O Coletivo Vila Vudu está arrasando,Azenha.Cada tradução DUCA.

    Roberto Locatelli

    Assino embaixo. Somos muito gratos.

Moacir Moreira

Mas afinal o correto é "Fraternidade" ou "Irmandade" Muçulmana?

Allan

Até hoje quando leio "analistas" e pessoas que comentam em espaços como este falando de "radicalismo", fundamentalismo", "terrorismo" e outros conceitos clichês, sempre atribuídos aos árabes e islâmicos eu me pergunto qual a linha que separa esse conceito do preconceito e da hipocrisia.

O que é ser fundamentalista?Acaso a teocracia Israelense(povo escolhido, terra prometida) não poderia ser considerada fundamentalismo? Matar civis em Gaza, Afeganistão, Iraque e Paquistão por acaso não é um ato terrorista?

Para a maioria ocidental, terrorismo é lutar contra a política de opressão sionista apoiada pelos EUA e para combater esse "terrorismo" eles usam a "pureza" da tortura e do assassinato indiscriminado de afegãos, iraquianos, paquistaneses e palestinos.

São análises rasteiras, adestradas pela imprensa estadunidense/sionista.

    Roberto Locatelli

    Veja bem, Allan, é assim:

    Os árabes são terroristas. Os soldados israelenses são devotados.
    Os islâmicos são radicais. Os sionistas são firmes em suas convicções.

    Acho genial uma cena do filme "O Falcão está à solta", apesar de ser estrelada pelo direitista Bruce Willis. Nesse filme, a vilã e seu marido se consideram gênios e se acham predestinados a dominar o mundo. Na cena em pauta a vilã diz ao mocinho (Bruce Willis, claro):
    – Existe todo tipo de maluco que se acha o centro do mundo. No nosso caso, é verdade.

Pedro Luiz Paredes

Eu tenho a leve impressão de que nós temos uma retórica política muito parecida e cada vez mais parecida com a dos EUA.
Quero dizer que da mesma forma que o PT e aliados tentam derrubar os alicerces político-econômicos deixados pela oposição numa cadeira que se conquista, e vice versa; os republicanos tendem a derrubar os alicerces dos democratas e vice-versa, no que não for unanimidade entre os dois partidos claro.
Como no Brasil onde temos temas que não são tocados quer pela situação, quer pela oposição.
Sem mais delongas e sob o risco de amadorismo, acho que não é a primeira vez que Obama da uma de Pilatos quando é "pego de surpresa".
Acho que é bem mais fácil para ele e seu partido dialogar e exercer influência no Oriente Médio democrático do que seus oposicionistas. Isso em qualquer momento da história.
Lembra do Clinton?
Qualquer conquista nesse sentido seria uma derrota imensa para seus adversários posto que setores econômicos agora dependem um pouco mais da opinião pública, pois há democracia. Dependentes da cultura geopolítica estadunidense até então vão precisar da habilidade que os Bushs não tem para conseguir qualquer coisa lá com o oriente médio democratizado.
Perceba como certas coisas se encaixam nessa linha como quando Lula interviu no Oriente Médio na questão do Irã.
Lula fez o que Obama não poderia fazer.
Ainda, a repercussão tão livre dessa e de outras atitudes de Lula no mundo.
A postura de Dilma na defesa dos direitos humanos frente ao Irã. Quem sabe caminha para uma democratização.
Acho que esta ficando claro a verdadeira guerra de bastidores, dignas dos melhores filme de conspiração já exibidos na telinha.

MA_Jorge

Aí esta, aos olhos do mundo civilizado, o verdadeiro modelo de Democracia pregado por EUA e Europa para os árabes do Oriente Médio.

E podem ter certeza de que, este é também aquela Democracia que eles desejam para os povos, árabes e negros, da já sofrida Africa.

Carlos Cruz

Estadunienses e europeus tentam ganhar tempo. "O tempo é o Sr. da razão", como já dizia um filosofo brasileiro. Mas há um perigo imenso. Radicalizar. Então a vitoria da ditadura virá, mas temporariamente. O pavio já está aceso. Tentarão apaga-lo, mas está aceso. Acredito que outra ditadura será instalada no egito, torturará, matará, sangue vai correr. Grupos insatisfeitos e radicais saberão utilizar os protestos para aumentar seu prestigio. O pacifismo será, então, derrotado pela radicalização. Vide Iraque, Afeganistão, Kuaite. Petroleo é a palavra chave. Petroleo.

José Carlos

Robert Fisk, mais uma vez, indispensável.

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