Vunesp: Quando o vestibular ajuda a espalhar preconceitos

Tempo de leitura: 6 min

Carta Aberta à VUNESP, Professores e Vestibulandos

do blog da Maria Frô

Partindo do real papel do vestibular na sociedade brasileira, qual seja, selecionar segundo critério meritocrático a entrada de estudantes nas universidades do país, falar desse processo seletivo obrigatório significa compreender que mesmo com a expansão da oferta de vagas efetuada na última década (através do Reuni, Prouni, Fies, entre outros Programas de acesso implementados nas universidades nos últimos anos, sobre os quais cabem críticas relevantes, porém não é o que pretendemos aqui no momento), ela ainda não é suficiente e, portanto, o vestibular continua ranqueando estudantes e deixando um grande número para o lado de fora dos muros das universidades públicas, ratificando a desigualdade econômica, de acesso à educação pública de qualidade, aos bens culturais e a meios de comunicação mais democráticos.

Nesse contexto, as provas dos vestibulares geraram e continuam gerando discussões na sociedade em geral a partir dos temas levantados nas questões de cada ano, (re)colocando muitas vezes assuntos importantes na ordem do dia, com base num conteúdo cientificamente embasado e utilizando-se de autores expressivos da sociologia, filosofia, história, geografia, literatura etc. para fazer com que os candidatos reflitam sobre o que se espera que respondam.

Porém, tendo em vista o último vestibular da Unesp — que coloca em xeque conceitos históricos que refletem a história política, econômica e cultural brasileira — vimos por meio desta carta, nos manifestar a respeito de algumas questões que ferem gravemente a legitimidade do vestibular que oferece acesso a esta Universidade, bem como seu estatuto científico, ambos frutos de conquistas às quais sempre fomos instigados a respeitar e defender, enquanto ex-alunos desta Instituição.

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Na questão 7, a temática da maternidade é apresentada de maneira absolutamente inapropriada para o momento histórico presente em que se coloca a questão de gênero como central nas análises sociais.

Inexplicavelmente a Vunesp recupera uma anacrônica leitura da questão de gênero, concebendo-a a partir de parâmetros naturalizantes.

Mesmo não encontrando qualquer evidência nos processos reais, o vestibulando é obrigado a ratificar uma visão que trata o tema como uma fatalidade biológica, se não mesmo como uma obrigação social ou moral da mulher.

Se a máxima lançada por Simone de Beauvoir, há mais de sessenta anos (“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a fêmea humana no seio da sociedade”), parece não incomodar a comissão elaboradora da prova, nos causa estranheza que não se sintam envergonhados por desrespeitar a obra daquela que foi provavelmente a mais destacada professora da Universidade Estadual Paulista em toda a sua história, Heleieth Saffioti, autora do clássico estudo “A mulher na sociedade de classes: mito e realidade”.

Ainda em relação a esta questão, cabe frisar que não é o acesso — ou falta dele — à educação que faz de um grupo social uma minoria política, mas sim a desigualdade vivenciada na correlação de forças, na distribuição do poder existente na sociedade.

Desse modo, reduzir toda a luta feminina a um singelo pedido por condescendência dos patrões em relação à ‘vocação natural da maternidade’ nos soa inadmissível.

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Na questão 59, existe a tentativa não apenas de suavizar, mas sim de eximir as nações europeias por qualquer responsabilidade sobre as consequências negativas decorrentes do espúrio processo neocolonial que escravizou e explorou diversos povos africanos, bem como as riquezas presentes em seus territórios, culpabilizando-os por sua atual situação de miséria, já que segundo o texto da questão, já haviam ali conflitos instaurados, antes da invasão das potências ocidentais.

Nos sentimos como se a Unesp estivesse simplesmente negando os ensinamentos de referências como Florestan Fernandes (“A integração do negro na sociedade de classes” ou “O negro no mundo dos brancos”), Octavio Ianni (“As metamorfoses do escravo” ou “Cor e mobilidade social em Florianópolis”, em parceria com Fernando Henrique Cardoso), o pluralismo inaugurado por Levi-Strauss (“Raça e história”) e fundamentalmente o método crítico de autores como Walter Benjamin (“Teses sobre a história”) e Edward Palmer Thompson (“A história vista de baixo”).

O autor joga uma nuvem de fumaça sobre a Conferência de Berlim (1884) e a partilha da África, com todas as suas consequências, portanto é negacionista. Depois, espontaneamente, faz uma alusão ao iluminismo (sem citar fontes), e nega os efeitos da presença de oligopólios europeus no Continente.

Ou seja, a análise do texto não se sustenta nem como reles nota de roda pé de estudos consagrados dentro da tradição crítica de interpretação dos processos sociais. E é esta interpretação crítica que vem sendo valorizada em todos os documentos referenciais para o tratamento de tais fenômenos no campo das ciências humanas quando voltadas para o ensino fundamental e médio, para não dizer da educação em geral.

É conhecida de todos nós, trabalhadoras e trabalhadores da educação, a resistência imposta pelas universidades públicas de São Paulo em adotar medidas que favoreçam a inclusão em seu meio de estudantes que fazem parte das minorias políticas, mas nem a tão defendida ‘autonomia universitária’ lhes dá o direito de fazer vista grossa para os Parâmetros Curriculares Nacionais em suas avalições admissionais.

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Na questão 56, chegamos à conclusão de que o debate sobre o multiculturalismo e o relativismo cultural deseja relativizar as construções sociais e políticas mais profundas da Sociedade Brasileira e sugerir uma ‘tolerância aos que intoleram’.

O problema da questão da Vunesp não é quem escreve e nem quem é citado como referência, mas o que se escreve e a maneira como se questiona: o lugar e os termos a partir dos quais se decide formular um problema e transformá-lo em questão para os vestibulandos.

Franz Fanon, lembrando daquilo que certa vez um professor seu lhe disse, afirmou: “sempre que você ouvir alguém maltratar um judeu, preste atenção, porque ele está falando sobre você [um negro]“. Quer dizer, falar de diferença enquanto atraso e barbárie no Iraque pode ser também um jeito de falar, por exemplo, de populações indígenas no Brasil, sobre países ou populações africanas ou afro-brasileiras e por aí vai.

Nossa preocupação com a questão envolve a linguagem e o formato no qual esta foi construída. Tal discurso, defensor do caráter hierárquico no trato das tradições culturais, pode até encontrar amparo ou legitimidade dentro daquela tradição denominada criticamente por Edward Said como ‘orientalista’, mas soa como ‘palavra mofa’ à luz da renovação crítica que a área dos estudos culturais sofreu nas últimas décadas.

Defendemos uma educação plural, que valorize a diversidade inesgotável no campo das ciências. O que não podemos fazer é nos calar diante de uma proposta educativa que se negue a ser crítica!

Esperamos que esta manifestação quebre o silêncio até agora existente a respeito do problema aqui apontado. O corpo docente parece alienado deste debate, não se incomodando com o fato do vestibular estar fazendo chacota aberta das teses e ideias que eles mesmos nos ensinaram nesta instituição que tem tão larga tradição de participação crítica no debate público nacional.

Os estudantes também não se manifestaram publicamente a respeito da questão. Esperamos que o façam a partir de agora, e utilizando os mais variados instrumentos e meios de pressão. Como ex-alunos da Unesp, mas fundamentalmente como trabalhadoras e trabalhadores da educação, nos recusamos a acreditar que auxiliar os alunos a ‘escovar a história a contrapelo’ possa promover a seleção de respostas erradas nas provas admissionais.

Neste sentido, convidamos a todos que sintam-se representados por este documento que assinem embaixo e divulguem da melhor forma que julgarem possível. Mais que um texto nosso, é uma construção coletiva.

Douglas Oliveira
Thomas Kodaky
Gustavo Rossi
Davi Alexander Boruszewski
Fernando de Figueiredo Balieiro
Fábio Leandrin
Rafaela Rabesco
Carlos Renato Florio
Nathalia Maringolo
Camilla Marcondes Massaro
Del Omo
Rodrigo Dionisi Capelli
Maicon Nicolino
Naiara Teixeira
Lívia Moraes
Diego Alvares Garcia
Daniel Gomes de Carvalho
Aline Pedro
Patricia Olsen
Ricardo Parra Catarina
Rafael Emilio Faria
Vera Cecarello
Marta Menezes
Mônica Menezes Santos
Roberto Della Santa
Robson Rocha Magri
Mateus Godoi
Carlos Zacarias de Sena Júnior
Regina Miyeko Oshiro
Bianca Sabina Olmedo Monteiro Ferreira
Gaya Maria Vazquez Gicovate
Laís Túbero Izidoro
Uiran Gebara da Silva
Wagner Nicolau Tavares da Silva
Pâmela Leite Simões
Lara Rodrigues Facioli
Paula Nicolau Tavares da Silva
Vanessa Xavier Nadotti
Bruno Meng
Carolina Florencio Pontes
Talita Menegas Pontes
Calis Vinicius Stocker Zandoná
Felipe Freitas de Souza
Silvio José Piovani Junior
Lucas de Carvalho Pelegrino
Breno Carlos da Silva
Marcelo Adolfi
Gisele Lemos da Silva
Ricardo Normanha Ribeiro de Almeida
Aline Saes Rodrigues
Larissa Camila Gonçalves
Ricardo Polimanti
Fábio Gerônimo Mota Diniz
Tadeu Carlos Silva
Cibele Aparecida Fabretti
Fabrício Galleti
Michele Mucio Campani
Thais Vahia de Abreu
Erika Siste Boaventura
Arthur Malaspina
Diego Vitorino
Sofia Lopes de Araujo
Renato Remanaschi Cabrini
Gabriela Oliveira da Costa
Regina Rodrigues
Giovanna Bucioli Pojar
Deni Alfaro Rubbo
Henrique Novo
Livia Maria Terra
Carolina Ribeiro Pátaro
Lucas Tanaka
Diego Coletti Oliva
Flávia Mercúrio Prates
Isabelle Demétrio

PS do Viomundo: Um vestibular que baseia uma das suas questões em texto de Rodrigo Constantino não merece ser levado a sério.

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Comentários

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Narr

Se a responsabilidade da pobreza fosse dos próprios pobres, então por que continuar a cobrar impostos e gastar dinheiro com programas sociais?

É a igualdade social, estúpido!

Thomas Kodaky

Aos que concordam com a Carta, por favor, deixem manifestem seu apoio nos comentários do link abaixo. Obrigado!
https://www.facebook.com/permalink.php?story_fbid=747194008693365&id=747193165360116&fref=nf

    Raul

    E os que não concordam? Ou só é interessante reunir nomes que concordam com essa besteira?

    Luiz (o outro)

    Ui! Calma, Reinaldete, calma!

Mauro Assis

Enquanto a academia brasileira passa metade do ano discutindo questões como essa e a outra metade em greve, a Índia coloca satélite em órbita de Marte…

    Mário SF Alves

    Sim e não. Primeiro porque nós já teríamos colocado satélites até na órbita de Júpiter não fosse a tragédia [e a possível sabotagem] ocorrida na base de Alcântara. Segundo porque não há como fazer vista grossa à imoralidade política da direita mais corrupta, golpista, covarde, dissimulada e submissa do mundo que, novamente, grassa à solta entre nós.

    Luiz (o outro)

    E Cuba tem uma das melhores medicinas do mundo… por que vc não fala pros seus amigos do norte seguirem o exemplo deles?

Tutameia

Muitos reclamam da divisão dos brasileiros quase fifty to fifty, meio a meio entre coxinhas e petralhas, aparentemente querendo se estraçalhar mutuamente..mas como são exatas metades acabam por se anular e imobilizar..daí eu penso: isso não é uma coisa boa afinal? como são todos selvagens desmiolados a hegemonia de qualquer dos lados inviabilizaria a existência de nosotros que não estamos com nenhum dos dois. Então salve o equilíbrio da estupidez…

    Mário SF Alves

    Exagero seu. Ora, colocar em pé de igualdade a militãncia petista com a mediocridade de opinião política imposta pela direita através, sobretudo, do PiG, é perder totalmente o rumo da análise.

    Luiz (o outro)

    Em cima do muro? Claro que é tucano…

Mauro Assis

Colocar um texto em uma prova para que o mesmo seja interpretado pelo aluno à luz de seus conhecimentos não me parece inadequado, qualquer que seja o texto.

Se a UNESP colocar no seu vestibular um trecho do Mein Kanpf quer dizer que a UNESP é nazista? Ops, olha euzinho incorrendo na Lei de Godwin…

Márcio Gaspar

Na questão 59 além de suavizar o genocídio africano, faz um ataque ao ENEM. A prova do ENEM é excelente, exige nas questão uma maior reflexão do aluno, diferentemente da Fuvest que é uma prova decoreba na maior parte de suas questões. Agora quando vi o autor da questão 56, não pude deixar de me espantar: Não acredito!!!

João Brasileiro

Olá, Azenha

Onde assino?

Lukas

O texto de Constantino é perfeito, se posiciona. Sobre este assunto não vemos um posicionamento da esquerda.

    Luiz (o outro)

    Que ótimas referências vc tem, heim?

Otto

Não vejo problemas na questão 56. Apesar de citar um texto do patético Rodrigo Constantino, o tema é pertinente, e sem dúvida uma pedra no sapato de parte dos bem pensantes de esquerda. De fato, qual seria o limite do relativismo cultural?

    Mário SF Alves

    Concordo, Otto.

Mário SF Alves

PS do ViOM: Um vestibular que baseia uma das suas questões em texto de Rodrigo Constantino não merece ser levado a sério.
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Tese:

Se o Rodrigo Constantino defende com unhas e dentes o decadente “american way life” e as práticas funestas das corporações que tomaram de assalto os EUA, e, uma vez que os EUA por sua vez tomaram de assalto o Iraque, e que o Iraque, após isso, e não necessariamente em decorrência disso, está prestes a se tornar um país pedófilo, logo Rodrigo Constantino, longe de conseguir seu mísero intento de defender o imperialismo na invasão do Iraque, revelou-se ele mesmo igualmente adepto…

a) da barbárie imperialista,

b) do monoculturalismo anglo-saxão;

c) do pensamento único neoconservador;

d) ou apenas mais um presunçoso a serviço da criminosa Veja.

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Infelizmente não tratamos aqui de um caso isolado de tentativa de desconstrução ou virtualização fukuyamica da realidade e da História. A questão 59 do referido vestibular baseia seu argumento avaliativo em autor e retórica semelhantes.

Por analogia, estranho mesmo é tal vestibular não ter incluído o Villa. Ou será que incluiu?

Fábio

Não basta o governo de São Paulo não fazer os repasses da arrecadação do ICMS de acordo com as reais necessidades estruturais das instituições de ensino superior paulistas, agora também querem afundar com o patrimônio intelectual dessas mesmas instituições.

Gumercindo Saraiva

Uma vergonha. Usar textos de Leandro Narloch e Rodrigo Constantino é o fim da picada! Dois energúmenos que não têm a mínima noção de pesquisa histórica. As questões deviam ser anuladas. Caio Prado, Nelson Werneck, Florestan Fernandes, Fernando Novais, Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Pedro Calmon, José Honório Rodrigues… Perdoai-vos pois vivemos um momento de reacionarismo escancarado.

ramon barros lopes

São Paulo está em um processo pra se tornar um território partido da nação brasileira. Parece irreversível.

Flavio de Oliveira Lima

Quero assinar tambem. Que vergonha! Rodrgo constantino no vestibular da unesp!!! VERGONHA!!!!

    Mário SF Alves

    Vergonha?

    Humm… isso porque você não ficou sabendo da briga pela inclusão de questões que faziam referência ao Villa, ao Lobão e ao Olavo de Carvalho.

    Luiz (o outro)

    Faltou o “imortal” Merdal…

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