Pepe Escobar: Líbia, as tribos contra o bunker

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Líbia: as tribos contra o bunker

26/2/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online

A revolução da Líbia é revolução tribal. Não foi, nem está sendo, liderada por jovens intelectuais urbanos, como no Egito, nem pela classe trabalhadora (na Líbia, a massa trabalhadora são estrangeiros). Apesar de os atores do levante anti-Muammar Gaddafi serem um mix de jovens líbios comuns, educados e/ou desempregados, e de parte das classes médias urbanas, além de desertores do exército e dos serviços de segurança, a tribo se sobrepõe a todas essas divisões. Nem a Internet foi ator absolutamente decisivo, no capítulo líbio da Grande Revolta Árabe de 2011.

A Líbia é tribal de A a Z. Há 140 tribos (qabila), 30 das quais com influência decisiva, uma delas – a tribo Warfalla – de mais de um milhão (numa população de 6,2 milhões de almas). Em geral, levam os nomes das cidades de origem. O coronel Gaddafi está dizendo que o levante líbio é golpe organizado pela al-Qaeda, levado avante por hordas envenenadas com alucinógenos no Nescafé-com-leite. A realidade é menos lisérgica: uma coalizão de várias tribos pode vir a destronar o rei dos reis da África.

Imenso graffiti numa parede da Benghazi libertada diz “Não ao sistema tribal”. É sonhar acordado. Os oficiais do exército líbio são os notáveis tribais seduzidos ou corrompidos por Gaddafi, numa estrita estratégica de dividir para governar, desde o nascimento do regime em 1969. Na Tunísia como no Egito, o exército foi decisivo para a derrubada do ditador. Na Líbia é muito mais complicado. O exército não é tão importante, comparado às milícias paramilitares – privadas e mercenárias – comandadas pelos filhos e parentes de Gaddafi.

Gaddafi e o filho Saif, seu “modernizador”, já jogaram as cartas que lhes restaram, antes do genocídio: sedição (fitna) e islamismo, muito ao estilo de Hosni Mubarak, em termos de “ou eu ou o caos”. No caso da clã Gaddafi, trata-se de “sem nós, é ou guerra civil – que o próprio regime fabricou – ou Osama bin Laden” (invocado como deus ex machina pelo próprio Gaddafi). A maioria das tribos não engoliram o golpe do “deus mais poderoso que a máquina”.

O futuro de Gaddafi é sombrio. A tribo Awlad Ali, dos territórios próximos à fronteira do Egito, está contra ele. A Az Zawiyya virou-se contra ele no início da semana. A cidade de Az-Zintan, 150 quilômetros a sudoeste de Trípoli, movimenta-se para onde vá a tribo Warfalla; todas essas tribos estão contra Gaddafi. A tribo Tarhun – mais de 30% da população de Trípoli – está contra ele. O Sheikh Saif al-Nasr, ex-líder da tribo Awlad Sulaiman, falou à al-Jazeera, convocando os jovens das tribos do sul a unirem-se aos manifestantes e rebeldes. Muitos de sua própria tribo, a pequena Qadhadfa, também já estão contra Gaddafi.

Matar a sociedade civil

A tribo – com seus clãs e subdivisões – é a única instituição que, ao longo de séculos, organiza a sociedade dos árabes que habitam as regiões colonizadas por italianos, no início do século 20, chamadas Tripolitania, Cyrenaica e Fezzan.

Depois da independência da Líbia, em 1951, jamais houve partidos políticos. Durante a monarquia, toda a política girou em torno das tribos. Quando a revolução de Gaddafi, em 1969, reformulou o papel político das tribos, elas se tornaram guardiãs avalistas dos valores culturais e religiosos. A ideologia da revolução de Gaddafi circulou próxima do socialismo – com o povo como sujeito (teórico) da história. Os partidos políticos também foram descartados. Entraram em cena os comitês populares e o congresso popular. A elite tribal – os anciãos das tribos – foi isolada.

Mas o tribalismo revidou. Primeiro, Gaddafi decidiu que os postos da administração seriam distribuídos por afiliação tribal. E então, nos anos 1990, Gaddafi renovou as alianças com os líderes tribais: precisava deles “para livrar-se da oposição montante e de traidores de vários tipos”. Entraram em cena os “comandos sociais populares” – para combater a corrupção e resolver disputas locais. Assim, a tribo retomou seu lugar no andor, como ator político.

Gaddafi tomou todos os cuidados para manter aliança indestrutível com a tribo Warfalla. E, usando uma estratégia resumida num slogan – “o povo em armas” –, conseguiu domar o exército. Os postos chaves do serviço secreto foram dados à sua própria tribo – Qadhadfa – e a uma tribo que o acompanhava na revolução, a Maqariha. Assim, na prática, essas duas tribos monopolizaram todos os setores chaves da economia e – literalmente – eliminaram qualquer oposição.

Resultado inevitável desse sistema político tribal, foi o esmagamento de qualquer sociedade civil baseada em instituições democráticas. Não sobrou nenhum espaço social para a classe média letrada. E, então, começou o embargo imposto pelos EUA – que durou dez anos. A economia – que já andava mal – entrou em espiral descendente: jamais se fez qualquer redistribuição decente da riqueza imensa do petróleo e gás. A inflação e o desemprego explodiram. Na retórica, sempre se falou de “democracia direta”. Na realidade, os poucos “vencedores” eram parte da mesma burguesia de estado reacionária, fossem os reformistas liderados por Saif; os conservadores (fiéis ao Livro Verde de Gaddafi); ou os tecnocratas (sempre de olho nos sumarentos negócios com empresas estrangeiras).

Ano zero em Cyrenaica

Não surpreende que o levante tenha começado em Benghazi – sempre excluída de qualquer estratégia de desenvolvimento, numa região, Cyrenaica, de infraestrutura precaríssima ou inexistente, se comparada à Tripolitania.

Agora, o oficialmente chamado “Estado das Massas” (Jamahiriya) está à beira do colapso. É ano zero em Cyrenaica. Impossível não lembrar dos primeiros dias do Iraque “libertado”, em abril de 2003. O Estado sumiu. Comissões populares, grupos islâmicos e bandos armados controlam o território. Ninguém sabe que rumo tomarão as coisas.

O que acontecerá depois da batalha de Trípoli (pressupondo que a oposição consiga por as mãos em algum armamento pesado)? É muito possível que a Líbia desapareça e se demarquem territórios tribais autogovernados, controlados pelas tribos, como no Afeganistão e na Somália – medo que a oposição no exílio já trabalha para exorcizar.

Antes disso, como Gaddafi avisou, haverá sangue. A Força Aérea é controlada diretamente pelo clã Gaddafi. Dois de seus filhos têm posições chaves: Moutassim é chefe do Conselho de Segurança Nacional e Khamis comanda uma brigada das Forças Armadas. O exército conta com 150 mil soldados. Os altos comandantes militares têm tudo a perder, se se separarem dos Gaddafi. Segundo estimativas confiáveis, Gaddafi ainda comanda cerca de 10 mil soldados. Sem contar os “negros africanos” pagos em ouro, um exército mercenário, a maioria dos quais foram introduzidos na Líbia via Chad.

Seja lá o que for que venha a emergir desse vulcão, não parece haver meio de evitar que a Líbia seja partida em territórios tribais. Não é exagero dizer que, para a juventude – tribal – líbia, que foi às ruas para lutar contra o regime super armado de Gaddafi, a peste é a mentalidade tribal. Não será varrida da noite para o dia.

Mas a melhor expectativa que se pode acalentar, nas terríveis circunstâncias de hoje – sob a ameaça de genocídio e crise humanitária, e todos acossados pelo espectro da guerra civil – é que a internet arraste o país na direção de uma era pós-tribal. Mas, antes disso, ainda é preciso tomar e destruir um bunker.


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Comentários

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Arthur Fraga

Não se despreze também a vertente capitalista, visto o discurso da Clinton de hoje. "Gaddafi tem de sair já!' Ou seja, queremos esta pequena mas estratégica fatia de petróleo e ser "amigos" dos novos dirigentes, antes que o Osama desemebarque mesmo por lá. Só como lembrete, o Gaddafi tem mais de 40 km de túneis feitos com tubos ARMCo, colocados sob o deserto por empresas brasileiras, cheio de armas e munição, para ziquezaguear antes de cair. Vai ser carnificina na certa.

Arthur Fraga

O artigo do Escobar passa ao largo de um ponto fundamental. O "auto-isolamento" que a Líbia se enclausurou por se opor às diretrizes da Irmandade Islâmica, desde a queda do Ri, que já era refratário a tal interferência. Quando Gaddafi (vou ficar com a redação do autor) assumiu a IM achava que ele iria se alinhar, mas ele preferiu a "independência de pensamento". Por isto é considerado um "grande traidor" por muitos muçulmanos. No fundo é esta a questão. A Líbia é uma porta perigosa para a Europa – quero ver como o Berlusconi e o Sarkosy vão tratar os refugiados – Ele, Gaddafi, pode ter errado apontando Osama Bin Laden como mentor. Os mentores são os mentores do Osama, ou seja, a Irmandade Muçulmana que, como no Egito, diz não estar por detrás de nada, mas está à frente das negociações. O mundo árabe é muito complicado de se analisar, mas atribuir tão somente as tribos o levante contra Gaddafi é simplificar demais. O 1% de petróleo que a Líbia extrai são muitos bilhões de dólares para as "haliburtons" da vida.

JotaCe

Caro Azenha,

Quer me parecer que a incursão do Pepe Escobar no campo da etnologia não se sustenta ao apresentar ele um suposto movimento de tribos como causa da insurgência que ocorre na Líbia. Imagino que é difícil a um jornalista se opor à grande mídia de todo o mundo, a qual defende os interesses de grandes e corruptas companhias petrolíferas apoiadas pelos seus governos. O caso é singularmente idêntico ao do Iraque, país que foi destruído, e no qual ocorreu um dos maiores genocídios da história dos tempos modernos. O apelo final para a ‘destruição do bunker’na Líbia é, por todas as formas lamentável. Será que não poderia o jornalista considerar, ao invés de tal pregação de guerra, uma sugestão ao diálogo num caminho para a Paz?
Abraços,

JotaCe

Guanabara

A minha dúvida aí é a seguinte: se a Líbia se desfizer como Estado e se dividir entre as tribos (processo que certamente será a molho pardo…), há petróleo em todas as regiões ou algumas tribos sairão beneficiadas pelo ouro negro e outras não? Se a receita é dividir para dominar, te garanto que tem cachorro do ocidente de olho na carniça, só esperando ver o q vai dar para dar o bote.

JotaCe

Caro Wylliam,

Sinceramente não entendi porque você informa que o Rei da Arábia Saudita pretende introduzir ‘mais’ democracia no país. É o caso de perguntar se já existe alguma. Sempre ouvi dizer que naquela nação existe uma ditadura feroz e onde a tortura de prisioneiros e a discriminação das mulheres são as grandes marcas do governo saudita…Abraços,

JotaCe

Glauter

Nesse momento em que o povo Líbio está prestes a tomar o poder, eis que surgem mais uma vez os "guardiões da liberdade e da democracia" no mundo.
Os EUA, amigos do ditador Mubarack, querem levar também para a Líbia os seus PETRÓLEODUTOS junto com a sua conhecida "democracia" de alta OCTANAGEM.

Assim como ocorreu no Iraque, Kadafi poderá ser enforcado, e aquelas tribos que reagirem contra a invasão IANQUE serão chamadas pela MÍDIA mundial por INSURGENTES.

É assim mesmo, contra Kadafi luta o povo Líbio, contra os INVASORES IAQUES lutam os INSURGENTES (e sem pátria, apenas insurgentes). É assim que a Mídia (voz do império) nos "informa" e tudo se passa como se assim o fosse.
As tribos andarão de joelhos pela nova Líbia, agora democrática. "Democrática" e Independente? Bem, Independente é outro assunto.

Wylliam Zacarias

São bastante interessantes e esclarecedores essas informaçoes sobre a história do povo líbio,formado por tribos. Na Árabia Saudita,o rei Abdullah,de 86 anos,recém-chegado dos Estados Unidos,após passar por uma delicada cirurgia cardíaca e atento ao que está a ocorrer no Mundo Árabe-islâmico,decidiu liberar 30 billhões de dólares para serem investidos na área social do país,tentando se evitar os protestos civis por mais democracia e qualidade de vida. Que Deus ilumine as mentes de todos os povos do mundo…

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