No Brasil, consumidor pequeno e médio paga 40 vezes mais por energia do que as multinacionais. E a privatização da Eletrobras só vai piorar isso

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O CEPEL de Adrianópolis, cuja pesquisa pode ser entregue de bandeja (Reprodução Ayrton 360 graus)

O que está em jogo com a ameaça de privatização da Eletrobras

Por Alex Ribeiro e Ednubia Ghisi, no portal do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná

A Eletrobras, empresa pública brasileira gigante do setor elétrico mundial, está entre os alvos da política de privatização aplicada pelo governo Michel Temer.

Ela tem 233 usinas do Brasil e é responsável por um terço da energia consumida no país, com receita líquida anual de R$ 60,7 bilhões.

A intenção do Ministério de Minas e Energia é reduzir a participação da União na Eletrobras para 47% e arrecadar cerca de R$ 20 bilhões com a venda.

Para debater o tema, o Senge Paraná preparou este especial O que está em jogo com a ameaça de venda da Eletrobras, a partir de uma entrevista e de uma palestra do engenheiro eletricista Roberto Pereira d’Araujo, diretor do Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético (Ilumina).

Ele esteve em Curitiba em dezembro para o seminário A crise do setor energético e a privatização da Eletrobras, realizada na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

O evento ocorreu pela iniciativa do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Educação e Tecnologia (GETET), do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade da UTFPR, com apoio do Senge Paraná e da Seção Sindical dos Docentes da UTFPR (SINDUTF-PR).

O pesquisador é ex-chefe de departamento em Furnas Centrais Elétricas, ex-conselheiro de administração de Furnas, entre 2003 e 2005, com experiência na área de planejamento do setor elétrico.

Como síntese da sua avaliação sobre o risco de venda da Eletrobras, o pesquisador reforça a urgência de políticas de Estado que coloquem em primeiro lugar os interesses coletivos, e não os individuais.

“Privatizar é ter uma visão individualista. Ao contrário, a gente tem que ampliar essa visão da coletividade”.

Setor elétrico brasileiro no mundo

Ao comparar o Brasil com outros países que utilizam hidroeletricidade, Roberto Pereira d’Araujo afirma a predominância do controle estatal.

“Quais são os países que têm hidroeletricidade na sua base elétrica? A China, a maior produtora de energia elétrica, depois o Brasil, em seguida os Estados Unidos, a Noruega, a Suécia, e nenhum deles você tem essa visão de que tem que ter tudo privado. Nos Estados Unidos, as grandes usinas são do Estado, são controladas até pelo exército americano, e tem empresas privadas”.

Sinalizar a privatização é ir na contramão do que ocorre no mundo, avalia o pesquisador.

“Acho que nós estamos num caminho equivocado, porque o futuro é do quilowatt-hora, e não é mais do barril de petróleo. Os carros serão elétricos, nossos telhados terão células fotovoltaicas. E a Eletrobras é a única dona de um centro de pesquisa em energia elétrica. Então é extremamente preocupante esse caminho”.

Complexidade do modelo brasileiro

Roberto Pereira d’Araujo classifica o Sistema Elétrico brasileiro como único em todo o mundo, e de alta complexidade.

“O setor elétrico brasileiro está uma complicação que pessoas que trabalham no setor elétrico não entendem. Tivemos que imitar um sistema de base térmica”.

Se é complexo para os profissionais da área, os consumidores de energia elétrica tem dificuldades em entender a própria conta de luz.

“Por exemplo, a bandeira vermelha, são 5 reais por cada 100 quilowatts hora. No mundo ninguém usa essa unidade, usa ou quilowatts hora, ou megawatts hora. Cinco reais por cada 100 quilowatts hora são 50 reais por megawatts hora. Quando você faz o cálculo de quanto você paga, tirando a transmissão, imposto, encargo, iluminação pública, quanto você consumiu de quilowatt hora, o aumento é monstruoso, é de quase 20%, e a população fica enganada. O consumo médio brasileiro é de 160 quilowatt hora, olha que maldade, imagina quem está abaixo”.

Entre os fatores que explicam isso estão as dimensões continentais do país.

“Se tem algum a país com um sistema parecido com o brasileiro, por incrível que pareça, é o Canadá, por também ter grandes reservatórios. Então ele também tem essa dúvida, ‘vou usar água hoje, ou guardo ela’. Mas, se você pegar o Canadá, da fronteira sul para a norte dá mil quilômetros. No Brasil são 4 mil quilômetros, são 20% do diâmetro da terra. Se o país é longitudinal, ele tem variações de clima. O nível de transferência de energia entre o sul e o sudeste é um negócio inacreditável. É como se você pegasse quatro usina de Furnas e transferisse pro sul. A função da transmissão no Brasil nenhum país do mundo tem. Se você diminuir a capacidade de transmissão, a oferta cai. Provavelmente se você cortar metade da transmissão, vai ter racionamento. Isso não existe em nenhum país do mundo”.

Uma especificidade do Brasil é que as usinas não vendem a sua geração de energia, e sim uma cota-parte que o Sistema indica, o chamado certificado de Garantia física, calculado com um modelo matemático que simula a “importância” da usina para o Sistema como um todo.

A análise do professor indica os seguintes percalços na opção por esse modelo.

“Os certificados dependem do critério de operação. Os critérios são alterados várias vezes, mas as garantias físicas não mudam. O preço de curto prazo é fortemente influenciado pelo critério do operador. A ‘garantia’ dá claros sinais de que está superavaliada”.

A transmissão de energia primária entre regiões é outro diferencial de extrema importância.

“No sistema brasileiro, a transmissão não exerce apenas o papel de transporte de energia entre usina e consumidor. Aqui, a transmissão ‘transfere’ usinas de uma região para outra”, explica o professor.

Os grandes reservatório das usinas funcionam como caixas d’água, que dão ao Brasil o recorde mundial em capacidade de reserva de carga: numa situação hipotética de seca total dos rios, o país teria energia por cinco meses, com a manutenção do consumo atual.

De quem é a ineficiência?

Um dos argumentos utilizados para defender a privatização é que a empresa seria ineficiente. Na avaliação do especialista, o problema não está na empresa.

“A ineficiência não é da Eletrobras, a ineficiência é do modelo. O modelo impôs à Eletrobras um papel que ela não deveria ter. Por trás da ineficiência da Eletrobras, há, por exemplo, a falta de iniciativa do setor privado, que precisa, além do BNDES, de parcerias com a Eletrobras. Você vai usando o Estado além do que ele pode fazer”.

“A Eletrobras foi muito fragilizada ao longo da história. Quando foram vendidas as distribuidoras [no governo FHC], aquelas que o mercado não quis foram jogadas em cima da Eletrobras, que teve que pegar empréstimo para comprar as distribuidoras. Depois houve o negócio com o mercado livre, quando a Eletrobras foi descontratada. Ela tinhas as tarifas mais baratas, mas foi descontratada, e não podia vender no mercado livre. Continua gerando energia. Esse é que é o problema, você não gera porque tem contrato, você gera por que o operador nacional manda você gerar. Então ela perdeu muito dinheiro. Depois veio esse efeito bumerangue do mercado livre, que não atraiu investimentos e por isso a Eletrobras teve que fazer várias sociedades específicas, e teve vários prejuízos. E depois, infelizmente, veio a medida provisória 779, de redução tarifária, que foi uma redução correta”.

Retorno às políticas liberais da década de 1990

Na avaliação de Roberto d’Araujo, os problemas enfrentados pelo Setor Elétrico brasileiro não são de hoje, e refletem a adoção de uma “modelo mercantil” que tem início em 1995, com leis implementadas pelo governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) com vistas à privatização.

Entre 1996 e 1999, a venda de empresas do setor consolida esta opção.

“Na década de 90 nós vendemos 26 empresas do setor elétrico, a dívida pública subiu de 34% para 71%. Depois não diminuiu muito não, continua mais ou menos nisso. Nós estamos outras vezes com 70 e pouco por cento de dívida pública, e estamos mais uma vez vendendo. Parece que a gente não está aprendendo. Quando o país não aprende, esse argumento que você está vendendo ativos para resolver o problema fiscal não tem o mínimo sentido. Nós temos que fazer uma conta: vender a Eletrobras como o governo está propondo, seria preciso 20 Eletrobras, para cobrir o déficit fiscal”.

A privatização interessa, e muito, às grandes empresas.

“Eu não tenho nenhuma dúvida de que chegar no Brasil e comprar uma empresa ou usinas construídas, não existe negócio melhor. Você compra uma fábrica pronta, produzindo o produto e você ainda negocia o preço ainda vai aumentar. Nós estamos caminhando para a importância da energia elétrica aumentar tremendamente. E como é que você tratar disso com empresas privadas que têm lógicas de outros países. Nós estamos num vértice de caminhar para uma energia completamente diferente, das fotovoltaicas”, aponta o pesquisador.

“Prêmio Nobel para quem conseguir baixar a tarifa”

Ao longo dessas duas décadas de privatização, entre 1995 e 2017, a tarifa média residencial teve aumento de 50%. Já para as indústrias [do mercado cativo], o valor da tarifa cresceu em 130%.

Os altos custos fazem com que o país tenha a 5ª maior tarifa do mundo, conforme dados de 2016.

Apesar de ter sistemas similares, o Brasil cobra o dobro da tarifa do Canadá.

“Estamos com uma tarifa absurda, num país hidrelétrico. O que explica esse valor? São as revisões tarifárias após a privatização”, aponta o integrante do Ilumina.

Para o estudioso, os dados sobre o aumento da tarifa confirmam que “não é vantajoso privatizar”.

Ele frisa que o Setor Elétrico brasileiro já é de maioria privada, mas que há a construção por parte da mídia de que “o Estado é culpado de tudo”.

Por isso, ele ironiza: “Prêmio Nobel para quem conseguir baixar a tarifa” após a privatização.

Mercado livre e as grandes corporações

Se por um lado o custo da energia para domicílios e fábricas menores está entre os maiores do mundo, por outro, preço médio para tarifa o chamado mercado livre é desconhecido, pela falta de transparência nas operações.

Nesta fatia de consumidores estão grandes indústrias, inclusive de capital internacional.

O que se sabe, conforme apresenta Roberto d’Araujo, é que as empresas do mercado livre economizaram 76 bilhões de reais em energia no último período.

“De 2003 até 2012, os preço do mercado livre estão muito abaixo do que a indústria cativa paga e do que você e eu pagamos. Chegou a ordem de que nós pagamos 40 vezes mais do que alguém que está no mercado livre. […] A pequena indústria que está no mercado cativo, que é atendida pelas distribuidoras, sofreu um aumento de 95 até agora de 130% acima da inflação. Ou seja, as pequenas indústrias, que não conseguem ir para o mercado livre por questão de tamanho e de carga, elas vão embora do Brasil. É o que está acontecendo. Várias indústrias estão indo para o Paraguai, porque tem uma energia praticamente gratuita, em função de Itaipu”.

Fazem parte deste mercado as grandes empresas, grandes produtores, que consomem grandes cargas.

“O grave é que ninguém sabe por quanto compra. É secreto”.

Esta falta de transparência faz com que o Brasil não saiba qual é a tarifa média da indústria, porque a indústria que está no mercado livre não revela por quanto compra.

“O mercado livre cresceu uma barbaridade entre 2003 e 2008. Os preços do mercado livre são muito baixos. Hoje o mercado livre é mais ou menos 27% da carga brasileira, e ela não atraiu investimentos. Duvido que alguém me aponte uma grande usina que tenha sido construída para atender ao mercado livre. E o governo percebeu isso e tomou a iniciativa de propor parcerias com o setor privado, sendo a Eletrobras minoritária, para prover essa falta de vontade de investir no Brasil”.

“Nós somos um prato feito para as negociações secretas, porque nós não temos nenhuma transparência”, garante Roberto d’Araujo.

Como exemplo, ele cita o caso da usina de Belo Monte, em que a Eletrobras foi obrigada a comprar energia que não foi comprada pelo mercado livre, por motivos não divulgados.

Cepel em risco: da autonomia à dependência tecnológica

Uma das mais graves consequências da privatização, de acordo com Roberto d’Araujo, é a perda da capacidade de pesquisa e inovação tecnológica voltada ao interesse pública.

O Centro de Pesquisas de Energia Elétrica foi criado pela Eletrobras em 1974, e é o autor da metodologia de operação do Modelo de Planejamento da Operação de Sistemas Hidrotérmicos Interligados de Longo e Médio Prazo, chamado newave, que organiza o sistema brasileiro.

“No passada não havia ONS [Operador Nacional do Sistema], não havia Câmara de Comercialização de Energia, a Aneel [Agência Nacional de Energia Elétrica] era um departamento nacional de águas e energia, e quem fazia a coordenação da operação era a Eletrobras. Quando você pensa em transferir esse capital, se transfere no hall. Na década de 90, o governo quis aplicar aqui o modelo inglês, de competição real, contrataram consultores ingleses. Mas eles não entendiam como o sistema brasileiro funcionava, eles queriam fazer com que as hidrelétricas competem entre elas, e foi a Cepel que disse ‘o sistema não funciona assim, funciona cooperativamente’. Você imagina o valor que tem isso. Todo o modelo, chamado newave, que opera o sistema, e diz ‘agora desliga essa cisterna, agora liga essa usina, agora o sul quem que transmitir pro sudeste, agora o sudeste tem que transmitir pro nordeste’, isso foi feito dentro do Cepel. Quando você vende, entrega de graça”.

Este cenário ameaça a autonomia adquirida pela Eletrobras ao longo dos anos.

“Até agora, o Brasil não era dependente de nenhuma tecnologia, nem de transmissão, nem de geração, nem de construção de barragens, nada. Os estudos elétricos era de vanguarda no Cepel. Agora, provavelmente, com a entrada das fotovoltaicas, que a gente importa tudo, e das eólicas, que o Brasil só fabrica as pás. Nós podemos ficar para trás. É um desastre, um país enorme desse, cheio de recursos naturais, cheio de vento, cheio de rio”.

Políticas sociais por água abaixo

O programa Luz para Todos levou energia elétrica para 3,2 milhões de famílias e 15,6 milhões de brasileiros até 2015.

O programa começou em 2003, em parceria da Eletrobras com o Ministério de Minas e Energia, para superar uma triste estatística apresentada pelo IBGE: 21, 2 milhões de famílias no meio rural brasileiro não tinham luz.

Nos 12 primeiros anos do projeto, foram investidos R$ 22,7 bilhões nas obras, sendo a maioria do recurso vindo do governo federal e o restante dos governos estaduais e das distribuidoras de energia.

Nas previsões de Roberto d’Araujo, caso a Eletrobras saia das mãos do Estado, este tipo de política social vai deixar de existir: “Se você propuser isso para a empresa privada, ela vai dizer sim, quanto você vai me pagar?

O pesquisador pondera sobre as facilidades também concedidas às grandes empresas, usuárias do mercado livre.

“Ninguém pode ser contra o Luz para Todos, teria que ser feito. O problema é como se paga. Para que você tenha isso dentro de uma empresa pública, você não pode fazer também um Luz para Todos para os grandes, esse é que é o problema”.

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