Lula Miranda: Carta a um futuro jornalista

Tempo de leitura: 6 min

16/09/2010

Carta capital a um jornalista do futuro

por Lula Miranda, na Carta Maior

Prezado Jornalista,

Escrevo-lhe do Brasil, cidade de São Paulo, em meados de Setembro do ano de 2010 (a caminho da sagração da Primavera). Peço-lhe o máximo de paciência [a prosa será por demasiado extensa], cuidado, ponderação e desprendimento ao ler esse depoimento/testemunho. Intuo que um calendário, na parede à sua frente, registre um ano qualquer na segunda metade desse século XXI. Certamente, se tomar como parâmetro a realidade dos tempos que você vivencia aí, aquilo que chamaria grosseiramente de “übermídia”, achará absurdos, inacreditáveis mesmo, os fatos que passarei a lhe narrar. Mas, asseguro-lhe, trata-se da mais pura verdade (a tal “factual”).

Estou seguro de que o seu “olhar épico” propiciará um julgamento e uma visão mais eqüidistante e reveladora dos dias difíceis que vivemos por aqui. Remeto-lhe essa mensagem com a esperança de que zele para que parte da história da imprensa seja contada de forma a que esteja preservada a verdade dos fatos, como eles ocorreram realmente; para que não prevaleça apenas a versão deturpada daqueles que chamamos de “donos do poder” [ver Raymundo Faoro].

Aqui, nos dias que correm e, em verdade, desde sempre, os principais veículos de comunicação pertencem a cerca de meia-dúzia de famílias [sim, por incrível que pareça tal oligopólio existe e, o que é pior, ainda é permitido]. Dá para você imaginar o que disso resulta em termos de controle e manipulação da informação? Compreendo ser difícil você ter a mais remota idéia do que essa realidade que vivemos hoje significa [algo aos seus olhos tão distante, extemporâneo, atrasado, estapafúrdio e espúrio], mas…

Digo-lhe ainda outra [impropriedade]: os proprietários desses veículos são aqueles aos quais esses mesmos meios deveriam fiscalizar. Grandes empresários e/ou parlamentares são donos [ou sócios majoritários] dos principais jornais, revistas, redes de rádio e televisão, e suas retransmissoras – até portais de internet. Já pensou no absurdo dessa situação?! Ou seja: a raposa no encargo de tomar conta do galinheiro. Impensável, não?

Esses veículos trabalham em sintonia e em rede. “Claro! Como conseqüência do avanço da tecnologia das comunicações” – exclamaria você, inocentemente. Não propriamente, esclareço. A “sintonia” e a “rede” funcionam aqui com o seguinte significado e fim: todos os veículos, mancomunados, em “sintonia fina”, transmitem de maneira massiva a mesma versão dos fatos e, claro, só os temas e notícias que interessam à preservação do status quo. Estão todos a serviço dos conservadores de sempre, aqueles que querem manter as coisas exatamente como estão; os que defendem o estabelecido [os já citados “donos do poder”].

Captou a nuance da coisa? Tentando ser ainda mais claro: quando eles desejam se ver livre de algum ministro ou alto funcionário do governo que está atrapalhando seus negócios e interesses, ou mesmo se livrar de algum membro do partido desse governo (ou de um partido aliado do governo), ou ainda, em última instância, quando querem/desejam derrubar o próprio presidente começam a “operação bombardeio”. Exemplo de caso: um determinado veículo [por exemplo, a revista Veja, cuja tiragem já foi de um milhão de exemplares, hoje, caindo, na casa dos oitocentos mil] dá como matéria de capa um suposto escândalo contra determinado integrante da máquina pública. Então, na seqüência, o principal noticiário da rede de televisão [o jornal Nacional da Rede Globo – audiência também cadente] dá a notícia com pompa e circunstância. Em seguida, quase sempre de modo simultâneo, todos os demais veículos esquentam e repercutem essa matéria até transformar aquele “suposto” escândalo num fato consumado. Com esse ardil, aprenderam a forjar “novas realidades” ou “supra-realidades”, bem como “novas” lógicas e linguagens, muito semelhantes à “novilíngua” e ao “duplipensar” [ler “1984” de George Orwell].

Um dos dois maiores jornais daqui de São Paulo [com circulação em todo o Brasil], tamanho é o seu parcialismo às escâncaras, que foi recentemente ridicularizado, em escala global, com piadas e mensagens sarcásticas no Twitter [foi trending topic: com cerca de 50.000 mensagens postadas!]. Ou seja: exagerou tanto na dose que se tornou motivo de zombaria na rede. Sobre esse veículo pesquise os seguintes termos ou expressões: “ditabranda” e “ficha falsa da Dilma”. Veja a que ponto seus editores chegaram, a que nível baixaram! É de estarrecer.

Porém, reitero o devido registro, talvez até por se utilizarem desses artifícios antiéticos, capciosos, esses veículos estão perdendo, a cada dia, mais e mais leitores, condenados que estão ao descrédito – e, você bem sabe, a credibilidade é o maior patrimônio intangível de uma empresa de comunicação. A falta de credibilidade certamente os conduzirá, de modo célere, à bancarrota.

Peço-lhe desculpas, pois sei que falo sobre coisas que há muito deixaram de existir aí no seu tempo: revistas, jornais, televisão, Veja, Rede Globo etc. Imagino que aí, na segunda metade do séc. XXI, a internet holográfica (em 3D) e a blogosfera sejam as principais fontes de informação. Por aqui ainda vivemos a expectativa desse auspicioso “porvir”. Mas a blogosfera já se insinua como a ponte que nos auxiliará nessa grande e instigante travessia.

As redações dos grandes veículos da mídia, nos dias de hoje, têm, como se fossem supermercados, um verdadeiro estoque de falsas denúncias. Metaforicamente falando, são prateleiras e mais prateleiras onde estão dispostas, e muito bem organizadas [por partido, por grupo de interesse, por esfera de governo (federal, estadual e municipal), por cargo na hierarquia governamental etc.], denúncias diversificadas, “escândalos” variados. Tem escândalo para toda hora e ocasião.

“Mas não é exatamente essa a função dos jornalistas: vigiar governos, instituições e fazer denúncias?” – ponderaria você, com legítima razão. É verdade. Mas o “demônio” se esconde nos detalhes – como se diz por aqui. O problema é que os grandes veículos nos dias de hoje só fazem denúncias contra os partidos desse governo que aí está, de um perfil e estrato mais popular, e nenhuma crítica ou denúncia para valer contra os partidos das elites conservadoras, que desejam a todo custo e meios retomar o poder. Outra: a maior parte dessas denúncias é nitidamente falsa ou manipulada; muitas delas são “plantadas” pelas máfias da política e da imprensa, algumas são grosseiras “armações”. Acredite no que lhe digo.

Quem são/eram os “fornecedores” dessas denúncias ardilosas? Os jornalistas compactuavam/aceitavam esse estado de coisas? São perguntas mais do que legítimas, óbvias, e sei que você as está formulando nesse exato instante. Com relação aos fornecedores, num dado instante, houve uma deturpação do chamado “jornalismo investigativo”. Jornalistas passaram a se utilizar dos serviços de estelionatários e “arapongas” [inclusive ex-agentes da época da ditadura] que, por sua vez, se utilizavam de métodos similares aos utilizados pelas máfias – foi aí, tudo indica que, o jornalismo se irmanou ao crime e começou a cair em desgraça.

Já sobre o silêncio e cumplicidade, tenho uma teoria, pois testemunhei inúmeros casos: basta dar a um jornalista trinta, cinqüenta e até cem mil “dinheiros” [converta à moeda da sua época] de salário por mês que esse indivíduo, como num passe de mágica, se transforma e passa a falar com a voz do chefe, e a pensar com a cabeça do patrão. Os demais, os “focas” ou os jornalistas “proletários”, são, quase sempre, pessoas honestas, decentes, mas nada podem fazer por medo de perder o emprego (têm muitas bocas a alimentar – daí utilizar-me do termo “proletários”). Em face disso, creio, o mau-caratismo começou a prevalecer.

Tem também a questão do “mensalão” da mídia [“Mensalão” – rótulo que a grande mídia deu a esquema de caixa 2 dos partidos da base aliada ao atual governo]. Mas esse tema requer uma outra carta.

Sei que você deve estar pensando que tudo isso é absurdo, vergonhoso e se indagando como é possível que jornalistas e cidadãos em geral se submetessem a esse estado de coisas. Saiba que, para mim, é deveras constrangedor confessar-lhe que vivi nesses tempos de vergonha e infâmia. Porém, informo-lhe, apenas para registro, por mais incrível que isso possa lhe parecer, quando reclamávamos disso (perante o Congresso e as instituições) éramos estratégica e maliciosamente rotulados de “stalinistas”, de “inimigos da democracia”, e de que estávamos cometendo um atentado contra a liberdade de imprensa; redargüíamos, tentávamos explicar, incessantemente, diuturnamente, que estávamos indo em verdade, não contra, mas a favor desse “princípio dos princípios” – de nada adiantavam os nossos argumentos. Assim tentavam nos calar e impediam qualquer tentativa de democratização dos meios, ou mesmo qualquer embrionária iniciativa que visasse esse fim.

Veja bem, o que buscávamos era exatamente uma imprensa livre! Livre por princípio. Livre das sombras, das amarras e dos ditames dos interesses escusos dos patrões e seus grupos de pressão. “Utópicos”, “idealistas”, desejávamos exatamente uma imprensa livre, libertária e comprometida apenas com a verdade factual e a serviço de todas as classes [com ênfase, claro, nos desassistidos e nos trabalhadores]; a serviço do homem enfim. Acredite se quiser, mas, como disse, é a pura verdade.

Desculpe-me ter me utilizado de excessivo número de caracteres nessa comunicação. Ainda somos demasiadamente “prolixos” e pretensamente “literários”. Saudações de tempos pretéritos.

Lula Miranda

Lula Miranda é poeta e cronista. Foi um dos nomes da poesia marginal na Bahia na década de 1980. Publica artigos em veículos da chamada imprensa alternativa, tais como Carta Maior, Caros Amigos, Observatório da Imprensa, Fazendo Média e blogs de esquerda.


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Comentários

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Baixada Carioca

Aí, o futuro jornalista, na Academia, tem o sonho de substituir o Bonner no Jornal Nacional. Conheço formando em jornalismo que abre o verbo. Se tiver que fazer em nome da empregabilidade, fará. Só idealistas farão jornalismo de vanguarda e estes estão na blogosfera.

Aloísio da Costa Val

"Saudações de tempos pretéritos." Tomara que esses tempos sejam pretéritos o mais rápido possível.

Alexandre Tambelli

Excelente texto Azenha! E bem esclarecedor para um Jornalista em um futuro hipotético. Tomara que lá seja diferente e o Jornalismo desejado por todos nós seja efetuado. E que não se conheça nenhum Jornalista ou Órgão de Comunicação que pratique algo como a Veja, as Organizações Globo, a FSP e mais alguns grupos de "Comunicação" da velha mídia!

Marat

E o pior é que esses caras, empregados de empresas de "comunicação", que se dizem jornalistas, não demonstram vergonha pela sua vil condição de penas-pagas.

maria regina

Lula Miranda, você também é "o cara".

Helio

Este comentário do Lula Miranda é tão rico e esclarecedor no seu conteúdo sobre o jornalismo que se pratica hoje no Brasil que devería ser encaminhado para todas as escolas de jornalismo e, se possível, ser publicado em todos os meios possíveis de informação para todo o povo brasileiro.

GeorgeLuckas

eu acredito que este futuro está mais próximo do que parece…

o jb e o nytimes já aderiram à vanguarda e estão marcando presença na internet…nem sempre de forma positiva, infelizmente…

me apropriando de uma denominação anunciada por PHA, eu digo que a minha opinião é de que já é chegada a hora do fim da prostituição do jornalismo que acontece no PIG…

e em um relativo curto espaço de tempo a blogosfera o derrotará… e seu destino se reduzirá a se adaptar ou perecer…

Rosângela

O povo já tem noção deste tipo de manipulação, em 2006 eles viram a mesma coisa, então já estamos escaldados desse tipo de jornalismo partidár4io e golpista.

El Cid

Bravo Lula Miranda !! beleza de texto !!

…e para o PIG, a famosa frase de Marx, no 18 de Brumário: "a História se repete a primeira vez como tragédia; a segunda como farsa."

Ivan.Marc

Já está na hora de dar um basta nessa mídia golpista, que pensa que o povo é otário… Mas o povo não cai mais nesse tipo de golpé. A imprensa golpista já era!

VLO

Perfeito!

Maria Dirce

Continuando o texto…..
prezado jornalista
Temos que acabar com as concessões de tvs e radios no Brasil, que sejam pagas com dinheiro de quem as compra e não com dinheiro público, que façam publicidade do que bem entendam e banquem, e o governo federal que anuncie na NBR, e apenas pronunciamentos oficiais a todos os canais.Jornalistas que assinem matérias caluniosas sem provas que sejam imediatamente punidos, e reparados seus danos a quem quer que seja atingido.Que refaçam as concessões de tvs e radios no Brasil, dentro de critérios justos e igualitários sem que meia dúzia considerem "donos" de concessões públicas e queiram o poder político pra manuseio próprio.

Ester Alves

A profissão de jornalista não é dos poderosos barões, a classe precisa lutar para não morrer. Tenho uma filha que está terminando o curso de jornalismo, desde cedo pressentiu que as coisas andavam para trás. Ela migrou para mídias sociais no ambiente corporativo. O sonho de ela ser jornalista foi esmagado.

Eridan

Rapaz, tinha que ser um Lula!! Parabéns!! Esse vou imprimir e pendurar na parede da minha sala, para que todos testemunhem!! Mais uma vez, parabéns!!

adhemar

lula miranda!!!!! com certeza,chegaremos lá,eles estão incomodados,lembrando "simone"com a musica(como sera amanhã) certamente tera uma parte de vc

getulio cardozo

A imprensa tem que ser nós. Diga pela voz dos sinhos, que falam do alto das torres, que a imprensa tem que ser nós. Se achar a notícia na calçada pegue e passe para frente, porque a imprensa tem que ser nós. Leve a notícia numa lata até o amigo da esquina, porque a imprensa tem que ser nós.

Carlos

Beleza, Lula Miranda! – embora entenda que faltou alguma referência à orientação de banir o "outroladismo".
Para efeito de contraste, que lhe parece inserir na cápsula cópia do "Código de Ética do Jornalista"? – e de mensagens das diretorias da FENAJ e da ABI?

Gil Teixeira

aplausos efusivos!
Boa, Lula! Muito boa mesmo!

francisco.latorre

tem futuro o jornalismo?..

..

Olho na oPósição

Azenha:
Os "jornalistas" (ou como diria "colonistas" do PIG(*) deveriam começar a se preocupar. http://blogbloqueio.blogspot.com/2010/09/o-povo-n

Pedro Cruz

Todos ao ato contra o golpe do PIG. Torço para que seja um sucesso e que seja o primeiro de muitos pela democratização dos meios de comunicação. No começo será contra o PIG, mas que passará a ser tambem, contra os "tribunais de justiça".

J. Fernandes

Prezados.
Só tem um jeito: Polícia Federal prá cima deles!!!
Minha sugestão: Que um dos blogueiros de maior destaque (o próprio Azenha, Eduardo Guimarães, Nassif, PHA etc) promovam um abaixo-assinado para que seja criada uma CPI da mídia ou, ao menos uma investigação da PF sobre ela.

Fernando Oliveira

Muito bom… Parabéns. Belo e lúcido apanhado do cretinismo midiático do "nosso tempo". Como sou absolutamente contrário á hipócrisia de certos eufemismos, gostei da menção nada honrosa aos pseudos-jornalistas, cínicos, vendidos, abjetos, pilantras, vagabundos, que por qualquer "trinta dinheiros" deitam letras e falação acerca do que querem que eles digam, ou pensem(?), seus cretinos patrões…

Eduardo Guimarães

Grande Lula.

Denilson

Vivemos, sem dúvida, um momento histórico, que ficará marcado, para o bem ou para mal!

Não fazíamos noção (eu, pelo menos,não fazia), que estávamos ainda num período tão negro da nossa história. Acreditávamos que estávamos livres da ditadura tirânica dos detentores dos meios de comunicação. Os "veículos de comunicação" escancararam essa terrível verdade.

Felizmente estamos reagindo e, parece, vencendo os querem a manutenção desse "status quo".

Comemoremos a vitória ou reagiremos na derrota!!! Mas, não mais ficaremos calados, apáticos!

Jose Rob Rodrigues

Parabens ao Lula Miranda. Comecei a ler o texto e em deteminado momento comecei a chorar. Chorei até o fim.Como é emocionante a verdade.

Cícero

Gostei imensamente do texto! Brilhante! Oportuno! Verdadeiro! Um precioso legado às gerações que estão por vir. A ousadia da mídia golpista parece não ter limites. Essa imprensa maldita que todos os dias acusa, calunia e difama pessoas sem sofrer qualquer punição judicial, sobrepondo-se à lei, embalada pela omissão do Ministérioo Público e pela conivência de "certas" autoridades públicas de reputação moral duvidosa. Porém isso está mudando. Os dias dessa imprensa tradicional estão contados. A Web nos trouxe a possibilidade de agregarmos valores e de expormos nossos verdadeiros anseios e sonhos, como resposta sólida a essa imprensa golpista, sórdida, suja, decadente e imoral. Nossas manifestações democráticas, em alguns sites e blogs de jornalistas sérios; nosso pensamento coletivo, manifesto nos sítios da blogosfera, cujas páginas hospedam um jornalismo de qualidade; a crônica dos nossos dias registrada por revistas de credibilidade como a Carta Capital, exemplo de jornalismo competente, de credibilidade, comprometido com a VERDADE DOS FATOS, sem maquiá-los, sem distorcê-los, sem omiti-los; isso tudo passará para as gerações futuras através dos séculos, como um grande, um imenso e vitorioso movimento social de resistência contra a súcia maldita de tucanos e afins que, apoiados pela imprensa golpista, tentam, por meio de um golpe sujo, tomar o poder em nosso país. Isso, não podemos aceitar, não podemos permitir jamais.

Jairo_Beraldo

Essa não é uma estratégia nova. Já foi utilizada muitas e muitas vezes. Casos notórios em política, a midia cria a ameaça para depois, mostrar que tem a cura. Como a mídia propagandea que os governistas atuais são maus, comem e matam criancinhas. Por causa disso, tentam instalar o pânico. Justamente a zona de abrangência do PT.

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