Leonardo Lusitano: O tal de “Escola sem partido” busca naturalizar a desigualdade

Tempo de leitura: 5 min

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Escola sem Escola

por Leonardo Lusitano, especial para o Viomundo

Em sua apresentação, o projeto “Escola sem Partido” afirma que as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimento, abertos às mais diversas perspectivas de investigação e capazes, por isso, de refletir, com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade.

No Brasil, entretanto, boa parte das escolas públicas e particulares não cumpriria esse papel.

Seriam vítimas do assédio de grupos e correntes políticas e ideológicas que transformariam as escolas em simples caixas de ressonância de doutrinas e agendas desses grupos.

Logo de cara já podemos perceber alguns problemas nesse discurso, não existe neutralidade.

Como diz de modo provocador Negro Leo, músico radicado no Rio, “só o céu dos otários é neutro”.

Não há nas ciências sociais nenhum estudo com credibilidade que sustente a existência de reflexões neutras.

Por outro lado, Paulo Freire- único brasileiro entre os 100 livros mais pedidos nas universidades dos EUA — afirmava que “Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: a sua base ideológica é inclusiva ou excludente?”

Seguindo os rastros de Freire, podemos então perguntar: a base ideológica do Escola sem Partido é inclusiva ou excludente?

Deixemos um pouco de lado o temível Paulo Freire para lembrar do filósofo francês Gilles Deleuze, cujo pensamento é visto como heterodoxo pela esquerda marxista.

Para Deleuze, não existe governo de esquerda e sim um governo que poderia ser favorável a algumas exigências da esquerda.

Ser de esquerda e não ser de esquerda é uma questão de percepção. Não ser de esquerda é como um endereço postal.

Parte-se primeiro de si próprio, depois vem a rua em que se está, depois o país, os outros países e assim cada vez mais longe.

Começa-se por si mesmo e, na medida em que se é privilegiado, costuma-se pensar em como fazer para que essa situação perdure.

E ser de esquerda é o contrário. É começar pela ponta. Primeiro perceber o mundo, depois o continente, seu país, até chegar à sua rua e a si mesmo.

Sabem que não é possível manter privilégios, que milhões não podem ter direitos negados. Que não é possível o nível de injustiça atual. Não em nome da moral, como alega o “Escola sem Partido”, mas em nome dessa percepção que quer ganhar o mundo com o umbigo.

Resumindo, ser de esquerda é saber que os problemas de moradores de favelas, periferias e comunidades ribeirinhas estão mais próximos de nós do que os do nosso bairro.

Percebemos então que a neutralidade é uma falácia. Pois qualquer discurso tem base ideológica, quer dizer, parte de uma percepção. E a percepção do “Escola sem Partido”? Como se dá?

De acordo com esse site que tem pautado projetos de lei “contra a instrumentalização do ensino para fins políticos”, é preciso combater a instrumentalização do ensino para fins políticos, ideológicos e partidários.

Um dos objetivos centrais nesse combate é lutar pelo respeito ao direito dos pais de dar aos seus filhos a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.

Para o “Escola sem Partido”, a abordagem de questões morais em disciplinas obrigatórias viola esse direito.

Daí a necessidade de que os conteúdos morais sejam varridos das disciplinas obrigatórias.

Acontece que o site e seu PL ignoram uma diferença fundamental entre moral e ética.

Moral é um conjunto de valores elaborados fora daquela comunidade, de cima para baixo; regras para serem seguidas com ameaça constante de punição.

Já a ética é um conjunto de práticas negociadas por uma dada comunidade, para criar boas relações, para que cada um tenha nela seu lugar legítimo e assim o direito à diferença.

O direito de dar aos filhos educação moral de acordo com a convicção dos pais é um direito a ser exercido. Acontece que no universo de uma escola pública não há unidade nas convicções dos pais ( e das mães, por favor).

A escola é o lugar da diversidade e não de valores homogêneos. Segundo o último censo IBGE, cerca de 20% da população brasileira não se declara cristã, por exemplo.

A escola pública e o Estado devem ignorar os valores de 40 milhões de brasileiros para atender às convicções das famílias adeptas ao Escola sem Partido?

É para dar conta dessa diversidade que o MEC criou os temas transversais.

Segundo o MEC “são temas que estão voltados para a compreensão e para a construção da realidade social e dos direitos e responsabilidades relacionados com a vida pessoal e coletiva e com a afirmação do princípio da participação política. Isso significa que devem ser trabalhados, de forma transversal, nas áreas e/ou disciplinas já existentes”.

Os temas transversais, nesse sentido, correspondem a questões importantes, urgentes e presentes sob várias formas na vida cotidiana.

Com base nessa ideia, o MEC definiu alguns temas que abordam valores referentes à cidadania: Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural.

É muito simples para os ideólogos do “Escola sem Partido” afirmar que a escola deve educar de acordo com as convicções dos pais quando estes tentam definir até o que é família.

Querer que o Estado atue na educação pública a partir apenas das convicções de um grupo (esquecendo-se que esse grupo pertence a uma classe) é começar a perceber a realidade social por si mesmo, reafirmar uma visão distorcida do Brasil que disfarça todo tipo de privilégio injusto.

É naturalizar uma base ideológica excludente, construída por uma elite do dinheiro pelo qual a classe média morre de amores, como nos lembra o sociólogo Jessé de Souza.

No Brasil, quem é que tem mais tempo disponível para educar os filhos de acordo com suas convicções?

Os endinheirados e a classe média ou a ralé que já começou a ter seus direitos trabalhistas rapinados pelo “novo” governo ilegítimo?

Não estaria então essa proposta aprofundando um modelo de escola pública excludente já criticado por Darcy Ribeiro nos anos 80?

O diploma de ensino médio numa boa escola particular qualifica estudantes para disputar uma vaga na Universidade. Mas a escola pública precisa funcionar para transformar a realidade social de jovens excluídos, ensinar direitos e responsabilidades individuais, precisa estimular a participação política, produzir sentido, criar perspectivas.

Isso é educar, mediar um processo de aprendizagem onde jovens possam ter liberdade para escolher novos modos de ser e viver.

As ocupações secundaristas apontam para uma escola baseada na diversidade e na horizontalidade em busca de afirmar sentidos.

Se a produção de sujeitos, de identidades críticas e solidárias não for papel da escola pública, para que servirão seus diplomas?

Apenas para trabalhar como atendente nas redes de lanchonetes que tanto exploram nossa juventude?

Há educação nessa escola ou apenas um controle e uma instrução que mantém o povão bem longe do gosto perceptivo da elite e a classe média?

Para os partidários do “Escola sem Escola”, que ignoram injustiças pois só enxergam suas demandas trocando olhos por umbigo, existir preconceito de gênero e racial, genocídio de pobres e filas de sopão são coisas naturais, oportunidades para que suas boas consciências exerçam a caridade.

Mas as ocupações estão mudando as escolas públicas, essa juventude aprendeu que tem direitos, que na democracia o povo é soberano. Vai ter partido (e esquerda) na escola. Vai ter educação na escola. Vai ter Escola na escola!

Leonardo Lusitano é professor de História da rede pública de Itaboraí, no Estado do Rio de Janeiro

Leia também:

Giam Miceli: Defender “escola sem partido” é ignorância sem tamanho


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Comentários

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Márcio Franco

Excelente texto! “Só o céu dos otários é neutro”. Essa juventude das ocupações tá dando uma aula que vai ser aprendida na marra pelos barões.

Elizabeth berlandi

Excelente reflexão e argumentos leo!!!!!!

FrancoAtirador

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Liberdade de Ensino será Solucionada no Supremo Tribunal Federal (STF)

em Ação Direta de Inconstitucionalidade da Lei Estadual 7.800, de Alagoas.

O Caso (ADI STF 5537) está sob Relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso.

(http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318078)
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FrancoAtirador

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STF nega Trancamento de Ação Penal Contra Clérigo
Acusado de Incitação à Discriminação Religiosa

A Denúncia do Ministério Público se Fundamentou
em Trechos de um Livro Publicado pelo Sacerdote
que fez “Afirmações Discriminatórias à Religião
Espírita e às Religiões de Matriz Africana,
como a Umbanda e o Candomblé”.

http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318076
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Kah

Belo texto. A imagem trouxe a lembrança de um vídeo clip do Pink Floyd, o qual assisti há anos, na facul. Foi impressionante. Não lembro o nome da música.

Kah

Belo texto. A imagem trouxe a lembrança de um video clip q

    Cleuza

    Querem começar doutrinação para a obediência cega a partir das escolas. Ou seja usar recursos públicos para deformar em vez de formar cidadãos.

Márcio Gaspar

Ótimo texto que mostra as contradições de quem defende a ideia do projeto “escola sem partido”. Ideias defendidas por pessoas medíocres que não tem a menor afinidade sobre temas educacionais e não tem o mínimo de conhecimento suficiente para discutir o assunto. São pessoas que tiveram suas “ideias” transportadas dos espaços de comentários de sites conservadores, que também não tem a mínima ideia sobre educação, mas que estavam fazendo na internet o seu papel político de oposição escrevendo que as escolas estavam sendo dominadas por partidos de esquerda que defendem o comunismo e outros tantos assuntos que vem a tona e vira uma repetição em diversos sites espalhados pela internet(Lei Rounet foi uma, e outros tantos(auxilio reclusão, foro de São Paulo, dolares de Cuba etc) que vieram antes). O que acontece é que esses grupos ganharam espaços importantes de representação pública para emplacarem a sua estupidez. Não existe a mínima possibilidade de impor ao professor neutralidade sobre o conteúdo que será transmitido e construído junto com aluno, ainda mais relacionado com as disciplinas de Ciências Humanas como História, Geografia, Sociologia e Filosofia, que tem um peso nas discussões sobre meio ambiente e sociedade mostrando as suas contradições, pois mostrar contradições é perigoso para esse grupo. Para eles só deverião existir Português e Matemática e deixar as demais disciplinas em segundo plano. Não deixaria de incluir as disciplinas de Ciências Exatas, que trazem importantes discussões sobre formação do Universo, para ficar somente num tema, mas há vários questões importantes que essas disciplinas trazem também. A ideia de que a família tem que transmitir os valores morais para os seus filhos. ok, mas isso não é de fato o que os defensores da “escola sem partido” desejam, pois não reconhecem a diversidade que temos na escola e na nossa sociedade, em que o autor bem expôs. O que eles querem é a defesa do ponto de vista deles, não reconhecendo essa diversidade, tanto assim é, que já combateram “cartilhas” sobre diversidade sexual nas escolas, um tema transversal, que o Plano Nacional de Educação tem como determinação a ser tratado nas escolas. É necessário combater essas ideias e mostrar as contradições e preconceitos que carregam.

FrancoAtirador

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Enquanto isso, o Mendoncinha do DEM, depois de receber

Alexandre Frota e Marcelo Reis, agora Resignados Off Line,

exonerou 31 Assessores Técnicos do Ministério da Educação,

entre os quais 23 ligados à Secretaria de Educação Continuada,

Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI)…

(https://youtu.be/zqnNCe2FGUw)

http://jornalggn.com.br/tag/blogs/mendonca-filho
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    FrancoAtirador

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    Publicado Decreto de Reforma do Ensino
    instituindo Sistema de Castas na Educação,

    Formulado por Mendoncinha e Alê Frota
    e Assinado pelo Provisório Michel Jaburu:
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    IMPÉRIO DO BRAZIL DOS ESTADOS UNIDOS
    .
    DECRETO Nº 630, DE 17 DE SETEMBRO DE 1851
    .
    Hei por bem Sanccionar, e Mandar que se execute
    a Resolução seguinte da Assembléa Geral Legislativa.
    .
    Art. 1º O Governo fica autorisado para reformar ensino
    primario e secundario, observando as seguintes disposições:
    […]
    5ª Quando o Governo reconhecer que a existencia de alguma destas casas
    he prejudicial aos bons costumes, ou á educação da mocidade,
    poderá mandar immediatamente fecha-la; ficando todavia salvo
    ao respectivo Director o recurso para o Conselho d’Estado.

    6ª As Escolas publicas de instrucção primaria

    serão divididas em primeira e segunda classe.
    .
    Nas de segunda classe o ensino deve limitar-se

    á leitura, calligraphia, doutrina christã,

    principios elementares do calculo

    e systemas mais usuaes de pesos e medidas.
    .
    Nas de primeira classe o ensino deve, alêm disto,

    abranger a grammatica da lingua nacional, e arithmetica,

    noções de algebra e de geometria elementar,

    leitura explicada dos evangelhos, e noticia da historia sagrada,

    elementos de geographia, e resumo da historia nacional,

    desenho linear, musica e exercicios de canto.
    […]
    Art. 3º Ficão revogadas as disposições em contrario.
    .
    O Visconde de Mont’alegre, Conselheiro d’Estado,
    Presidente do Conselho de Ministros,
    Ministro e Secretario d’Estado dos Negocios do Imperio,
    assim o tenha entendido, e faça executar.
    .
    Palacio do Rio de Janeiro em dezesete de Setembro
    de mil oitocentos e cincoenta e hum,
    trigesimo da Independencia e do Imperio.
    .
    Com a Rubrica de Sua Magestade o Imperador.
    .
    .
    http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-630-17-setembro-1851-559321-publicacaooriginal-81488-pl.html
    .
    .

Miriam Lopes

Sou do tempo da escola com Educação Moral e Cívica, pena que com o fim da ditadura tenhamos ficados com tantas coisas negativas deste tempo, e tenhamos abandonado esta disciplina, que ao menos para quem estudou nessa época aprendeu o que era responsabilidade de cada poder (executivo, legislativo e judiciário) e de cada ente federativo (federal, estadual e municipal). Está disciplina deveria ter sido democratizada com o fim da ditadura. Hoje esses temas definidos pelo MEC (Ética, Saúde, Meio Ambiente, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Pluralidade Cultural) cabem em uma disciplina no qual o melhor nome seria Cidadania, onde também poderiam ser ensinados os deveres e responsabilidades dos poderes e dos entes federados, e qualquer outro tema que necessitasse de uma resposta urgente. Mas entre os temas elencados pelo MEC acho que está faltando a “Educação para o trânsito”, pois as ruas e estradas do país são locais onde milhares de brasileiros morrem todos os anos, principalmente por falta de educação no trânsito.

Sandra Regis

Claro. Objetivo. Inteligente.Como sempre…
Leonardo Lusitano.

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