Gilson Caroni: Olurun Eke e a república incompleta

Tempo de leitura: 2 min

por Gilson Caroni Filho, em Carta Maior

Ao incluir o Dia da Consciência Negra no calendário escolar, a lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, não propiciou apenas um resgate da história dos povos negros. Foi bem além. Ensejou a necessidade de um novo olhar sobre culturas que, ao contrário da postulação ocidental, não colocam a questão da Verdade, de conteúdos absolutos e inarredáveis, de essências escondidas atrás de formas ou aparências. Sua riqueza é de outra ordem. E talvez este seja o significado mais profundo do dia 20 de novembro: memória e resistência como possibilidades históricas.

Para os que estudam a cultura afro-brasileira, é importante registrar a dinâmica de suas origens. Nelas, observamos uma espécie de culto da forma pela forma, algo como a valorização das dimensões plásticas. Seus mitos, rituais, danças, jogos e orações não remetem a quaisquer referências que lhes sejam exteriores, não expressam “outra coisa”, não são aparências de uma essência. Portanto não podem ser “decifrados”, “interpretados” ou “descobertos”, como ainda pretendem algumas de nossas teorias da cultura, herdeiras do ranço etnocêntrico do velho colonizador.

É o que apreciamos na aparentemente inconciliável visão de mundo que parece existir em alguns poetas negros, como Solano Trindade (1908-1974). Em versos como “A minha bandeira/ É da cor de sangue/ Olurun Eke/ Da cor da revolução/ Olurun Eke“, há uma estranheza que parece apontar para ausência de sentido lógico. Pura ilusão. O que lemos são instantes culturais, sínteses de uma vida vivida, de um artista ao sentir a realidade trágica do que é ser negro, também no Brasil.

Na verdade, do ponto de vista dos afro-descendentes, as expressões artísticas são mais para serem percebidas sensorialmente, vistas com a Alma, do que para serem “entendidas”. Existe, portanto, uma defasagem entre aquilo que se quer dizer de um lado, e o que se consegue transmitir na realidade. É exatamente neste espaço que o negro brasileiro consegue criar as coisas mais bonitas de sua produção simbólica e de maior valor para sua negritude.

Ser negro no Brasil de 2010 é, culturalmente, assumir a Alma Popular: é pensar a partir do ponto de vista do povo. É, sobretudo, estabelecer sintonia ideológica com as classes sociais que foram exploradas durante nossos 510 anos de história. O grande saque que se iniciou com a invasão portuguesa, por causa do pau-brasil, continuou e prosperou até depois da Independência, sempre a beneficiar os brancos. Consolidou-se com a Abolição/Proclamação da República, e continua até os nossos dias.

No terceiro milênio, da perspectiva do negro, a paz, objetivo perseguido por toda a espécie humana, passa necessariamente pela resolução dos problemas que o grande saque, ocidental e cristão, criou para a negritude. No Dia da Consciência Negra, é preciso repudiar a História do Brasil como um suceder de arranjos, combinações, “jeitinhos” em que o conflito nunca aparece ou, se vem à tona, é considerado como “coisa externa à nossa gente”.

O processo de desestruturação do mito da “democracia racial” no campo teórico tem avançado muito nos últimos anos. Já no terreno social e da luta política, apesar das políticas públicas implementadas recentemente, o atraso ainda é considerável. Por isso, é necessário resgatar a memória histórica dos negros, em todos os tempos e sentidos. Olurun Eke, para que a República seja proclamada em definitivo.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil


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Comentários

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Edson

Sou branco. Sou e gosto de me sentir assim. Isto não siginifica ser racista. O orgulho de raça pode levar ao racismo. O etnocentrismo também. Aliás, frases como "preto tipo A" ou quaisquer similares oriundas de qualquer grupo são tendenciosas. Não é possível aceitar ataques a alguém porque ele é preto, índio, branco….
Nordestino e analfabetos de todo o Brasil foram atacados por idiotas com pensamento restrito aos interesses de seu grupo.
Sou também professor e precisamos professar e pregar a necessidade de reparação aos negros. Sou a favor de cotas sociais e cotas raciais. Não é um favor nem deve ser esmola. É uma obrigação moral.

    Edson

    Pessoal ao ver o vídeo do Paulo Paim no site do Paulo Henrique Amorim encontrei lá as palavras que iria escrever aqui. Putz! Parece que o cara, digo senador, leu meu pensamento!

    http://www.conversaafiada.com.br/video/2010/11/18

Luci

Quando dizem Brasil nós negros não estamos incluidos? Os dados do IBGE, ONU, Banco Mundial, UNICEF, IPEA, IDH, apontam a resposta. O wue significa justiça social para todos nós?

zacharias

Precisamos decifrar as duas Repúblicas: a de 1889 e a de Palmares. Temos lutado muito pela causa da comunidade negra e não alcançamos os resultados esperados. Somos incluidos ora na luta de classes e ora na luta pela identidade de ser negro. Afastamos o 13 de maio e enaltecemos o 20 de novembro( até com feriado!!) como momento da chamada Consciência Negra. Seguiremos "negros" após o dia 20 com todas as dificuldades que nos é dada, porém não podemos esquecer que a luta deve ser diária, inclusive na sala de aula para que possamos transmitir os valores culturais e os desafios que ainda teremos que vencer para a efetiva participação de nossa etnia na Republica do século XXI.
Zacharias.

Gerson Carneiro

"No Dia da Consciência Negra, é preciso repudiar a História do Brasil como um suceder de arranjos, combinações, “jeitinhos” em que o conflito nunca aparece ou, se vem à tona, é considerado como “coisa externa à nossa gente".

Parece até que está falando do tal parecer do CNE que já deu o que falar aqui.
( viiixe… pra quê que fui lembrar disso de novo? cala a boca Gerson Carneiro! agora aguente. )

    Gerson Carneiro

    Uma vez que voltei a tocar no assunto, e 20 horas após constato não ter sido repreendido :), sinto-me livre para concluir:

    No filme “Narradores de Javé” a única pessoa alfabetizada no povoado de Javé, o escrivão Antônio Biá (José Dumont), afixou um aviso na porta de sua casa aonde se lê (ou pelo menos deveria-se ler): “PROIBIDA A ENTRADA DE ANALFABETOS”.

    Pois bem, considero que a tal nota de esclarecimentos exigida pelo CNE (seja em que livro for, seja do autor que for) terá para os racistas, exatamente o mesmo efeito do aviso em Javé para a população do povoado além de Antônio Biá.

    Em tempo: Recomendo. Filme lindo, rodado em Gameleira da Lapa, cidade do interior da Bahia.

    parte1

    chiste, atrás de chiste.
    Saúvas e chistes o mal do Brasil são!
    Mais inteligência, mais raciocínio sobre os fatos, menos automatismo. É pedir muito?
    Deusdédit R Morais

    Gerson Carneiro

    Engane-se. Estou falando sério.

    Certa vez alguém teve a "brilhante" idéia de colocar aviso, acompanhado de foto, nos maços de cigarro.
    "Fumar causa os mais variados tipos de câncer….Fumar causa impotência… Fumar mata".
    Quantas pessoas deixaram de fumar em função da tal medida?
    Agora, converse com o mentor da ideia, certamente ouvirá um "pelo menos fiz minha parte".

    Para mim, há certas medidas que servem apenas para aliviar a consciência do seu autor.
    Eu peço muito. Aliás, exijo muito. Não contento-me com pouco. Quero algo que efetivamente resolva a questão.

    Infelizmente ninguém está compreendendo o que tenho dito. Nessa questão estou tranquilo e seguro. Minha consciência não me acusa. E isso para mim é o que vale.

    Gerson Carneiro

    Acabo de ler sobre o projeto Escola Plural, do CEAFRO (Salvador-Ba), focado em seus três eixos:

    I) Políticas Públicas Educacionais;
    II) Políticas Públicas de Inclusão da Juventude Negra;
    III) Políticas de Ações Afirmativas no Ensino Superior , com mecanismos para entrar, para ficar e para sair da universidade, com possibilidade de inserção não subalterna no mundo do trabalho.

    Infinitivamente além de uma simples nota de esclarecimentos.
    Para quem quer mais. Para quem quer muito. É isso que eu quero.

    Gerson Carneiro

    eu posso estar sozinho
    mas eu sei muito bem
    aonde estou

    [youtube -YIrwblUdac http://www.youtube.com/watch?v=-YIrwblUdac youtube]

    cesar a giometti

    Gerson, o filme Narradores de Javé é uma obra cinematográfica para ser degustada aos poucos de tão boa! Também adorei.

    Gerson Carneiro

    José Dumont, meu ator de cinema predileto.

    A Hora da Estrela; O Homem que virou Suco; Morte e Vida Severina; Lucio Flávio, O Passageiro da Agonia; O Baiano Fantasma; Policarpo Quaresma; Abril Despedaçado, e etc.

    Incomparável!

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