Especialistas condenam fim dos hoteis do Braços Abertos: Moradia gera condições para “dissolver” as pedras de crack

Tempo de leitura: 16 min

por Conceição Lemes

A gestão do prefeito de São Paulo, João  Doria Jr. (PSDB),  é sinônimo de obras paradas e fechamento de equipamentos na área de saúde.

A Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) na Moóca, Zona Leste, por exemplo, está quase dois anos atrasada.

Unidades Básicas de Saúde (UBS) estão sendo fechadas em áreas cruciais, de população de baixa renda.

Doria tinha como promessa de campanha acabar com o programa De Braços Abertos — DBA.

Desde o início da sua gestão, ele vem fazendo isso com requintes de crueldade, inclusive  sucateando os hoteis do programa.

Agora, Doria iniciou o fechamento definitivo deles.

A Prefeitura de São Paulo deve começar o despejo dos beneficiários do De Braços Abertos que vivem no Hotel Impacto, na rua General Osório.

Os técnicos ja foram demitidos.

“É um exemplo do desmonte e desrespeito promovidos pela administração municipal com os trabalhadores e usuários de drogas atendidos pela iniciativa”, afirma  Lumena Furtado,  psicóloga, sanitarista, mestre em Saúde Pública e ex-coordenadora do programa.

“Em consequência, grande parte dessas pessoas deve, em breve, voltar às ruas, onde estarão expostos às agressões da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana”, lamenta.

O psiquiatra Roberto Tykanori também.

“O senso comum é de que a saúde é o direito primário. Discordo”, diz.

“A prática demonstra que a moradia gera as condições de operação dos outros direitos”,  explica.

No texto abaixo, Tykanori trata dos princípios básicos para dissolver uma pedra de crack no sapato do Estado.

Atualmente, Tykanori é médico da Prefeitura Municipal de Santos, professor adjunto da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Foi coordenador-geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, do Ministério da Saúde, no governo Dilma Rousseff.

Prolegômenos para a dissolução de uma pedra de crack no sapato do Estado.

por Roberto Tykanori*

A democracia é a invenção constante de direitos e um dos seus maiores desafios é tratar como cidadãos aqueles que estão em maior desvantagem e construir com eles um futuro marcado pela cidadania, a autonomia e a liberdade. Marilena Chauí 

A questão do crack nas grandes cidades brasileiras pode ser comparada com a imagem da “pedra no sapato”.

A pedra no sapato é, em si, muito pequena mas o incômodo que causa é por vezes tão intenso que se torna mesmo insuportável.

Da dimensão quantitativa

Segundo Francisco Barros [1], em relatório de pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) ao Mnistério da Saúde, o crescimento do consumo de cocaína fumada na forma “crack”teria tido um aumento de 500% no período de 2005 a 2010. Porém, a participação do uso do crack no conjunto do uso de substâncias permanece pequeno, variando de 0,1% para 0,5%.

A dimensão absoluta da questão em termos quantitativos não é tão importante se comparada a questões relativas aos problemas relacionados a outras substâncias, em especial se comparada com os danos individuais e sociais atribuíveis ao consumo de álcool.

Estima-se que em 2012 praticamente 53% dos brasileiros consumiam álcool, pelo menos uma vez na semana. E desta população, 59% fez uso de modo considerado abusivo (binge drinking [2]).

Entre os homens adultos, 13,6% são dependentes de álcool e entre as mulheres 3,4% são dependentes de álcool.

Em relação à cocaína (não fumada) 1,7% teria consumido pelo menos uma vez nos últimos 12 meses.

E a maconha é a droga mais utilizada, sendo que 2,8% da população teria utilizado nos últimos 12 meses.

A metáfora da pedra no sapato serve para ilustrar como um fenômeno, a tal “questão do crack”, embora de dimensões relativas pequeno, adquire relevância e valência política.

Atesta a importância do problema os milhares de sapatos que, na Marcha da Frente Nacional de Prefeitos, de 2011 a 2015, pautaram a “questão do crack” nas suas manifestações junto ao governo federal em Brasília.

Por outro lado, esta mesma metáfora obscurece um fato recorrente, mas frequentemente não notado: diferentes dimensões e perspectivas estão subjacentes nas formulações sobre o problema do uso de cocaína fumada, na vulgata “crack”, o que leva a debates inconciliáveis por que, a rigor, referem-se a objetos distintos.

Das características da população usuária

Jovens (idade média 30,3 anos de idade), homens (78,7 %), não brancos (79,15%), solteiros(60%), baixa escolaridade (4% sem nenhuma série completada).

Entre eles, 19,49% alcançaram a terceira série o Ensino Fundamental, 57.6% chegaram entre a 4ª e 8ª série, e 16,49% alcançaram o ensino médio, que somados representam 97,6% dos usuários.

Outras características da população usuária: sem trabalho regular (apenas 12,39% tem trabalho regular, com ou sem carteira assinada), solteiros (60%)  e sem moradia fixa (46%).

E o tempo médio de consumo de crack é de 80 meses, ou seja 6,6 anos!  E 48,8% têm histórico de passagem pelo sistema prisional.

Ao contrário do que é divulgado pela mídia, o consumo de crack não leva a uma morte rápida, nem destrói a capacidade de pensar e calcular perdas e ganhos para as suas vidas evidenciado pelas respostas sobre o acesso a serviços públicos[3].

Este perfil indica que estes consumidores de crack são, antes de tudo, pessoas em extrema marginalização e desprovidos de recursos pessoais, materiais e culturais que viabilizem a sua participação na sociedade.

O consumo de crack não é nem a fonte, nem o pior dos problemas que este grupo de pessoas tem de enfrentar.

Outro aspecto que caracteriza este fenômeno é o consumo em via pública. Já foi aventada a hipótese de que o uso em via pública, em lugares de grande visibilidade, teria como ponto de partida uma maneira de evitar ser morto por traficantes,  por policiais ou mesmo pessoas da comunidade que tentam “resolver” problemas sem a intermediação do Estado.

De fato, na prática do consumo das outras drogas ilícitas, a tendência maior é pela busca da discrição e da “invisibilidade”, contrastando com a quase espetacularização do uso do crack.

Da ótica da segurança pública, pelas proporções do número de consumidores e pelo poder de compra deles e os preços praticados, não se pode afirmar que a questão do crack seja o maior dos problemas de transação de drogas ilícitas.

E daí surge a questão: por que o crack incomoda tanto?

Os modos de se compreender o problema esquematicamente são dois.

Uns consideram que o centro da questão está no aspecto criminal em que tráfico e consumo são os gêmeos siameses de onde derivam todos os outros problemas. Daí a visão de que a prioridade do enfrentamento deve ser feito voltado para a “causa”, através da ação policial e judicial e aqui os problemas de pobreza, de marginalização, de saúde são considerados “efeitos” secundários.

Esse modo pode ser denominado como o paradigma da coerção.

Esta visão é também conhecida como Guerra às Drogas. Após um  período de hegemonia nos últimos 10 anos, por todo o mundo, começou a perder adeptos e a receber muitas críticas, em função dos parcos resultados alcançados em contrapartida da enormidade de recursos despendidos.

Outro efeito produzido pela coerção policial foi o enorme encarceramento de populações marginalizadas, e de modo indesejado, o fortalecimento de organizações criminosas nas prisões.

Só nos E.U.A, a população prisional saltou de 300 mil indivíduos em 1972 para 2,2 milhões de presos em 2011![4]

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos (2,2 milhões), da China (1,7 milhão) e da Rússia (676 mil) [5].

E no caso brasileiro, este encarceramento tem ocorrido com uma população jovem, e quando relacionados ao tráfico, como portadores de quantidades ínfimas de droga.

Em contraposição coloca-se uma perspectiva em que a ênfase deve estar pautada pela dimensão da Saúde dos indivíduos, das famílias e da população em geral.

A este paradigma podemos denominar como paradigma da morbidade-sanidade.

A origem dos problemas estaria nos efeitos deletérios que acontecem a partir da interação entre as especificidades químicas de uma substância em relação com as particularidades orgânicas, e psicossociais de cada indivíduo.

Cada caso é um caso e os problemas relacionados à condutas agressivas, ao envolvimento em pequenos ou grandes delitos, à marginalização e à pobreza são assumidos como efeitos do uso da substância.

Aqui as propostas como solução são compreendidas como “tratamento” de uma “moléstia”.

Podemos dividir em dois grandes campos configurados pela concepção sobre a “moléstia”.

Um campo assume que trata-se de problemas sobretudo de ordem espiritual e o tratamento adequado seria por meio de práticas religiosas (penitências com castigos corporais, purificação pelo trabalho forçado, e adesão a uma organização religiosa), operadas em ambiente de segregação e isolamento, nas ditas comunidades terapêuticas.

A outra vertente do tratamento segue o caminho biomédico-psicológico, que se orienta por teorias técnico-científicas e suas propostas são da ordem da intervenção médico-psiquiátrica ou psicossocial.

Aqui também há dissonâncias em relação à prioridade causal polarizando o olhar mais centrado na causalidade neurobiológica com a visão que valoriza mais os processos psicológicos individuais e os sociais.

Como consequência desta polarização, as respostas propostas também divergem: de um lado, a aposta nas medicações e nos treinamentos comportamentais; e de outro, as terapias psicológicas, a psicanálise, e as ações de apoio psicossocial que buscam o fortalecimento da participação e da inclusão social com o enfrentamento dos preconceitos, a participação da vida social e cidadã.

Estes modos de conceber o problema não têm se mostrado eficazes em termos de redução ou dissolução da “pedra”. De modo sintético, são visadas reducionistas que recorrem a modelos abstratos como paradigma, enquanto a vida concreta revela mais e mais complexa a cada dia.

Ambas as abordagens do problema (seja a criminal, seja pela doença/saúde) têm em comum uma idéia de que os indivíduos precisam ser afastados da vida social para poderem se “recuperados”. Seja pelo cárcere, pela comunidade terapêutica ou pelo hospital psiquiátrico, a segregação é assumida como principal estratégia para uma almejada futura “reintegração social”.

E a história tem mostrado reiteradamente que estas propostas de suspensão temporária da vida social através da exclusão podem eventualmente até produzir efeitos positivos, mas na grande maioria dos casos, efêmeros e sem sustentabilidade.

Ou seja, as pessoas retornam aos padrões de marginalização e ao consumo de substâncias iniciais. Daí surgem os inacreditáveis históricos com 20 ou 30 internações ou períodos de prisão, sem qualquer mudança nos modos de seguir a vida.

Outro tipo de desdobramento inquietante é que os custos destas ações de segregação são extremamente elevados se comparados aos rendimentos que os próprios indivíduos conseguem auferir no seu cotidiano.

Em outras palavras: pessoas muito pobres, com rendas abaixo da linha da pobreza (1 dólar por dia por pessoa que corresponderia a alimentos o suficiente apenas para repor as necessidades energéticas) custariam ao Estado centenas ou até milhares de vezes mais.

Quando esses serviços são terceirizados (prisões, comunidades e hospitais), prestados por entes privados com interesses comerciais, a situação torna-se mais bizarra, pois o Estado passa a financiar empresas para cuidar de pessoas a um custo muito acima do que aquelas pessoas obtêm como renda cotidiana, e os empresários apropriam-se destes recursos enquanto os usuários seguem depauperados.

A ação do Estado acaba contribuindo para alargar ainda mais o abismo que separa ricos e pobres.

Sob a égide do mercado privado, os usuários de drogas pobres transformam-se em uma mercadoria de alto rendimento para quem oferta este tipo de serviço de segregação e, paradoxalmente, quanto mais destes usuários houver, maiores lucros serão alcançados. Ou seja, acaba-se estimulando para que o problema se perpetue ou até aumente.

Mudança de Paradigma

Mais recentemente, a partir da década de 2010, ganha força o paradigma da Coesão Social [6] como quadro de referência para a compreensão dos problemas de drogas ilegais, e passa a ser impulsionado pela Junta Internacional de Controle de Entorpecentes.

De modo sumário, segue um racional que assume que a magnitude dos problemas que envolvem drogas e crime para uma dada sociedade, está em função inversa ao estado de coesão social em que se encontra esta sociedade. Quanto mais coesa uma sociedade, tanto mais resiliente ela será aos problemas originados no tráfico e consumo de drogas.

São apresentadas como fatores que ameaçam a coesão social:

1. Persistência da desigualdade social

Quando existem desigualdades e persistentes e profundamente enraizadas, alguns grupos sociais passam a acreditar que eles não têm absolutamente nenhuma perspectiva de desfrutar dos benefícios da plena participação na sociedade em geral.

Diante de um futuro com oportunidades limitadas, as pessoas daquelas comunidades podem sentir-se cada vez mais alienadas da sociedade e seguir um conjunto de comportamentos prejudiciais para o indivíduo e a sociedade, em particular o abuso e tráfico de droga.

2. Migração

Quando as pessoas e os grupos sociais migram de uma área para outra, há o risco de se sentirem deslocados e alienados da comunidade em torno. Em consequência,  é mais provável que algumas pessoas recorram a formas de abuso, para mitigar o sentimento de alienação.

3. Transformação política e econômica

As sociedades que passam por uma transformação política e econômica podem sofrer redução sensível do grau de coesão social quando as estruturas políticas e atividades econômicas do passado perdem a sua base e são substituídas por novas formas de atividade econômica e governança.

Alguns grupos sociais podem sentir-se isolados e à parte da sociedade em geral e com um sentimento de desapego das novas estruturas governança, podendo levá-los a seguir uma variedade de comportamentos sociais pessoalmente prejudiciais.

4. Culturas emergentes de excesso

A coesão social pode ser prejudicada pelo surgimento de uma cultura do excesso. Por exemplo, certas pessoas que gostam de alto padrão de vida podem até considerar que não precisam mais viver sob normas, costumes e convenções da sociedade e adotar padrões de comportamento auto-destrutivos.

Algumas vezes o abuso de certas drogas (tais como cocaína) pode simbolizar a sua vitória e superioridade social.

O uso de drogas por celebridades e alguns outros personagens do mundo das artes, música e entretenimento, eventualmente, pode ser visto como um sinal de seu talento criativo e alta posição.

Consequentemente o surgimento de uma cultura de aceitação de abuso de drogas por alguns grupos sociais pode contribuir para o enfraquecimento da coesão social.

5. Aumento do individualismo e do consumismo

Em algumas sociedades, há crescente tendência para priorizar a satisfação das necessidades do indivíduo do que as necessidades da comunidade. O crescente domínio do consumismo leva ao enfraquecimento da coesão social e ao desenvolvimento de certas formas de conduta pessoal, que  são socialmente prejudiciais pelo abuso de drogas.

6. Variação dos valores tradicionais

O grau de coesão social das sociedades pode também ser gravemente afetado quando se produz uma transformação de valores tradicionais como resultado de alterações cultural, política, econômica e espiritual, com consequente surgimento de um novo conjunto de valores.

Como resultado desta situação, alguns grupos sociais serão excluídos ou separados dos novos valores e mais propensos a perseguir os seus próprios interesses, independentemente dos efeitos que isso tem sobre a sociedade.

7. As sociedades em conflito ou pós-conflito

Quando as sociedades estão passando por uma situação de conflito ou estão em um estágio mais tardio de conflito, muitas vezes há sinais claros de falência da coesão social. É possível que, em tais situações, laços sociais que antes eram estreita e mutuamente suportados são testados e enfraquecidos.

As sociedades que se recuperam de conflitos podem sofrer um vácuo de governança em que não há serviços e justiça social e as forças de segurança parecem inexistentes enfraquecendo ainda mais a coesão social já frágil.

8. A rápida urbanização

Nas sociedades em que há rápida urbanização, incluindo a população que se move de ambiente rural para urbano, pode haver uma redução e dissolução de muitos das formas mais tradicionais de coesão social, até mesmo um colapso dos títulos e intimidade familiar.

Essa rápida urbanização também pode levar a transgressões individuais e sociais, que são mais toleradas em consequência do aumento da sensação de anonimato em tais lugares.

9. Colapso do respeito pelo direito

Quando surgem situações onde a população considera que o seu sistema legal é injusto, corrupto ou ineficaz, é perdida a confiança nas leis e nas agências executoras.

Em tais casos, há risco real de que a população simplesmente perca a esperança de que as autoridades, nacional ou local, um dia sejam capazes de fazer algo para melhorar as suas condições.

Políticos e funcionários públicos passam a ser vistos com suspeita e desconfiança e considerados movidos pelo desejo de melhorar a sua situação pessoal e não a das pessoas do lugar. Tal estado de coisas pode levar as gangues criminosas serem vistas como a única autoridade viável na área.

10. A economia local com base em drogas

Nessas comunidades, o negócio da droga ilícita ganha tal impulso que pode substituir, na prática, a economia legítima, de modo que esta cultura pode ser auto-sustentável, já que imprime sobre os habitantes das respectivas zonas uma identidade distinta, que cada vez mais se afasta da sociedade em geral.

Esta proposta de compreensão traz como novidade a constituição de um olhar enquanto a sociedade ou como a polis na Grécia antiga, ou um olhar sistêmico não reducionista. Multiplicidade de efeitos e problemas muitas vezes combinados de tal sorte que são cruciais para a vida das pessoas que fazem parte destas comunidades.

Desde o ponto de vista urbanístico, a existência de um aglomerado de pessoas que obstaculiza e, praticamente, bloqueia a passagem pela rua, tanto de pedestres quanto de veículos, gera antes de tudo  bloqueio dos fluxos de pessoas, bens e mensagens que configuram a vida social normal.

Se essas pessoas são, na sua grande maioria, visivelmente maltrapilhas, emagrecidas, desdentadas, negras, pardas, travestis, em suma “feias, sujas e barbadas”, este aglomerado de pessoas desencadeia sentimentos de repulsa, medo, comiseração, raiva nos demais cidadãos.

Há a desmoralização do gestor de plantão, há a atemorização da vizinhança pela sensação de anomia, ocorrem os furtos e assaltos, há as brigas e contendas por farrapos e trapos.

Há a sujeira que escurece a paisagem e o azedume dos odores. A extensão do território ocupado embora delimitado e nuclear, o alcance do efeito de mal-estar difunde-se por toda a cidade.

Este bloqueio já não remete mais à imagem da “pedra no sapato”, mas à imagem da “pedra nos rins”. Isto é, embora muito pequena, tem o poder de desencadear espasmos no corpo que são percebidas como dores extremamente intensas.

Esta abordagem através de um olhar metassistêmico traz para a berlinda o que era tão visível e, ao mesmo tempo, não percebido.

Estamos diante de uma população que “vive na rua”.

A questão, desde o ponto de vista da pólis, não é mais o fato de que pessoas usam drogas, mas o problema de que uma parte significativa de cidadãos é muito pobre e vive à margem das convenções da sociedade.

Não se consegue compreender essa pobreza apenas pelo recorte econômico, mas requer um escrutínio dos mecanismos de produção das fontes morais que fazem com que se perpetue

…a reprodução continuada de uma classe condenada a ser “corpo” sem alma ou mente (ou seja, uma forma de “indivíduo racional” aproveitável econômica e politicamente) que podemos também temê-la e persegui-la cotidianamente como delinquentes ou delinquentes potenciais. É apenas por serem percebidos como meros “corpos”, numa sociedade que valoriza a disciplina e o autocontrole acima de tudo, é que essa classe desprezada é vista como tendencialmente perigosa e como assunto da ‘polícia’, e não da ‘política’ [7].

Esta população, que está pelas ruas das grandes cidades é, de fato, uma questão da pólis.

E a partir desta visada podemos retomar a “questão do crack”, fazendo uma revisita à experiência da Prefeitura Municipal de São Paulo, denominada Programa “De Braços Abertos”, e reanalisando os seus resultados [8].

As várias ações intersetoriais articuladas pelo Programa De Braços Abertos, que envolve ações nas áreas de saúde, assistência social, trabalho, educação e  habitação, que podem ser compreendidas como atualização de parte dos direitos sociais inscritos no art. 6º da Constituição Federal e em tese deveriam deveriam ser asseguradas pelo Estado, conseguiram produzir efeitos bastante positivos.

Destacando apenas a permanência de grande maioria dos beneficiários por um período superior a dois anos demonstra que é possível uma ação pública que vise efeitos mais duradouros e estruturantes.

As experiências americanas e canadenses que se organizaram pelo conceito de Housing First, ou moradia em primeiro lugar, foram elaboradas como alternativa e contrária à lógica do tratamento em primeiro lugar (Treatment First).

Partindo inicialmente de uma análise critica das políticas voltadas a enfrentar o problema das populações de rua que seguiam uma racionalidade por etapas de adesão e cumprimento de exigências para se atingir uma moradia estável, e que os resultados foram negativos, tendo a maioria das pessoas sendo desligada dos programas logo nas primeiras etapas, buscou-se de modo pragmático inverter o processo e ofertar a moradia antes de tudo e sob um mínimo de exigências.

Essas propostas ganharam credibilidade desde os primeiros resultados que demonstraram que mesmo pessoas com longo período nas ruas seriam capazes de cumprir o contrato mínimo estabelecido por período de até dois anos de estudo. Daí, outras iniciativas passaram a ser avaliadas e associaram a questão com as questões de abuso de álcool e drogas, além de outros problemas mentais.

Essas políticas têm sido estudadas e avaliadas [9] e [10] e trazem fortes evidências de que também trazem vantagem em efeitos positivos sob o aspecto dos problemas de abuso de álcool e drogas comparados com a abordagem tradicional.

Outro ponto a ser destacado é que a viabilização de uma moradia vai ao encontro de outras políticas voltadas para a superação da pobreza.

Na Inglaterra, apesar das políticas de moradia serem bastante difusas, observou-se que a avaliação da pobreza da população tem variação muito grande quando se faz o cálculo antes e depois de descontados os custos com a moradia.

Isto é, depois de descontados os custos de moradia, há um aumento significativo da população considerada pobre. Em Londres, o grupo de pobres chega quase a dobrar [11].

Este desafio colocado para os gestores de políticas públicas para populações em extrema desvantagem levam a uma concepção de política voltada para Moradia Solidária (Supportive Housing), isto é, moradia associada a outras ações de apoio (saúde, educação, emprego, serviço social).

Com mais de 50 mil unidades de habitação solidária, Nova York continua a liderar a nação no fornecimento de uma solução permanente para os sem-teto.

Oferecendo uma ampla gama de projetos e serviços, os provedores sem fins lucrativos de Nova York desenvolveram uma ampla base de conhecimento nos campos de desenvolvimento, gerenciamento e prestação de serviços.

Como resultado, a habitação de suporte possui taxas de retenção de inquilino notavelmente altas. A capacidade de organizações sem fins lucrativos para alavancar descobertas privadas e públicas permitiu que elas ofereçam a solução mais econômica para os sem-teto atualmente disponível.

Os projetos de habitação de apoio em Nova York fornecem acomodações e serviços seguros, estáveis e de alta qualidade para uma grande população que, de outra forma, acabariam em ambientes institucionais mais caros, como abrigos congregados, prisões ou instituições públicas.

Na cidade de Nova York, o custo operacional diário médio de uma unidade de alojamento de apoio é de US$ 46, em comparação com um dia em um abrigo (US$ 68), prisão (US$ 129), um hospital psiquiátrico (US$ 467) ou um hospital comunitário (US$ 755) (números de 2002) [12].

Esta direção coloca uma reflexão no campo dos direitos. Aquele conjunto de direitos expressos no art. 6º, no texto não guardam relação hierárquica.

Habitualmente diz-se que a Saúde seria o direito primário, sem o qual os outros direitos não poderiam ser exercidos ou usufruídos.

No entanto, a história das políticas voltadas para o enfrentamento da pobreza e das populações sem-teto indicam que a questão da moradia exige maior prioridade.

Para o desenvolvimento de uma vida civilizada, a atualização do direito à moradia passa a ser primordial para que os outros direitos possam ser exercidos.

Sem uma moradia estável e segura, qualquer esforço ou investimento para adquirir bens (materiais e imateriais) tende a ter um resultado efêmero e limitado (e sem sentido para quem já está no limite e não tem como mantê-los).

Assim, é com a saúde, com o conhecimento, com os valores sociais, com a cultura. Para além das necessidades de sobrevivência, que, na prática, estão resolvidas mesmo para a população sem-teto, o desenvolvimento das bases para uma vida civil supõe esta moradia.

Apenas com um lugar próprio de referência, o indivíduo pode adquirir bens de modo cumulativo e sustentável para assumir participar do jogo social como um cidadão.

Corroborando com o exposto, a experiência do DBA mostrou que é possível em curtíssimo tempo deslocar grandes grupos para moradias minimamente equipadas e que este foi o fator diferencial decisivo para que aquelas pessoas aceitassem participar de um programa público.

Nos anos anteriores, foram feitas inúmeras ofertas de ações de saúde, serviço social, tratamento em clínicas, com aceitação praticamente nula por parte daquelas pessoas.

E, após este movimento inicial para os hotéis, as outras ações (trabalho, saúde e serviço social) passaram a adquirir aderência.

Os efeitos em termos de segurança pública na região, foram os primeiros e mais imediatos a serem registrados pela Polícia Militar. As outras ações apontaram que a progressão dos resultados é mais lenta, mas demonstrável após 2 anos.

Diante das limitações de recursos que o gestor público precisa lidar vai se tornando evidente que políticas habitacionais voltadas para “moradias solidárias”, bem distinto de financiamento para a transferência de propriedade, podem ser o melhor investimento tanto para o curtíssimo prazo quanto para uma política sustentável de longo prazo.

Assim, o Direito à Moradia estável e segura precisa ser pautado como a prioridade Zero para a dissolução da pedra de Crack.

O caminho inverso tem sido percorrido há longo tempo e é inevitável o sentimento de frustração e a sensação de desperdício.

Roberto Tykanori Kinoshita é médico, psiquiatra, doutor em Saúde Coletiva e professor adjunto da UNIFESP/Baixada Santista

[1] Barros, Francisco – comunicação pessoal, relatório de pesquisa da FIOCRUZ para o Ministério da

Saúde.

[2] Beber em binge é considerado beber 5 doses ou mais, no caso de homens, e 4 doses ou mais, no caso de mulheres, em uma mesma ocasião num intervalo de até 2 horas.

[3] Quase a totalidade dos usuários apontou que seria importante que esses serviços fornecessem um suporte básico de modo a garantir sua sobrevivência e dignidade, como cuidados básicos de saúde (97,18%) e higiene (96,73% ), alimentação (96,92%), ajuda para conseguir emprego (95,57%).

[4] http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/themes/gcdp_v1/pdf/Global_Com_Bryan_Stevenson.pdf

[5] http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2015/04/relacao-entre-drogas-e-populacao-carceraria-e-tema-de-debate-em-brasilia

[6] United Nations: International Narcotics Control Board, Report of the International Narcotics Control Board for 2011 (E/INCB/2011/1), SOCIAL COHESION, SOCIAL DISORGANIZATION AND ILLEGAL DRUGS, p1-7, Vienna, January 2012.

[7] Souza, Jessé. Ralé brasileira : quem é e como vive / Jessé Souza ; colaboradores André Grillo … [et al.] — Belo Horizonte : Editora UFMG, 2009.

[8] Garcia, L.S.L; Kinoshita, R.T.; Maximiano, V. Uma perspectiva social para o problema do crack no Brasil: implicações para as políticas públicas, p147-157. in Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do Brasil? quantos são nas capitais brasileiras? / organizadores: Francisco Inácio Bastos, Neilane Bertoni. – Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014

[9] Padgett, D. K. et als. Substance Use Outcomes Among Homeless Clients with Serious Mental Illness: Comparing Housing First with Treatment First Programs in Community Ment Health J. 2011 April ; 47(2): 227–232. doi:10.1007/s10597-009-9283-7.

[10] Padgett, D. K. et als. Housing First Services for People Who Are Homeless With Co-Occurring Serious Mental Illness and Substance Abuse in Research on Social Work Practice · January 2006.

[11] Tunstall, B. et als. THE LINKS BETWEEN HOUSING AND POVERTY: na EVIDENCE REVIEW, Joseph Rowntree Foundation, 2013. https://www.jrf.org.uk/reports

[12] https://shnny.org/learn-more/what-is-supportive-housing/history-of-supportive-housing

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