EUA no Iraque: Tentando prorrogar a ocupação

Tempo de leitura: 5 min

A grande revolta árabe reinventa-se de mil modos!

12/4/2011, Pepe Escobar, Asia Times Online

Ele voltooooooooooooooou! Cada vez que o clérigo/político nacionalista xiita iraquiano Muqtada al-Sadr [1] ressurge como gênio saído de uma garrafa numa nuvem de fumaça, o establishment dos EUA treme como vara verde, e a mídia-empresa corporativa corre a requentar a retórica de sempre “radical, anti-americano, amigo-do-Irã, clérigo-do-inferno”.

O regime de Saddam Hussein acabou há oito anos, completados sábado passado. Os xiitas Sadristas e muitos sunitas consideram 9 de abril o “Dia da Desgraça”, não pelo fim de Saddam, mas porque nesse dia Washington anexou o Iraque.

O Iraque é aquele país árabe que vive sob “no-fly zone” há uma década – e nesse tempo toda a infraestrutura e toda a vida social do país foram arrasadas pelo Pentágono (os neoconservadores de Washington sonharam reconstruir tudo, mas ainda não acertaram o preço).

Pois aconteceu que os Sadristas, semana passada, mandaram um cartão para os “libertadores”: ou vocês saem da nossa terra, como combinado, no final do ano, e saem por bem, ou recomeçará o pesadelo dos pesadelos para o Pentágono: estaremos em um, dois, três, mil lugares ao mesmo tempo, nosso Exército Mahdi, e sua guerrilha incansável.

O cartão de Muqtada – ele próprio continua a estudar teologia na cidade santa de Qom, no Irã – foi entregue por seu porta-voz, Salah al-Obaidi, acompanhado por uma multidão de um milhão de pessoas em Bagdá. Veio gente de todo o sul do Iraque e da província de Diyala no leste (menos gente do que haveria, se a segurança não tivesse bloqueado ruas e pontes que levam ao local da concentração, próximo de uma base militar dos EUA.)

A mensagem chegou exatamente no momento planejado, um dia depois de o chefe do Pentágono Robert Gates ter visitado o norte do Iraque, para convencer o governo de Nuri al-Maliki a, bem, ora… a deixar que os EUA continuem a ocupar o país por tempo indeterminado. O Departamento de Estado dos EUA já anunciara que quer manter lá um exército de mercenários, talvez milhares de burocratas, na maior embaixada dos EUA do planeta. Os mercenários protegerão os burocratas. É o excepcionalismo norte-americano.

Nas palavras de Muqtada, “Nossa primeira tarefa será promover a escalada da atividade militar de resistência e reativar o Exército Mahdi, o que será feito em próxima declaração a ser divulgada em breve (…) Em seguida, promoveremos a escalada da resistência pacífica, com manifestações de rua e mobilização de massas”.

Quer dizer: se os EUA não saírem do Iraque até o final do ano, Muqtada converterá Bagdá numa praça Tahrir gigante – e sem falar dos comandos que tingirão de vermelho a Zona Verde e farão os “mercenários” parecer assaltantes de estrada. A Grande Revolta Árabe de 2011 reinventa-se de mil modos!

Carreira da pura, alguém se interessa?

Quem, há anos, apostou que os EUA não conseguiriam prorrogar a validade do Acordo sobre o Estado das Forças [ing. Status of Forces Agreement (SOFA)[2]] que os EUA assinaram com o Iraque, já deve ser, hoje, dono de banco de investimentos em Wall Street.

O SOFA para o Iraque foi assinado pelo ex-presidente George W Bush em novembro de 2008. Segundo o texto, todos os militares dos EUA, mais o pessoal civil, devem estar fora do Iraque dia 31/12/ 2011, à meia noite. Se os EUA não honrarem o acordo, estarão tecnicamente em guerra contra o Iraque – com soldados postos ilegalmente em território estrangeiro sem consentimento do Congresso dos EUA.

Não há absolutamente qualquer sinal de que esse acordo SOFA será prorrogado antes de vencer, embora o governo de Maliki, sob pressão total, sempre possa pedir que o governo de Obama prorrogue a ocupação do Iraque. Mas, para fazer isso, Maliki precisa do voto dos Sadristas – que são parte do governo. Por isso, a mensagem de Muqtada é, de fato, recado duríssimo, e aviso, a Maliki.

Aliás, falando nisso, não se trata só dos 47 mil soldados dos EUA que permanecem ainda no Iraque. Trata-se também do fim do capítulo iraquiano do império de bases militares dos EUA (no mesmo sábado, houve manifestações gigantes próximas das bases dos EUA em Kirkuk, Dhi Qar e da base al-Asad, na província de Anbar).

Não surpreende que o alerta vermelho tenha disparado no governo Obama e no Pentágono. O vice-presidente Joe Biden telefonou imediatamente para Maliki, logo que Gates deixou o Iraque, para manter a pressão. Os deputados iraquianos, por sua vez, não se cansam de repetir que, seja o que for, terá de ser aprovado pelo parlamento. E Muhammad Salman, do partido sunita Iraqiya (muitos sunitas são nacionalistas que também querem ver os EUA pelas costas) já falam até de referendum popular contra a prorrogação do SOFA.

O próprio acordo SOFA deveria ter sido aprovado (ou não) por referendum, o que jamais aconteceu. Em resumo, os únicos atores que querem que os EUA permaneçam como força militar no Iraque, são os militares do Curdistão iraquiano – porque temem ser vencidos pelo poder superior dos árabes iraquianos.

Na essência, Washington está sem saber o que fazer, depois de a Casa de Saud ter jogado sozinha, em manifestação de força no Bahrain – favorecendo uma contrarrevolução violentíssima, impondo o pior ramo sunita intolerante/repressivo/militarista contra os xiitas de todo o Golfo. Os xiitas do Golfo estão furiosos, como, também, os xiitas iraquianos. Mas ninguém pode inferir disso que aumentará a influência do Irã sobre todos esses xiitas. O governo Maliki é amigo do Irã – mas isso não implica que, sem os coturnos norte-americanos em terra iraquiana, Bagdá se converterá em protetorado do Irã.

Os xiitas iraquianos também acusam rotineiramente os ricos Wahhabis da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos de ter financiado a guerrilha sunita mais violenta durante a guerra civil no Iraque entre 2005 e 2007 (acusações que ouvi, ao vivo, naquela época, em Bagdá).

Mas o que mais preocupa Washington é o futuro da 5ª Frota dos EUA, no Bahrain. A julgar pela jogada de poder dos sauditas, nada sugere que a base vá mudar de ancoradouro. E mesmo que mude, ganha quem apostar que se mude para o Qatar ou para os Emirados Árabes, onde seria muito bem recebida.

Fato é que, apesar de todas as diferenças e confusões, a maioria dos iraquianos, sunitas e xiitas, querem que os EUA façam as malas e partam, e que o último soldado esteja fora do Iraque dia 31/12/2011 à meia noite. No caso muito pouco provável de que Bagdá solicite segurança aérea (mas… contra quem? A Casa de Saud?), os EUA ainda poderão arranjar alguma coisa a partir da base de al-Udeid, no Qatar.

O governo Maliki não pensa em suicídio. Esqueçam pois qualquer prorrogação do acordo SOFA. É praticamente certo que dia 31/12/2011, o trágico capítulo iraquiano da construção de um império mundial de bases militares dos EUA estará, afinal, acabado.

NOTAS

[1] Para saber quem é, ver, por exemplo “Perfil”, da BBC, em http://www.bbc.co.uk/news/world-middle-east-12135160; e “Hassan Nasrallah and Muqtada al-Sadr”, Patrick Vibert, Foreign Policy, Líbano, em http://lebanon.foreignpolicyblogs.com/2010/02/19/hassan-nasrallah-and-muqtada-al-sadr/.

[2] Os acordos sobre estado das forças [ing. Status Of Forces Agreement (SOFA)] são acordos entre país hospedeiro e país estrangeiro que tenha forças militares no país hospedeiro. Os acordos SOFA são em geral incluídos no conjunto de acordos de segurança que se assinam entre países, no caso de haver forças militares de um, em território do outro. Os acordos SOFA definem os direitos e privilégios do pessoal estrangeiro que trabalha em programas de segurança (NT, com informações de http://en.wikipedia.org/wiki/Status_of_forces_agreement).


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Comentários

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Pedro

Artigo excelente.

Pedro

O novo mundo terá que ser inventado com a colaboração de americanos – e eles existem – que estejam dispostos a enterrar o Pentágono no lugar de onde ele nunca deveria ter saído. Esta luta tomará, necessariamente, uma forma global. Uma globalização que tenha a paz como ponto de partida.

Jair Almansur

Os estadunidenses podem ficar, com aval da ONU (e da DilmaPatriota) se argumentarem estar protegendo 'direitos humanos de iraquianas e democratas"

Marat

Eles ficarão ali o tempo que desejarem. Se não houver outra alternativa, cometerão um "ato terrorista" contra seus próprios soldados (os hispânicos e os negros, é claro!) e farão recair a culpa na população local. Depois disso a "Comunidade Internacional" e a triste ONU correrão apoiar os pobrezinhos ianques, defensores da paz e da democracia!

@GriloD

Legal! A revolta do povo árabe contra os tiranos finalmente chegou ao pior de todos: os EUA. Já passou da hora dos EUA tirarem seus coturnos de cima das cabeças dos iraquianos.
Mas me preocupa a situação dos curdos. Algo me diz que eles vão pagar caro pela presepada ianque…
Grilo D

Valdeci Elias

É só os EUA, pedirem ajuda a Arabia Saudita. Onde houver revoltas pacificas no oriente média, a Arabia Saudita vai estar lá pra ajudar.

Ana cruzzeli

Até tu Iraque, até tu…
Gente, mas como povo iraquiano é mal-agradecido!
Depois de uma década de ajuda humanitária livrando o povo do malefico Sadam, e restabelecendo a ordem publica destruindo, digo construindo uma nação das cinza, literalmente, agora essa? O povo se reune em praças.
Por que logo em Bagdá , por quê, por quê e por quê? Logo na praça onde os EUA hastearam a bandeira estadunidense de cabeça para baixo?
Por que contra as tropas humanitárias que lançam misseis teleguiados enrriquecidos de Urânio empobrecido sobre instalações de água, energia, hospitais de anciãos, de crianças, de escolas primárias, de universidades, por quê?
Por que esses selvagens iraquianos lançam-se contra um povo tão humanista quantos os EUA, Grã-Bretanha, e tantos outros países pacificos da OTAN que só querem humanizar essa plebe ignorante, por quê?

P.S. Depois de uma década sugando Iraque, Afeganistão, parte do Paquistão e uma fração da África, como os EUA conseguiram a proeza de falir ? Realmente esse povo é muito incompetente.

    Marcos

    Ana, o inicio do teu texto parece com a fala da Miriam Leitão. O PS é perfeito!

José Silva

Prenda um gato inofensivo num quarto e começe a bater nele que vc vai ver o que acontece. Essa é a política dos EUA para com o resto do mundo, principalmente naqueles solos recheados de petróleo. O povo iraquiano tem direito a defender sua soberania nem que seja necessário muito derramamento de sangue, e acordo se faz para ser cumprido custe o que custar a menos que haja CONSENSO na mudança de rumos!!!

Sergio

Os EUA são os porcos do mundo merecem todo ódio da humanidade pelo que fazem e fizeram aos povos.

Glecio_Tavares

O medo é que eles saiam de lá e venham parar aqui. Esse papo de terrorismo em realengo e as forças midiaticas do norte, estacionadas ha tantos anos no país, adorariam o desfecho: Ditadura militar do império, perfeito para entreguistas de plantão e vivandeiras de quartéis. Nunca me esqueço de um carnaval em que um porta-aviões americano estacionou no Rio de Janeiro, na época o Brasil tinha 50 caças e só naquele porta-aviões havia 279 caças. É bom por as barbas de molho, pois todos sabem que Bin Laden foi treinado pela CIA e tinha ligações diretas com a casa branca.

Railan

Mal posso esperar a hora de ver os coturnos americanos em brasa, se queimando até derreter as pernas dos soldados americanos.

monge scéptico

Não deverão descansar, até escorraçar o úiltimo ianque de suas terras. è justo é válido,
lutar até a morte, para expulsar o invasor, que destruiu a economia desse país, por na-
-da. POVO HEŔOi. Se fosse o inverso, estariamos todos ao lado da ética, ou seja do
direito da USA de se defender.
A verdade entre outras é que a USA não sabe onde meter tantos soldados e equipamen-
–tos semi sucateados, além de sofrer pressão da industria militar. Outro senão e: o que
fazer com a multidão de doidos ex-combatentes, que voltam com a saúde em pandarecos?
A USA os prefere no exterior pensando que são "salvadores" do mundo e morrendo lá
mesmo, um problema a menos para o combalido sistema previdenciário da USA.
Darão um jeito de forçando acordos com a satrapada iraquiana. Veremos………………..
PS. Eu sei onde eles devem enfiar suas armas e mísseis.

brz

Eu pago pra ver os EUA saírem de lá antes de 2012, depois disso não haverá mais nada pois o mundo irá acabar mesmo.
Vamo fazer o bolão então, eu aposto que não sai

Marcelo Fraga

Os reacionários do mundo todo chamam essa gente de "terroristas".
Não passam de pessoas normais, com as suas crenças e as suas terras.
Se tornaram agressivos depois que uma certa nação roubou a sua terra.
Dá para fazer uma analogia com um cão manso; ele é manso até você chutá-lo, que aí então ele irá mordê-lo.

Esse cartão de Muqtada é fantástico. Feliz 2012, Obama.

Alexei_Alves

Com certeza os EUA ficarão ainda muito tempo no Iraque. A começar pelo urânio-empobrecido americano, que ficará lá por uns dez mil anos.

FrancoAtirador

.
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Não sou de me apressar no tempo.

MAS JÁ ESTOU ANSIOSO PELO PRÓXIMO REVEILLON.
.
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douglas da mata

Caro Azenha,

Saiu no The Independent, hoje: Dia 09 de abril, às 5 horas, 2.500 homens das forças iraquianas governamentais invadiram o Campo de Asharf, local de residência dos PMOI (People's Mohajedin Oragnisation of Iran), que faz oposição ao governo.

Saldo: 33 mortos e mais de 300 feridos, todos civis e desarmados.

Detalhe: O comando estadunidense mandou que as forças estacionadas nesse campo fosse retiradas e não interferissem.

Coincidência: Período do massacre foi o mesmo da visita do Robert Gates, secretário de Defesa.

O artigo assinado por Lord Waddington, do Foreign Desk, insinua que esse ataque teve um "nada opor" de Washington.

Mais um crime contra a humanidade na conta da Casa Branca, e que alimentará de mais ódio e violência esse país já conflagrado.

Um abraço

    fernandoeudonatelo

    Cara, esse movimento guerrilheiro de orientação mohajedin, faz oposição ao governo iraniano, e não iraquiano.

    Sua plataforma ideológica é maoista, e foram responsáveis por apoiar forças iraquianas invasoras (pró-Saddam e anti-aiatolás) durante a Guerra Irã-Iraque, por isso, diz-se que a maior parte dos seus membros foram perseguidos como traidores, pela Guarda revolucionária Islãmica.

    Hoje parece que se resumem a um comitê político radical, mas não sei se estavam no Iraque como organização partidária, o que seria estranho já que sua origem e foco estão no Irã.

    Tem como mandar mais informações?

    douglas da mata

    Fernando,

    Meu inglês é fraco, mas o texto indica que o local é o campo da Asharf, no Iraque.
    Edição eletrônica do The Independent, de ontem. veja:
    http://blogs.independent.co.uk/2011/04/12/crime-a

    O que está lá com todas as letras é o nº de vítimas e a omissão dos estadunidenses, durante a visita de Gates ao Iraque.

    Grato

    Lúcia Amorim

    Acabo de encontrar um telegrama publicado por WikiLeaks, que conta, por dentro, em detalhes, toda a história desse campo de refugiados. Está em http://www.guardian.co.uk/world/2011/apr/08/us-ir

    WikiLeaks faz o único jornalismo realmente confiável de toda a história! Viva WikeLeaks!

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