Cristina Pecequilo:Tragédias americanas

Tempo de leitura: 5 min

10/01/2011

Com ou sem 11/09, às vésperas de completar sua primeira década, os ciclos de confrontação norte-americanos revelam muito mais inimigos internos do que externos à democracia nacional. Neste contexto, Gabrielle Giffords é mais um símbolo das tensões pelas quais passam os EUA, e que não se consistiu na primeira, e nem será a última, destas, cada vez mais recorrentes e diversas, tragédias norte-americanas. Opositores de políticas sociais, do aborto à educação sexual, à ação afirmativa, confrontam-se não só nas cortes de justiça, mas frontalmente em piquetes, ameaças de morte e ataques reais. Estamos diante de nova Guerra de Secessão que poderá ter o resultado oposto, o da regressão? O artigo é de Cristina Soreanu Pecequilo.

por Cristina Soreanu Pecequilo, em Carta Maior

Logo no início de 2011, os Estados Unidos (EUA) vivenciaram mais um episódio de violência em sua história política: o tiroteio na cidade de Tucson, Arizona, ocorrido no estacionamento de um supermercado no qual se realizava um encontro (o “Congresso em sua Esquina”) entre eleitores e a deputada democrata reeleita pelo estado, Gabrielle Giffords. Até o dia 9 de Janeiro, o ataque vitimara seis pessoas (incluindo um juiz federal republicano John Roll), enquanto outras doze, incluindo Giffords, permaneciam internadas.

Em 2010, o comitê de Giffords fora invadido durante a campanha, assim como a deputada recebera fortes críticas do candidato da oposição republicana, apoiado pelo Partido do Chá, Jesse Kelly. Kelly, em algumas declarações reproduzidas depois do atentado pelas agências de notícias (EFE, 09/01/2011), havia afirmado ser necessário “disparar um rifle automático M16 com Jesse Kelly” contra Giffords. Além disso, a deputada fora incluída em uma lista de vinte democratas, divulgada por Sarah Palin, que deveriam ser derrotados no pleito de meio de mandato. Bastante criticada, esta lista trazia representações gráficas destes candidatos como alvos de armas de fogo. No caso de Giffords, sua candidatura estava “na mira” por suas posições favoráveis à reforma de saúde de Obama e moderadas na imigração.

Tema controverso no Arizona, definido como “cenário de guerra” entre “os americanos e os outros” pelo governo republicano de Jan Brewer, a imigração e o tratamento dado a ilegais esteve (e está) no centro de uma disputa jurídica entre o Arizona e o governo federal. No núcleo da disputa, a lei estadual de 2010 que permitiria às autoridades do estado abordar, interrogar e deportar pessoas suspeitas de serem imigrantes ilegais. Estas recomendações eram inspiradas pelo “Ato Patriota”, editado em 2001, depois dos atentados de 11/09, com medidas de exceção para lidar com possíveis terroristas, ultrapassando limites de direitos civis.

Guardadas as proporções, o ataque a Giffords não pode ser resumido a estas divergências sobre imigração ou sistema de saúde, ou encarado de forma isolada. Também é possível que nas semanas subsequentes ao tiroteio desconstrua-se a hipótese inicial de que Giffords fora o alvo, ocorrendo um esvaziamento natural do caso. Mesmo assim, é fundamental que não se subestime ou esqueça o ocorrido. Motivações diversas, que perpassam o tecido social norte-americano, e que representam sentimentos de inadequação social, perda de lugar no mundo, medo da diferença, valorização da força, culto às armas e a paradoxal junção nacionalismo-antigoverno, permeiam mais este episódio. Seja na esfera política, como na social, a válvula de escape norte-americana é representada por eclosões periódicas de violência.

Representadas por eventos diferentes estas manifestações possuem a mesma raiz: a insatisfação dos que perpetram a violência com o que percebem como violações do modo de vida americano e que desejam a volta a um passado idealizado republicano no qual cada um era responsável por sua vida, segurança, educação e religião. A intervenção do Estado na vida do cidadão, as teorias conspiratórias que opõem o homem simples a um Executivo poderoso e onipresente, alimentam a polarização que conforma a agenda dos radicais do chá, atravessando grupos de interesse, movimentos religiosos e o cotidiano. Parafraseando a Declaração de Independência, nos EUA de hoje, alguns setores tentam difundir a ideia que a maioria dos norte-americanos está sendo pressionada a desistir de sua “busca pela felicidade e prosperidade” por culpa do Estado e, no extremo, por culpa de seu vizinho, principalmente se ele for representante de qualquer minoria, social, racial, étnica ou religiosa. Frente a esta ameaça permanente, aos inimigos deve-se oferecer a resistência.

Dentre os mais significativos eventos que se inserem neste quadro de “resistência” podem ser lembrados: Waco 1993, quando a confrontação entre autoridades federais (FBI, Guarda Nacional e ATF- Álcool, Tabaco e Armas de Fogo) e a seita religiosa liderada por David Koresh, resultou em um massacre de civis que resistiam ao cerco federal; Oklahoma City, 1995, atentado contra prédio federal realizado, oficialmente, por Timothy McVeigh, ligados a grupos fundamentalistas brancos; Columbine, 1999, quando os estudantes Eric Harris e Dylan Klebold dispararam contra seus colegas e professores.

Desempregados invadiram empresas nas quais trabalharam atirando contra pessoas com as quais conviveram, colégios sofreram ameaças similares a Columbine, seitas religiosas e grupos fundamentalistas fecharam-se em comunidades armadas, em exemplos que se não ganharam a mídia como seus antecessores, repetem-se. Opositores de políticas sociais, do aborto à educação sexual, à ação afirmativa, confrontam-se não só nas cortes de justiça, mas frontalmente em piquetes, ameaças de morte e ataques reais. Na arena política, poucos são os que desconhecem o assassinato dos Presidentes John Kennedy Jr em 1963, Abraham Lincoln 1865, William McKinley, 1901 (o atentado a Ronald Reagan em 1981), e de políticos como Robert Kennedy em 1968. Pela internet e pela mídia tradicional, o radicalismo, de ambos os lados, prevalece, sem deixar de mencionar a relativa apologia de filmes e livros com estes episódios de violência e a dramatização acrítica (e até romântica-idealizada) de indivíduos como serial killers e líderes de seitas e movimentos sectários, dentre outros.

No caso de Lincoln, pelo menos, o contexto era o da Guerra de Secessão (1861/1865), da confrontação entre o capitalismo industrial do Norte e a economia escravagista e agrária do Sul, representativa de uma guerra fratricida que levou à união nacional via modernização. Estamos diante de nova Guerra de Secessão que poderá ter o resultado oposto, o da regressão? De certa forma sim, uma vez que a reorganização social-econômica leva ao incremento da violência. Violência esta que, na realidade, sempre esteve presente no tecido social, mas que era tornada a exceção e não a regra, via sistema político e legitimação de políticas de inclusão e respeito à convivência mútua realizadas pelo Estado com o consentimento da população ou, quando necessário, pela imposição da legalidade (bastando lembrar nos anos 1960 quando o governo federal teve que intervir diretamente em estados do sul do país que se recusavam a respeitar as políticas de igualdade racial).

As reações ao atentado de Tucson, e a muitos dos episódios aqui rapidamente lembrados, revelam estes sintomas de divisão e o esgotamento do consenso anterior: enquanto observaram-se fortes condenações ao tiroteio, principalmente dos democratas e da Casa Branca, os críticos como Palin manifestaram suas condolências timidamente, e reações de apoio ao atirador puderam ser encontradas com preocupante frequência. Estas movimentações fazem parte do declínio e mudança com os quais o país não consegue lidar, e que leva à externalização de seus problemas por meio de ações econômicas e políticas unilaterais, independente do governo, e às guerras (Iraque, 1991, 2003, Afeganistão, 2001).

Com ou sem 11/09, às vésperas de completar sua primeira década, os ciclos de confrontação norte-americanos revelam muito mais inimigos internos do que externos à democracia nacional. Neste contexto, Giffords é mais um símbolo das tensões pelas quais passam os EUA, e que não se consistiu na primeira, e nem será a última, destas, cada vez mais recorrentes e diversas, tragédias norte-americanas.

Cristina Soreanu Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)


Siga-nos no


Comentários

Clique aqui para ler e comentar

francisco p.neto

Eu aprendi em genética que quando fazemos um processo de seleção buscando certas características benéficas, você inadvertidamente tras junto genes deletérios.
Está me parecendo que a evolução da sociedade norte americana chegou ao seu esgotamento, e agora começa a surgir os efeitos teratológicos desse processo de seleção suicida.
A natureza é sábia.

edv

Espero que o país dos afro americans, asian americans e outros, não venha, "eventually", a ter um Adolf american.

O_Brasileiro

A liberdade de expressão não existe quando há apologia ao crime, mesmo que seja de forma disfarçada!
Portanto, não é crime paulistas odiarem nordestinos, mas é crime quando há incitação à violência contra estes!

Dinha

Vão inventar outra invasão em pouco tempo, essa a regra para distrair dos problemas domésticos. Coreia do Norte e Irã que se cuidem.

Sergio F. Castro

Situação alarmante, um poder tremendo (ciêntifico, econômico, militar, etc…) nas mãos de um pais que se demontra cada vez mais irresponsável…

mariazinha

É…………..Os sinais já vinham de longa data. Agora chegaram com força total e o BRASIL precisa preparar-se. Se não nos cuidarmos seremos afetados diretamente. Precisamos construir barreiras, já.

Pitagoras

Americanófilo desde jovem e após lá morar, estudar e trabalhar, entre outras coisas pude constatar, lamentavelmente, que além das melhores coisas do mundo, também ostentam as piores, provenientes cada de segmentos diversos da sociedade, seja dito.
A cada dia que passa a desilusão com o país que prometia ser o ícone de liberdade, justiça, aumenta. Mostra-se corrompido, decadente, dando as costas para o mundo e para o seu próprio povo tanto mais quanto se aventura em invasões e ocupações militares mundo afora.
SHAME ON YOU USA!

Gerson Carneiro

Há um ponto positivo: São decididos. Executam o plano.

Os motivos e as consequências são outra coisa.

Aqui tivemos a caderneta de poupança surrupiada e não fizemos nada. Aqui reclamamos dos pedágios mais caros do mundo mas todos nós ao viajar pelas estradas de São Paulo facilitamos até o troco. E vivemos em paz com nossas tragédias.

O certo é que todo lugar é bom; para quem não vive lá.

Dentre os eventos mencionados eu acrescento um que com sinceridade digo que curti ter assistido: Los Angeles, 29 de abril de 1992, Dia de Negro bater em Branco. Em que pese não terem culpa direta os brancos que apanharam.

    Elton

    Você está correto. Como dizem: "a grama do vizinho é sempre mais verde, até você descobrir que é artificial".

Pedro

Sintomas de uma guerra civil é o que está ocorrendo no Império cuja decadência nada consegue mais segurar.

Jairo_Beraldo

Fazem com eles mesmos, o que fazem com povos que não se submetem aos seus anseios e desejos. Não tenho pena nenhuma deste povo arrogante e covarde. Merecem o que recebem.

    Elton

    Sofrem de SOCIOPATIA, é um país perigoso para se viver.

Julião

Cont.

Este conceito de possibilidade interferência mundial já é o atual do complexo militar/bancário/industrial americano, montado independente da presidencia e congresso do país, com vida própria, com dúzias de agencias de segurança governamentais e/ou particulares, atuando separada ou conjuntamente, para tentar moldar a sua mentalidade neurótica dos USA ao restante do planeta, ou seja á sua imagem e semelhança.
Temos que lembrar de que estas agencias possuem visões particulares dentro do espectro da extrema direita americana, com milhares de informantes profisionais (embaixadas, agencias de negócio, bancos, empresas, FBI, CIA,, NSA, etc.), cada uma delas ou ( deles informantes) com interesses particulares e distintos, vizando vontades (tambem particulares) dos grupos que representam , interesses estes financeiros, religiosos, de poder, etc.

Julião

Julião

O novo ovo da serpente
Um novo ovo de serpente está sendo gerado no norte do nosso continente.

Um novo ou velho nazifacismo está se iniciando e reune todas as premisas para gerar um monstro.

A sociedade americana, como anteriormente a alemã, não consegue visualizar este fato, pois imersa nos seus atuais problemas econômicos e sociais, não se atem a criação do novo monstro que poderá assolar o mundo.

Já imaginaram um novo império, com o poderio bélico atual dos USA, com uma visão nazifacista, impondo a sua vontade pela força em qualquer parte do mundo onde julgarem conveniente. Atualmente os USA pretendem gastar um trilhão de dólares no ano de 2011com despesas militares, contra o segundo colocado, que é a URSS, que gastou 45 bilhões em 2010 e aumentará para 90 bilhões em 2011 ( cerca de 10 vezes menos que o orçamento americano), com receio dos USA.

Continua a seguir

Deixe seu comentário

Leia também