Bessa Freire: Coração enterrado na curva do rio

Tempo de leitura: 6 min

COM O CORAÇÃO ENTERRADO NA CURVA DO RIO

por José Ribamar Bessa Freire, no Diário do Amazonas, via blog Taqui Pra Ti

Uma das chaves para entender o assassinato de Osama bin Laden talvez esteja no codinome ‘Geronimo’, escolhido para designar a missão norte-americana, formada por 79 membros da tropa de elite da Marinha, que entrou em território do Paquistão com quatro helicópteros ultra-sofisticados, invadiu a casa do ex-aliado da CIA, encontrou-o desarmado e o executou. Afinal, o que é que Gerônimo, chefe Apache do séc. XIX, tem a ver com essa história?

“Nada. Isto é uma distorção da História. É um insulto e um erro que tenham usado esse nome para designar a operação” – protestou Harlyn Geronimo, bisneto do chefe Apache. Ele, que arriscou sua vida servindo à pátria na 2ª Guerra Mundial e na invasão ao Vietnã, pediu explicações do presidente Obama e exigiu que o nome Geronimo fosse retirado dos documentos oficiais referentes a essa operação.

O protesto familiar foi engrossado pelo atual líder Apache, Jeff Houser, que elogiou o sucesso da missão antiterrorista, mas em carta aberta ao presidente dos EUA, denunciou a associação entre “o símbolo heróico da resistência indígena no país ao símbolo do terrorismo internacional”. Segundo ele, isso reforça a imagem falsa, difamatória e estereotipada dos Apache, que foram tratados como selvagens com o “pretexto para a remoção forçada de suas terras”.

Vários líderes de organizações indígenas nos EUA também formalizaram suas queixas, quinta-feira passada, na Comissão de Relações Indígenas do Congresso Americano que trata dos “estereótipos racistas e das populações autóctones”. Eles exigiram que o presidente americano peça desculpas. Até agora, Barack Obama, que confraterniza com as tropas americanas, não deu qualquer resposta. Talvez porque ele concorde com os militares, para quem Geronimo e Osama são “dois renegados”. São mesmo?

Os Renegados

Fiz essa pergunta a Dee Brown, um americano que entende do assunto, não diretamente, mas consultando seu livro – Enterrem meu coração na curva do rio – publicado em 1970. Ele respondeu com o capítulo intitulado – O último Chefe Apache – que traz a biografia do guerreiro Goyaalé, nome indígena de Gerônimo (1829-1909).

Lá, ele descreve a resistência apache contra tropas mexicanas e americanas e conta como uma companhia de 400 soldados assassinou, em 5 de março de 1851, centenas de apaches desarmados, a maioria mulheres e crianças, entre as quais a mãe de Geronimo, sua mulher Alope e seus filhos.

Essa história foi reconstituída por Dee Brown, filho de um lenhador da Louisiana, quando trabalhou como bibliotecário no Ministério da Agricultura. Ele, que em sua infância havia brincado com crianças Choctaw, estava antenado para a questão indígena. Pesquisou no arquivo os documentos sobre o tema: relatórios governamentais, tratados, mapas, atas de conselhos e reuniões tribais com autoridades civis e militares, livros de pequena circulação e jornais alternativos que registraram o discurso dos índios. Concluiu que satanizaram o líder Apache:

– “Transformaram Geronimo num demônio especial, inventando histórias de atrocidades às dúzias e pedindo vigilantes para enforcá-lo, se o governo não o fizesse. A fuga do grupo de Geronimo através do Arizona foi o sinal para uma torrente de boatos intensos. Os jornais publicaram grandes manchetes: OS APACHES FUGIRAM! A simples palavra “Geronimo” tornou-se um grito de sangue”.

O autor se apoiou em declarações não de qualquer antropólogo comunista, mas do próprio general George Crook, enviado pelo Exército Americano para caçar Geronimo. Depois de conviver com os índios, o general mudou de opinião: “É muito freqüente jornais fronteiriços disseminarem toda espécie de exageros e falsidades sobre os índios, o que é copiado em jornais de elevado conceito e ampla circulação em outras partes do país, enquanto o lado índio do caso é raramente divulgado. Desta forma, as pessoas ficam com idéias falsas sobre a questão. Então, quando há o clímax, a opinião se volta contra os índios”.

Ouvir o “outro lado”. O general Crook queria que os índios fossem ouvidos, para evitar a satanização deles. Por isso, foi demitido pelo Ministério da Guerra e substituído pelo general Nelson Miles. O novo comandante das tropas organizou, em abril de 1886, uma espécie de “Operação Osama”. Mobilizou 5 mil soldados – um terço da força de combate do Exército – e milhares de milicianos civis armados, montou um custoso sistema de heliógrafos para enviar mensagens e, num clima de histeria coletiva, atacou os Apache que na época já estavam reduzidos a um “exército” de… 24 guerreiros.

A rendição

Foi aí, então, que Geronimo se rendeu, em setembro de 1886, cansado de lutar durante trinta anos contra dois exércitos: o mexicano e o americano. Na época, ele tinha seis esposas: Chee-hash-kish – com quem teve dois filhos – Nana-tha-thtith que lhe deu outro filho, Zi-yeh, She-gha, Shtsha-she e Ih-Tedda. Algumas delas, entre as quais a última, estava com Geronimo e foi com ele aprisionada..

Geronimo, suas mulheres, seus filhos e os 24 guerreiros Apache foram encarcerados. Ele permaneceu prisioneiro do governo americano durante 23 anos, quando morreu, em 1909, vítima de uma pneumonia, na prisão de Fort Sill, em Oklahoma, em cujo cemitério foi enterrado. Seus ossos foram, posteriormente, roubados por membros da sociedade secreta Skull and Bones (Crânio e Ossos) e levados para sua sede em New Haven, onde seu crânio podia ser visto dentro de um pote de vidro.

O historiador Marc Wortman, que fez essa revelação, se apoiou numa troca de correspondência entre membros da sociedade secreta – da qual fazia parte Prescott Bush, avô do ex-presidente George W. Bush – especialmente numa carta datada de junho de 1918 que ele encontrou nos arquivos da biblioteca de Yale. Agora, Harlyn Geronimo está processando o governo americano, pedindo que os ossos do seu bisavô sejam enterrados na sua terra natal, perto do rio Gila, no Novo México.

O livro de Dee Brown, que faz a biografia de Geronimo, começa com a grande marcha dos Navajo, em 1860 e termina com o massacre aos Sioux, trinta anos depois, nas margens de um riacho chamado Wounded Knee, com o exterminio de homens, mulheres e crianças. Ele conta como, em três décadas, quando a população americana pulou de 31 milhões para 62 milhões de habitantes, colonos inescrupulosos, amparados pelo próprio governo, invadiram e roubaram as terras indígenas, encontrando forte resistência por parte dos índios, que lutaram em defesa de seu território.

Nesse período se consolidou a política de remoção indígena do governo americano, que consistiu em espoliar os índios de suas terras, removendo-os para o oeste do rio Mississipi, formando o Território Indígena que deu origem ao atual estado de Oklahoma. Essa migração forçada, que semeou dor, desespero e morte, foi denominada pelos índios de ‘trilha das lágrimas’.

A rota da dor

Dee Brown, que publicou fotos dos chefes indígenas encontradas no Instituto Smithsoniano, conta como reconstruiu esse caminho: “Embora os índios que viveram durante esse funesto período tenham desaparecido da face da terra, milhões de suas palavras foram conservadas e estão contidas nos registros oficiais. Com todas essas fontes da quase esquecida história oral, tentei armar uma narrativa da conquista do Oeste Americano segundo suas vítimas, usando suas palavras sempre que possível”

Às vezes, o autor reproduz falas de oficiais do exército americano, como as do capitão Nicholas Hodt: “Os navajo, squaws e crianças correram em todas as direções e foram atacados com tiros e baionetas. Vi, ali, um soldado matando duas criacinhas e uma mulher. Ordenei imediatamente que o soldado parasse. Ele olhou, mas não obedeceu a minha ordem. Corri, mas não consegui impedi-lo de matar as duas crianças inocentes”.

Lendo o livro de Dee Brown, é possivel concluir que a Missão Osama bin Laden podia ter sido chamada com qualquer outro nome de dezenas de chefes indígenas: Geronimo, Antílope Branco, Nuvem Vermelha, Touro Sentado… Todos eles foram igualmente massacrados num processo em que não foram ouvidos.

Um oficial que cavalgava atrás do coronel Chivington conta que viu Antílope Branco, desarmado, se render, com as mãos para o alto, dizendo: Parem! Parem! “Falava isso num inglês tão bom quanto o meu”. Cruzou os braços até ser atingido. Os sobreviventes dos Cheyenne disseram que Antílope Branco cantou a canção da morte antes de expirar: ‘Nada vive muito tempo / só a terra e as montanhas’.

O corpo de Antílope Branco, como o de bin Laden, também não podia ser mostrado. Outro oficial, o capitão Soule, testemunhou: “Vi o corpo de Antilope Branco com os genitais cortados e ouvi um soldado dizer que iria fazer uma bolsa de fumo com eles”.

Diante de tanta barbárie, o cacique Sioux Sinte-Galesha criticou a guerra como forma de solucionar conflitos e apontou para a diplomacia: “Nossa vontade é viver aqui, em nossa terra, pacificamente, e fazer o possível pelo bem-estar e prosperidade de nosso povo. Quando povos entram em choque, é melhor para ambos os lados reunirem-se sem armas e conversar sobre isso, é encontrar algum modo pacífico de resolver”.

Um dos sobreviventes do massacre foi o cacique sioux Touro Sentado, que no verão de 1885 fez parte do Show do Oeste Selvagem de Buffalo Bill, viajando pelos Estados Unidos e Canadá. Ele dava as moedas que recebia às crianças pobres e famintas não indígenas e não entendia como a sociedade de consumo, que produzia tantos bens, podia ser tão indiferente aos seus pobres.

“O homem branco sabe como fazer tudo – disse – mas não sabe como distribuir isso”.

O que é que Osama bin Laden tem a ver com Geronimo e outros chefes indígenas? Os terroristas da Al Qaeda, que mataram inocentes, semeando a dor e o luto, devem estar orgulhosos, pegando carona no nome de um guerreiro que lutou por seu povo e por sua terra. De todos os modos, o tempo vai mostrar que o terrorismo de Estado praticado pelo governo americano, como forma de combater o outro terrorismo,  é uma forma truculenta, burra e ineficaz e que os índios têm razão quanto apontam o caminho da conversa e da negociação.


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Comentários

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beattrice

Para um professor de direito constitucional Obama se revela a cada dia mais medíocre.

valdeci elias

A historia vive se repetindo.
Faz cem anos, que se iniciou o bombareiro aerio. Em 1911 ,tiveram a brilhante ideia de soutar granadas em cima dos selvagen libios. Em 2011 os europeus voltam a bombardear a
Libia.
Na idade media, os europeus, fizeram varias cruzadas. No seculo XXI, Bush chamou o ocidente pra uma nova cruzada.

Fabio_Passos

Chomsky descreve com precisão este crime abjeto da ditadura ianque e ainda afirma que o nome da operação – "Gerônimo" – glorifica Bin Laden.

Confiram:

"Se torna cada vez más claro que la operación fue un asesinato planificado, violando de forma múltiple las normas elementales de la ley internacional. No parece haber existido intención alguna de arrestar al individuo desarmado –como supuestamente podría haber ocurrido– teniendo en cuenta los 80 efectivos de los Navy Seals que no encontraron resistencia alguna, a excepción, según ellos alegan, de su esposa, quien se abalanzó sobre los uniformados.
(…)
Lo mismo con el nombre, Operación Geónimo. La mentalidad imperial es tan profunda, a lo largo de toda la sociedad occidental, que nadie puede percibir que de esa manera glorifican a Bin Laden, al identificarlo con la resistencia corajuda contra los invasores genocidas…
"

Asesinato planificado http://fichacorrida.wordpress.com/2011/05/08/assa

O_Brasileiro

Para o bem, e para o mal.
Quando Bin Laden atacou os EUA, ninguém quis saber seus motivos, pois havia matado milhares de inocentes.
Agora que o governo dos EUA, desrespeitando todas as leis internacionais, como constantemente faz, executou Bin Laden, já não sei se os motivos dos ataques continuarão a ser ignorados.

Acho que, no final das contas, essa foi uma grande lição para os terroristas: se usarem métodos genocidas e ilegais, suas reinvindicações, mesmo que sejam corretas, serão ignoradas.
Mais uma vez a história mostra que os fins não justificam os meios!

Mário SF Alves

"Depois de conviver com os índios, o general mudou de opinião" É… bons tempos aqueles quando a elite ainda tinha dúvidas e podia mudar de opinião!

Ronaldo

Naquele tempo já existia o PIG, atuando, como agora, a favor das elites e contra os menos capazes.

Tenho nojo desses fariseus caiados de branco.

implacavel

GERONIMO MORREU EM COMBATE

De: Luiz Antonio Simas – Blog Historias Brasileiras

É mais impactante ainda perceber que o presidente dos EUA se vangloriou de ter recebido a mensagem cifrada da execução de Bin Laden com a frase Geronimo morreu em combate. O racismo explícito que marcou a postura dos desbravadores do oeste e dos governos contra os índios apaches revive na operação autorizada pelo presidente negro.

Benjamin Franklin, justamente considerado pelos americanos como um dos pais da nação, se referiu aos apaches em certa ocasião da seguinte maneira:

Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa.

Franklin, em seu puritanismo calvinista, via a eliminação dos apaches como uma tarefa de Deus confiada aos americanos e enxergava na bebida o instrumento ideal para aniquilar os nativos. Obama foi mais longe: eliminou simbolicamente, e o território dos símbolos é o espaço poderoso onde o espírito das nações se insinua, cada índio apache com um tiro na cabeça.

Alice Matos

Não pestanejo para dizer que Osama Bin Laden, o no. 1 da da Al Qaeda, cujo maior desejo era instalar Estados Teocráticos era um homem movido pelo ódio; suas ações eram movidas a ódio; e odiava tudo o que era contrário ao mundo que idealizou; isto é, odiava a democracia e a liberdade; era um homem aquém do seu tempo. E porque odiava a democracia e a liberdade foi capaz de atos inexplicáveis pela racionalidade humana, como o atentado de 11 de setembro, no qual perderam a vida tantas pessoas inocentes.
Nós, que amamos a democracia e a liberdade, temos de incriminar quem executor o tirano Osama Bin Laden, sem levá-lo antes a tribunal, que teria sido atitude de gente civilizada. No entanto, Estados terroristas, que adotam a moral da imoralidade do Velho Oeste, fazendo sua própria lei em qualquer canto, não podem ser classificados como civilizados e sim como puritanos calvinistas numa reedição de Caça às bruxas do catolicismo.

    Pall Kunkanen

    nossa Alice vc conhecia bem o Osama hein, conhecia até seus desejos, suas ações. Diz ai pra gente quantas vezes vc se encontrou com ele? Porque se vc conhecia tão bem assim o Osama, já deveria ter escrito sua biografia, mesmo que não autorizada. Ou vc escreve baseada no que anda lendo ou vendo.
    Porque é muito fácil rotular as pessoas, qdo pouco se sabe o que vai no seu âmago. Saber ler é uma coisa interpretar é outra bem diferente

L. Fernando

Li esse livro e não esqueço a frase dita por um índio:

"Os brancos fizeram muitas promessas, muito mais do que posso lembrar. Mas cumpriram só uma: a promessa de tomar nossas terras".

O que os norte-americanos fizeram com os índios e suas terras, agora estão fazendo em outros países e suas riquezas (Iraque, Afeganistão etc.).

Acredito que essa é a verdadeira a semelhança entre os índios americanos e alguns povos árabes: ambos são vítimas da ganância dissimulada do Tio Sam.

E, coincidência ou não, Hollywood ajudou a estigmatizar a imagem de índios e árabes no cinema, mostrando-os sempre como bárbaros sanguinários.

FrancoAtirador

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"Fizeram-nos muitas promessas, mais do que me posso lembrar, mas os brancos nunca cumpriram, menos uma, prometeram tomar toda nossa terra e a tomaram."

(Palavras do Chefe índio Sioux, Nuvem Vermelha, dirigidos a um Oficial do exército da cavalaria dos Estados Unidos).
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"O Grande Chefe de Washington mandou dizer que deseja comprar nossa terra.
O grande chefe assegurou-nos também sua amizade e benevolência.
Isto é muito gentil da sua parte, pois sabemos que ele não precisa da nossa amizade.
Vamos, porém, pensar em sua oferta, pois sabemos que, se não o fizermos, o homem branco virá com armas e tomará nossa terra."

(Carta do cacique Seattle, índio norte-americano da tribo Duwamish, do Estado de Washington, ao Presidente dos Estados Unidos, em 1885)

Íntegra da Carta do Cacique Seattle em:

http://viagemambiental08.blogspot.com/2010/10/car

Heitor Rodrigues

Parabéns, Prof. Bessa Freire. Vou reler o livro de Dee Brown.

João

Depois os EEUU não conseguem entender quando suas embaixadas são atacadas. Eles massacram tudo que se encontra em seu caminho, e querem flores como retorno.

dukrai

Gerônimo e Osama bin Laden, o primeiro lutou contra mexicanos e "americanos", o segundo contra soviéticos e "americanos". Demônios para os gringos, vítimas de matadores profissionais para nosotros.

leila maria

Barak não leu o ENTERREM MEU CORAÇÃO NA CURVA DO RIO! Houvesse lido…
Belo artigo do Professor Bessa.

    Mário SF Alves

    Houvesse lido e nome da operação seria outro. Provavelmente "ABRE-TE, SÉSAMO!!".

Lauri

O professor Bessa Freire foi fundo. Matou a cobra e mostrou o pau. Muito bem, mestre!

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