Álvaro Santos: Promiscuidade entre Estado e Governo

Tempo de leitura: 2 min

por Álvaro Rodrigues do Santos

Ariane Minouchkine, fundadora e diretora do Théâtre du Soleil, em um determinado momento de antiga entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, ressalvou orgulhosamente que sua companhia recebia recursos do Estado francês e não do Governo do país. Quis pontuar essa grande mulher que aí se colocava uma enorme e profunda diferença ética.

Se a atual polêmica sobre a ética na administração pública contribuir para que se perceba que uma das principais raízes de nossos maiores males públicos está na cultural promiscuidade com que são entendidos e se relacionam no país Estado e Governo, já terá sido extremamente positiva em seus resultados educativos. Entendidos aqui o Governo como a expressão da vontade política da população para, renovada e periodicamente, definir e conduzir as políticas públicas inerentes ao desenvolvimento econômico e social do país e ao bem estar da sociedade, e o Estado como o aparelhamento técnico-administrativo-gerencial permanente envolvido na gestão e execução das mais diversas atividades e serviços públicos nos campos da Saúde, do Saneamento, da Educação, dos Transportes, das Telecomunicações, da Energia/Mineração, do Meio Ambiente, da Justiça, etc.

Enfim, exemplificando para firmar conceitos, Secretaria da Saúde é Governo, Hospital das Clínicas é Estado; Ministério de Minas e Energia e Secretarias afins são Governo, Furnas, Petrobrás, CESP, CPRM, DNPM são Estado; Ministério e Secretarias de Estado dos Transportes são Governo, DNIT, DERSA e Metrô são Estado, Ministério e Secretarias do Meio Ambiente são Governo, IBAMA e CETESB são Estado. Como são Estado Sudene, Codevasf, Correios, Infraero, Dataprev, Embrapa, Eletrobrás, IPT…

Como costume trágico e culturalmente arraigado, cada novo governo, seja em nível federal, estadual ou municipal, tem desgraçadamente todo o Estado à sua disposição para a acomodação das composições políticas que lhe dão sustentação. A cada novo mandato loteiam-se e mudam-se assim todas as direções e comandos dos instrumentos de Estado, seja na administração direta, seja na indireta. Conseqüência deletéria natural é a descontinuidade de programas, de estratégias de conduta, das políticas de curto, médio e longo prazos, a desimportância para com a competência técnica, o descompromisso pelo zelo ético nas licitações e nas relações institucionais. A propósito, o uso político menor do Estado brasileiro e as graves conseqüências na eficiência de sua gestão explicam em boa parte a perniciosa, e também cultural, dissociação de confiança entre Estado e Sociedade.

Operar essa “desassociação” entre Estado e Governo não será fácil, muitos a quem caberia essa tarefa sentiriam estar “cortando a própria carne”, para utilizarmos uma expressão da moda. Como em outras questões similares, somente mesmo a vontade manifesta da sociedade terá a força necessária para a mudança dos atuais costumes. A proposta de uma legislação que bem delimitasse os espaços entre Governo e Estado poderia constituir o oportuno mote para um profundo e politizador debate da matéria. Que nos leiam os bons legisladores.

Álvaro Rodrigues dos Santos ([email protected]) é geólogo. Foi diretor de Planejamento e Gestão do Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT), onde foi também diretor da Divisão de Geologia. Ex-diretor geral do Departamento de Ciência e Tecnologia do Governo do  Estado de São Paulo.


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Comentários

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Carlos Cruz

Enquanto não se definir independencia de Estado dos orgãos públicos continuaremos na simbiose governo/estado. De que serve orgãos públicos de papel, sem estrutura de agir como Estado, sem orçamentos que lhe deem vida própria de existir por ser Estado, sempre de pires na mão e dependente da vontade de alguem? De que adianta tantos quereres se não há como planejar e…executar, sempre dependendo da vontade política, submisso a indicações políticas que desmotivam? O orçamento IMPERATIVO seria um grande passo para solucionar os graves problemas.

José Fonseca

Deixa eu entender… vc quer separar "Governo" – aquele conjunto de pessoas que o povo elege do "Estado" que é….. o que? O funcionalismo? A máquina? A polícia? O judiciário? As Forças Armadas? Esse pessoal que ninguém escolheu, ninguém elegeu, ninguém põe pra fora? Que passam num concurso público e viram deus?

Bebeu?

Qto a senhora francesa.. do estado ou do governo ele pega o dinheiro público, ponto final.

    Carlos Cruz

    Acho que vc esquece que agir dentro da legalidade é OBRIGAÇÃO de TODOS os funcionários públicos. Os DEUSES existentes no funcionalismo público não são os concursados, independentes de indicação política. Os DEUSES são os do olimpo político, que nada tem a prestar a sociedade mas apenas aos quereres políticos de quem o colocou na função, e apenas a ele deve satisfação e poder. TODOS escandalos no Estado iniciam de um preposto político/governamental, que macula o Estado e o faz desacreditado perante a sociedade. Contrario do que vc entende, o poder de agir com independencia é democracia (o funcionário representa o Estado e legalmente age em sua fiscalização). Acaba o tal " voce sabe com quem está falando?…"

Caracol

Excelente artigo, Álvaro Santos!
Finalmente alguém aqui põe o dedo nessa ferida, que considero a mais perniciosa da condição brasileira, um verdadeiro berne pustulento. Eu acrescentaria apenas que a sociedade brasileira, não tendo a menor idéia do que seja Governo e do que seja Estado, enquanto se mantiver nessa ignorância jamais vai adquirir identidade nacional e social. O problema é que não há apenas promiscuidade entre Governo e Estado no Brasil, o mais grave é que aos brasileiros não é dado adquirir consciência do que vem a ser uma coisa e outra.
Essa ignorância vem desde os tempos do advento da República, um dos golpes telefônicos da nossa História, quando se procurou apagar uma noção precisa e então existente sobre as diferenças entre Governo e Estado. A ação do PIG da época (acrescidos das eleições “a bico de pena”) chegaram a um nível tal de histeria que as Constituições promulgadas continham, até bem pouco, uma cláusula pétrea que PROIBIA manifestações anti-republicanas. Aconteceu quando os barões do café, inconformados com a abolição da escravatura, deram o golpe e impuseram aos brasileiros a máxima de Luiz XIV: “O Estado somos nós!”. E passaram a governar também.
De lá pra cá deu no que deu: essa promiscuidade da qual você se refere.
PS: Não, não sou monarquista. Mas também não sou besta.

Jicxjo

Uma separação mais profunda entre Estado e "Governo" é desejável, mas creio impossível sem uma reformulação da cúpula de instituições da República. Mas da mesma forma NÃO é interessante dar "independência" à tecnocracia, como normalmente se defende para o Banco Central, sem que fique submetida a controle democrático. O governo é montado justamente para comandar a máquina, que não pode seguir simplesmente em "piloto automático" por muito tempo sem adquirir vontade "própria" ou de terceiros interessados.

Por ora, o que pode ser restrito é o alcance da livre nomeação política sem qualquer vínculo meritocrático na respectiva instituição. Limitar as nomeações de "gente de fora" apenas ao primeiro escalão de órgãos, autarquias e empresas; nomeações subsequentes teriam de ser feitas a partir dos quadros de carreira, nem por isso ignorando as afinidades políticas e ideológicas dos nomeados. A tecnocracia não é "neutra", "apolítica"; o resto é ingenuidade de senso comum.

A longo prazo, não sem a necessidade de uma reforma constitucional, os três poderes deveriam ter instituições máximas diferentes para Estado e "Governo" (aqui em um sentido bem amplo, diferente do dado pelo articulista), ou seja, entre formulação de diretrizes e operação. O nível mais alto, do Estado, estaria relacionado ao longo prazo, aos controles constitucionais sobre o "governo", aos objetivos e garantias dos princípios fundantes da República; o nível inferior, de "governo", com a condução da "máquina" (entendidos aqui os três poderes), o dia-a-dia, com um grau de liberdade menor que o atual, dentro de um frame dado pelas normas e políticas de longo prazo.

(Beeeem resumidamente, como se à Presidência (com atribuições de Chefe de Estado), Senado e STF fossem delegadas funções de Estado, enquanto Gabinete (com um Primeiro-Ministro), Câmara e STJ ficassem com as funções de cúpula operacional. Duração de mandatos, requisitos de elegibilidade, competências normativas (formais e materiais), legitimidades ativa e passiva, funções de auditoria, controle e correição, freios e contrapesos, tudo isso não estaria mais sujeito apenas a distinção entre poderes, mas também entre os "níveis de Estado", ou seja, Cúpula de Estado x Cúpula de "Governo", Conselho x Direção)

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