A tentativa de nos empurrar para uma estrada esburacada na internet

Tempo de leitura: 6 min

por Sérgio Amadeu, em Comunicação digital e a construção dos commons*

A integração de redes, a digitalização do conteúdo televisivo e radiofônico, a migração da telefonia para a internet, têm acentuado o crescimento das trocas de arquivos digitais e já indicam a perda de rentabilidade e de faturamento de velhos modelos de negócios.

Um dos segmentos mais afetados com a expansão da internet, por mais incrível que possa parecer, foi o setor da telecomunicação. O uso da voz sobre IP (Internet Protocol) viabilizou a possibilidade de redução de custos da telefonia fixa. A rede de computadores usava a rede de telefonia para transitar seus pacotes de dados. Estes pacotes, na internet, são formatados de acordo com um conjunto de regras, ou seja, de protocolos chamados de TCP/IP. De modo extremamente simplificado, o TCP quebra todas as informações que serão transmitidas em pacotes com determinado número de bits que serão remontados em outro computador que receberá a mensagem. Cabe ao TCP também definir como verificar se os pacotes chegaram corretamente, sem serem corrompidos no caminho. Estes pacotes são enviados para um endereço IP, e não podem existir dois IPs com o mesmo número, pois isso impediria que o pacote fosse enviado para o local correto.

As redes físicas, ou seja, as redes de telefonia, foram ampliando a capacidade de transferir os pacotes de dados. Foram aumentando a largura da banda. Quanto mais larga for a banda, mais rapidamente são transferidos os pacotes pela rede mundial de computadores. Hoje, em várias regiões ricas do Primeiro e do Terceiro Mundo, é comum encontrarmos a largura de banda de 1 Mb (Megabit) por segundo. Isso quer dizer que é possível transferir um arquivo que tenha aproximadamente 1 mil quilobits em um segundo. Ao promoverem a banda larga, com vistas a auferir maiores lucros, as empresas de telefonia acabaram viabilizando também a possibilidade de transferir voz e imagens por pacotes, ou melhor, usando os protocolos da internet.

A velocidade da transmissão dos pacotes supera a ausência de ligação contínua entre as duas pessoas que estão falando. Aí se encontrava o problema: as operadoras começaram a perder dinheiro, pois começaram a perder ligações telefônicas internacionais, depois ligações regionais, ligações entre as filiais de uma mesma empresa, espalhadas pelo país ou por um estado. Não tem muito sentido, para quem tem computador, pagar as tarifas de telefonia, se pode pagar bem menos usando um serviço de VoIP (voz sobre IP).

Diversas empresas estão implementando um software livre chamado Asterisk, que permite montar na rede algo como um grande PABX que liga todas as unidades da empresa. O setor público, capturado pelos lobbies, mal começou a usar a voz sobre IP para reduzir os custos com telefonia, mas é inevitável que isso ocorra. Tente estimar a quantia que um governo como o do Estado de São Paulo economizaria em suas contas telefônicas utilizando o Asterisk ou outro software aberto e não-proprietário para ligar todas as suas unidades.

Novas contradições. O dinheiro economizado por empresas, pessoas físicas ou governos com a voz sobre IP é o mesmo dinheiro que foi reduzido das corporações de telecomunicação. Os modelos de negócio baseados em telefonia tradicional correm risco fatal. As reações das empresas são diversas. A maioria delas tenta entrar no negócio de provimento de acesso e de voz sobre IP, oferecendo o que chamam de webfone. Entretanto, a concorrência é muito maior. Os preços praticados são muito menores que o do antigo modelo monopolista da telefonia. Essas corporações também estão buscando entrar firmemente no negócio de entretenimento ou de oferta de conteúdo, mas são mal recebidas pela empresas tradicionais que já ocupavam esse mercado.

Isto esclarece uma das principais razões pelas quais a Rede Globo fez um forte lobby sobre o governo para impor um padrão de TV digital que possibilitasse a menor entrada de um número de novos veiculadores de conteúdo. Representantes da Globo diziam abertamente que precisavam proteger a única multinacional brasileira que exporta conteúdos televisivos da concorrência aberta dos grupos internacionais de telecomunicação. A estratégia foi bloquear via padrão de modulação a temida concorrência das operadoras, mas também as diversas opções regionais e locais que emergiriam. Todavia, o que chamam de convergência digital trouxe e trará mais surpresas.

Uma das mais intensas e perigosas reações contra a perda de rentabilidade dessas empresas, mas também contra a criatividade e a inovação das redes informacionais, ocorreu nos Estados Unidos, em 2006. As operadoras de telefonia e as empresas de TV a cabo lançaram uma ofensiva no Congresso norte-americano para alterar as regras sob as quais se estabeleceu a convivência entre a rede de comunicação física e a rede lógica, permitindo a grande expansão da comunicação mediada por computador. A alteração das regras naquele país, entre as empresas que controlam a rede física de conexão e os inúmeros provedores de acesso e conteúdo, terá impacto mundial. Isso porque a maior parte do tráfego da internet passa pelos Estados Unidos e a maioria dos sites mais acessados estão hospedados lá.

Ainda no primeiro semestre de 2006, logo após a primeira tentativa de mudança legal por parte das corporações de telecom, formou-se um grande movimento de resistência, denominado Save the Internet. Este movimento reuniu pensadores, acadêmicos, pioneiros da rede, hackers e associações de defesa de direitos, inclusive a EFF (Eletronic Frontier Foundation). A mobilização em torno do site Save the Internet conseguiu obter mais de 1 milhão de assinaturas para uma petição, endereçada aos congressistas norte-americanos, intitulada “Don’t let Congress ruin the internet” (Não deixe o Congresso arruinar a internet). Para explicar a relevância da mobilização, os organizadores do site inseriram um FAQ (respostas às perguntas mais frequentes) que continha uma passagem extremamente esclarecedora:

“As maiores companhias nacionais de telefone e de cabo — englobando AT&T, Verizon, Comcast e Time Warner — querem ser gatekeepers [vigias ou porteiros] da internet, decidindo quais sites da web serão rápidos ou lentos e quais nem serão carregados. Querem taxar provedores de conteúdo para garantir a entrega veloz de seus dados. Querem discriminar [o tráfego da rede] em favor de seus próprios serviços de motores de busca, telefonia pela internet e seus serviços de vídeo streaming — enquanto retardam ou bloqueiam seus concorrentes. Estas companhias têm uma nova visão para a internet. Em vez de um campo de jogo uniforme, querem reservar pistas expressas para seus próprios conteúdos e serviços — ou beneficiar aquelas grandes corporações que podem pagar seus pedágios — e deixar para todos nós apenas uma estrada esburacada”.

Os controladores das linhas de telefone, por onde transitam os bits, querem interferir no seu fluxo, pois perceberam que ali poderiam obter maiores ganhos. Eufemisticamente, essas corporações de telecomunicações dizem defender a ideia da transparência dos pacotes na rede. A internet é uma grande rede de transferência de pacotes de informação. A rede mundial de computadores pode ser comparada à atual navegação comercial marítima. Nela, os navios transportam contêineres, todos com as mesmas especificações, independentemente de seus conteúdos. De modo semelhante, a internet transporta as informações em pacotes de dados, os datagramas, que seguem as determinações de protocolos TCP/IP.

Esses pacotes de dados apresentam um cabeçalho que contém informações sobre o seu endereço IP de destino e de origem, ou seja, de onde vieram e para onde irão; além disso, trazem outras informações que os identificam como uma mensagem de e-mail ou uma página de web etc.

As operadoras querem autorização para cobrar mais caro ou mais barato pelo tráfego dos pacotes, dependendo de quem os tenha enviado, do tipo de aplicação a que pertencem, se são páginas da web, músicas no formato MP3, mensagens de chats etc. Pretendem alterar a velocidade dos datagramas de empresas que pagaram mais, pretendem atrasar o uso de aplicações que não sejam de seu interesse. Assim, para um blog abrir com a mesma facilidade que o site de uma grande corporação, teremos que pagar mais.

Aqueles que não pagarem amargarão uma lentidão desestimulante. Caso vençam essa guerra, as corporações de telecom também poderão impedir o tráfego de determinados pacotes em sua rede física. Desse modo, poderão impedir que um cidadão utilize um serviço de voz sobre IP de uma empresa concorrente.

Os articuladores do movimento Save the Internet defendem o princípio da neutralidade na rede. Desde o início da internet até hoje, quem controla a camada física (de conexão) não pôde e nem teve interesse de interferir nas camadas lógicas (de fluxos de conteúdo). O tratamento de um em relação ao outro era de neutralidade. Isso assegurou que todos os pacotes de dados fossem tratados do mesmo modo ou de modo neutro. Esse princípio, também chamado de Primeira Emenda da internet, em alusão à Constituição norte-americana, é que está sendo atacado.

Aqui é preciso considerar que o termo neutralidade não é o melhor para expressar o que está em jogo nesse contencioso. Na verdade, até o momento, o que temos na rede mundial de computadores é o princípio da não-interferência ou da igualdade no tratamento dos pacotes de informação. Não importava quem havia enviado o pacote, o seu destino ou o seu conteúdo. Todos os pacotes deveriam transitar pelas redes sem que as operadoras de telefonia pudessem neles interferir. O que está em disputa é a liberdade de expressão e de circulação de ideias, atacada por uma ditadura não-estatal, de mercado. Para manter sua lucratividade, as empresas de telecom querem alterar o futuro da tecnologia e impor restrições financeiras à liberdade de fluxo de conteúdos.

*Excelente livro da Fundação Perseu Abramo assinado por Gustavo Gindre, João Brant, Kevin Werbach, Sergio Amadeu da Silveira e Yochai Benkler.


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Pitagoras

Concessionárias de telecomunicações: um lixo. Provedoras de acesso e de conteúdo (Sky, net, jet…) outro lixo.

Num adianta, cumpadi, somos o c.. do mundo!

DUARTE ROCHA

BRASIL É O 164º EM VELOCIDADE DA INTERNET EM 2011. QUASE O ULTIMO. FONTE: Pando Networks

Julio Silveira

O Brasil não deveria depender de nenhuma nação estrangeira, para nada. Deveria envidar seus esforços na busca permante de sua independencia tecnologica, para impedir que interesses externos pudessem emperrar o nosso desenvolvimento. Como já vimos, lemos e constatamos. Esse é o caminho que os grande países independentes buscam. Faz isso a China, a Russia, todos os países asiaticos, e agora também a India, só o Brasil, como um gigante macrocefalo (que bem poderia representar sua elite, por se acharem grandes mas são fracos), precisa pedir, obedecer, principalmente ao “irmão” do norte, para poder receber alguma atenção, mais por concessão a generosidade que por respeito.

Elton

Toda rede deveria ser estatal e livre, o brasil deveria ter uma rede interna independente, deveríamos criar um site de relacionamentos inteiramente brasileiro. Chega de ser colonia chega de ser subdesenvolvido

Cláudio

“A tentativa de nos empurrar para uma estrada esburacada na internet

Combater os pedágios na rede”

‘Meu’ mau computador parece me cobrar pedágio na rede: não consigo mais acessar o Tijolaço nem postar comentários no Nassif ou mesmo votar na Enquete da página inicial do ConversaAfiada (neste, usando o IE9. Só consigo com o Firefox), além de aparecerem dezenas de conexões quando se usa o comando ‘netstat’ no prompt de comando.

Sem estar necessariamente ligado ao exposto anteriormente, não sei se é algo totalmente positivo colocar códigos para serem digitados de forma a validar o comentário.

    Cláudio

    Completando o comentário (de 21 de maio de 2012 às 1:31) :

    “A tentativa de nos empurrar para uma estrada esburacada na internet

    Combater os pedágios na rede”

    ( . . )

    Sem estar necessariamente ligado ao exposto anteriormente, não sei se é algo totalmente positivo colocar códigos para serem digitados de forma a validar o comentário, como neste comentário no Viomundo e no caso também do Escrevinhador.

Wanderson Brum

Ora meus caros dizem que o Brasil é o País em que tudo se resolve na base do jeitinho, na verdade é aqui que o jeitinho funciona sem que as pessoas percebam, ou não “percebam muito”, pra exemplificar é só dá uma olhadinha nos “planos de internet” disponiveis no mercado, com velocidade e quantidade e troca de dados limitados, em belos pacotes “FDPs” que acabam antes de começar deixam o cidadão com acesso com velocidade de tartaruga a um preço na maioria que na das vezes não condiz com o produto fornecido. Bem, é desse jeito que aqui não se faz necessário a aprovação de nenhuma lei para imposição de certos absurdos, basta contorna-la ou a infringir mesmo ao que parece ninguem está vendo e quem está não dá minima…

Alberto Santos Neto

Se dependesse do Brasil, isto já teria se tornado Lei à muito tempo. Basta verificar a ganância de nossos empresários e de nossos políticos que visam o lucro fácil à qualquer custo (principalmente através da corrupção) e fariam isto, contando, sempre, com a apatia do povo brasileiro que não dá à menor bola para qualquer assunto, que não seja novela e futebol.

Cláudio

“Se você não for cuidadoso, os jornais farão você odiar as pessoas que estão sendo oprimidas, e amar as pessoas que estão oprimindo” – Malcolm X (1925-1965).

“Com o tempo, uma imprensa cínica, mercenária, demagógica e corrupta formará um público tão vil como ela mesma.” – Joseph Pulitzer (1847-1911).

Ley de Medios, já ! ! ! Comissão da Verdade, já ! ! !

Cláudio

Ley de Medios já ! ! ! Comissão da Verdade já ! ! !

RicardãoCarioca

Isso dificilmente vai acontecer. Porque teria que combinar com 197 países ou mais, ou os congressistas americanos com os bolsos forrados pelos lobbystas ainda não sabem que, se nos EUA colocarem um pedágio para um site, ele poderá se transferir para outro país? E mesmo acontecendo essa transferência, controlar sua velocidade de fora para dentro dos EUA seria uma coisa horrorosa, ficaria mais na cara ainda a ganância. Ainda teria ao usuário a opção de acessar a Internet por uma VPN que furaria esses ‘semáforos’ digitais, etc. Enfim, seria um jogo de gato e rato, com muita reclamação, muito desgaste que causaria um custo político capaz de tornar prejudicial o dinheiro despejado nos colos dos políticos venais. É por isso que até hoje não aconteceu e nem irá acontecer. Sempre haverá aquele concorrente que não entrará nessa jogada e arrebatará muito da clientela dos colegas ganaciosos.

João-PR

Os grandes empresários de telecomunicações estão dando um “tiro no pé”.
Só estão acelerando as pesquisas sobre novas formas de trânsito na internet.
Daqui a pouco, cada um de nós terá uma anteninha do tipo wireless em casa, que nos conectará ao satélite.
Só resta aos países terem satélites o suficiente.
Enquanto isso não chega, vamos lutando contra essas picaretagens que tentam fazer.
Afinal, temos a rede, e quem tem a rede tem a força (como diria Obi Wan Knobi).

Paulo Geroldo

Preocupante.

CARLOS LOPES

– E aí??? De 2006 para cá o que aconteceu, vão nos deixar curiosos?

snd

não está na hora do brasil ter sua própria rede? sem ter que passar pelos estados unidos?

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