Jessé Souza: Feita de imbecil pela elite, classe média brasileira perpetua um país forjado na escravidão

Tempo de leitura: 6 min

Jessé Souza: “A classe média é feita de imbecil pela elite”

Os extratos médios, diz o sociólogo, defendem de forma acrítica os interesses dos donos do poder e perpetuam uma sociedade cruel forjada na escravidão

por Sergio Lirio, CartaCapital

Em agosto, o sociólogo Jessé Souza lança novo livro, A Elite do Atraso – da Escravidão à Lava Jato.

De certa forma, a obra compõe uma trilogia, ao lado de A Tolice da Inteligência Brasileira, de 2015, e de A Ralé Brasileira, de 2009, um esforço de repensar a formação do País.

Neste novo estudo, o ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada aprofunda sua crítica à tese do patrimonialismo como origem de nossas mazelas e localiza na escravidão os genes de uma sociedade “sem culpa e remorso, que humilha e mata os pobres”.

A mídia, a Justiça e a intelectualidade, de maneira quase unânime, afirma Souza na entrevista a seguir, estão a serviço dos donos do poder e se irmanam no objetivo de manter o povo em um estado permanente de letargia. A classe média, acrescenta, não percebe como é usada. “É feita de imbecil” pela elite.

CartaCapital: O impeachment de Dilma Rousseff, afirma o senhor, foi mais uma prova do pacto antipopular histórico que vigora no Brasil. Pode explicar?

Jessé Souza: A construção desse pacto se dá logo a partir da libertação dos escravos, em 1888. A uma ínfima elite econômica se une uma classe, que podemos chamar de média, detentora do conhecimento tido como legítimo e prestigioso. Ela também compõe a casta de privilegiados. São juízes, jornalistas, professores universitários. O capital econômico e o cultural serão as forças de reprodução do sistema no Brasil.

Em outra ponta, temos uma classe trabalhadora precarizada, próxima dos herdeiros da escravidão, secularmente abandonados. Eles se reproduzem aos trancos e barrancos, formam uma espécie de família desestruturada, sem acesso à educação formal. É majoritariamente negra, mas não só. Aos negros libertos juntaram-se, mais tarde, os migrantes nordestinos. Essa classe desprotegida herda o ódio e o desprezo antes destinados aos escravos. E pode ser identificada pela carência de acesso a serviços e direitos. Sua função na sociedade é vender a energia muscular, como animais. É ao mesmo tempo explorada e odiada.

CC: A sociedade brasileira foi forjada à sombra da escravidão, é isso?

JS: Exatamente. Muito se fala sobre a escravidão e pouco se reflete a respeito. A escravidão é tratada como um “nome” e não como um “conceito científico” que cria relações sociais muito específicas. Atribuiu-se muitas de nossas características à dita herança portuguesa, mas não havia escravidão em Portugal. Somos, nós brasileiros, filhos de um ambiente escravocrata, que cria um tipo de família específico, uma Justiça específica, uma economia específica. Aqui valia tomar a terra dos outros à força, para acumular capital, como acontece até hoje, e humilhar e condenar os mais frágeis ao abandono e à humilhação cotidiana.

CC: Um modelo que se perpetua, anota o senhor no novo livro.

JS: Sim. Como essa herança nunca foi refletida e criticada, continua sob outras máscaras. O ódio aos pobres é tão intenso que qualquer melhora na miséria gera reação violenta, apoiada pela mídia. E o tipo de rapina econômica de curto prazo que também reflete o mesmo padrão do escravismo.

CC: Como isso influencia a interpretação do Brasil?

JS: A recusa em confrontar o passado escravista gera uma incompreensão sobre o Brasil moderno. Incluo no problema de interpretação da realidade a tese do patrimonialismo, que tanto a direita quanto a esquerda, colonizada intelectualmente pela direita, adoram. O conceito de patrimonialismo serve para encobrir os interesses organizados no chamado mercado. Estigmatiza a política e o Estado, os “corruptos”, e estimula em contraponto a ideia de que o mercado é um poço de virtudes.

CC: O moralismo seletivo de certos setores não exprime mais um ódio de classe do que a aversão à corrupção?

JS: Sim. Uma parte privilegiada da sociedade passou a se sentir ameaçada pela pequena ascensão econômica desses grupos historicamente abandonados. Esse sentimento se expressava na irritação com a presença de pobres em shopping centers e nos aeroportos, que, segundo essa elite, tinham se tornado rodoviárias.

A irritação aumentou quando os pobres passaram a frequentar as universidades. Por quê? A partir desse momento, investiu-se contra uma das bases do poder de uma das alas que compõem o pacto antipopular, o acesso privilegiado, quase exclusivo, ao conhecimento formal considerado legítimo. Esse incômodo, até pouco tempo atrás, só podia ser compartilhado em uma roda de amigos. Não era de bom tom criticar a melhora de vida dos mais pobres.

CC: Como o moralismo entra em cena?

JS: O moralismo seletivo tem servido para atingir os principais agentes dessa pequena ascensão social, Lula e o PT. São o alvo da ira em um sistema político montado para ser corrompido, não por indivíduos, mas pelo mercado. São os grandes oligopólios e o sistema financeiro que mandam no País e que promovem a verdadeira corrupção, quantitativamente muito maior do que essa merreca exposta pela Lava Jato. O procurador-geral, Rodrigo Janot, comemora a devolução de 1 bilhão de reais aos cofres públicos com a operação. Só em juros e isenções fiscais o Brasil perde mil vezes mais.

CC: Esse pacto antipopular pode ser rompido? O fato de os antigos representantes políticos dessa elite terem se tornado alvo da Lava Jato não fragiliza essa relação, ao menos neste momento?

JS: Sem um pensamento articulado e novo, não. A única saída seria explicitar o papel da elite, que prospera no saque, na rapina. A classe média é feita de imbecil. Existe uma elite que a explora. Basta se pensar no custo da saúde pública. Por que é tão cara? Porque o sistema financeiro se apropriou dela. O custo da escola privada, da alimentação. A classe média está com a corda no pescoço, pois sustenta uma ínfima minoria de privilegiados, que enforca todo o resto da sociedade. A base da corrupção é uma elite econômica que compra a mídia, a Justiça, a política, e mantém o povo em um estado permanente de imbecilidade.

CC: Qual a diferença entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos?

JS: Não há tanta diferença. Nos Estados Unidos, a parte não escravocrata dominou a porção escravocrata. No Brasil, isso jamais aconteceu. Ou seja, aqui é ainda pior. Os Estados Unidos não são, porém, exemplares. Por conta da escravidão, são extremamente desiguais e violentos. Em países de passado escravocrata, não se vê a prática da cidadania. Um pensador importante, Norbert Elias, explica a civilização europeia a partir da ruptura com a escravidão. É simples. Sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso. No Brasil atual prospera uma sociedade sem culpa e sem remorso, que humilha e mata os pobres.

CC: Algum dia a sociedade brasileira terá consciência das profundas desigualdades e suas consequências?

JS: Acho difícil. Com a mídia que temos, desregulada e a serviço do dinheiro, e a falta de um padrão de comparação para quem recebe as notícias, fica muito complicado. É ridícula a nossa televisão. Aqui você tem programas de debates com convidados que falam a mesma coisa. Isso não existe em nenhum país minimamente civilizado. É difícil criar um processo de aprendizado.

CC: O senhor acredita em eleições em 2018?

JS: Com a nossa elite, a nossa mídia, a nossa Justiça, tudo é possível. O principal fator de coesão da elite é o ódio aos pobres. Os políticos, por sua vez, viraram símbolo da rapinagem. Eles roubam mesmo, ao menos em grande parte, mas, em analogia com o narcotráfico, não passam de “aviõezinhos”. Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios. São estes que assaltam o País em grandes proporções. E somos cegos em relação a esse aspecto. A privatização do Estado é montada por esses grandes grupos. Não conseguimos perceber a atuação do chamado mercado. Fomos imbecilizados por essa mídia, que é paga pelos agentes desse mercado. Somos induzidos a acreditar que o poder público só se contrapõe aos indivíduos e não a esses interesses corporativos organizados. O poder real consegue ficar invisível no País.

CC: O quanto as manifestações de junho de 2013, iniciadas com os protestos contra o reajuste das tarifas de ônibus em São Paulo, criaram o ambiente para a atual crise política?

JS: Desde o início aquelas manifestações me pareceram suspeitas. Quem estava nas ruas não era o povo, era gente que sistematicamente votava contra o projeto do PT, contra a inclusão social. Comandada pela Rede Globo, a mídia logrou construir uma espécie de soberania virtual. Não existe alternativa à soberania popular. Só ela serve como base de qualquer poder legítimo. Essa mídia venal, que nunca foi emancipadora, montou um teatro, uma farsa de proporções gigantescas, em torno dessa soberania virtual.

CC: Mas aquelas manifestações foram iniciadas por um grupo supostamente ligado a ideias progressistas…

JS: Só no início. A mídia, especialmente a Rede Globo, se sentiu ameaçada no começo daqueles protestos. E qual foi a reação? Os meios de comunicação chamaram o seu povo para as ruas. Assistimos ao retorno da família, propriedade e tradição. Os mesmos “valores” que justificaram as passeatas a favor do golpe nos anos 60, empunhados pelos mesmos grupos que antes hostilizavam Getúlio Vargas. Esse pacto antipopular sempre buscou tornar suspeito qualquer representante das classes populares que pudesse ser levado pelo voto ao comando do Estado. Não por acaso, todos os líderes populares que chegaram ao poder foram destituídos por meio de golpes.

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Comentários

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RONALD

A “classe mérdia” é como o marisco que bajula o mar, mas está nas pedras com limo e craca. Ela sonha em ser rica( como diria Cazuza), mas nunca o 1% lhe permitirá ser. Mas ela baba as partes pudendas da elite, tentando sorver um pouquinho de status, mas só lhe sobra desprezo dos senhores de engenho.
A classe “mérdia” se ilude pertencer à nobreza, mas só lhe resta o lugar de traidor dos 99% e o desprezo e o pé na cara dos 1%.

stan neto

O Brasil ruindo e o a coxinhada preocupada com a Venezuela.

Hell Back

E Marx continua tendo razão.

Antonio Lisbôa Antonio

O ódio da direita é terrível. É o ódio do – tudo posso, naquele que me guarnece -. Não compactuo com opiniões de direita, nem por isso jamais agrediria uma pessoa por ter essa ideologia. O que me assustou foi o fato de estar passando com uma camisa vermelha, sem inscrição alguma, em frente a um comitê eleitoral dessa agremiação e ter tomado um empurrão que por pouco não fui atropelado por um ônibus. Questionei o agressor sobre a sua motivação por aquela agressão e o mesmo só se avermelhava e babava ódio pela cor da minha camisa. Com muita paciência e cuidado, tive que explicar ao cidadão que aquela cor vermelha de minha camisa poderia ser preta, roxa ou marrom, mas que como foi um presente da minha filha eu a usaria sempre e feliz. Outra, é que a minha residência ficava logo ali, um pouco mais adiante daquele comitê. Ficou difícil, pois até o acesso a minha casa o nobre cidadão não queria permitir. Parece-me que o Chico Buarque tentou explicar o porquê de sua preferência política em um bar e o nobre cidadão que o agredia verbalmente, ou, talvez, fisicamente, nem se dava ao direito, ou obrigação, de escuta-lo. A vaca tá louca e isso contagia.

Lukas

Há um tipo de filme de ação extremamente violento cujo o enredo tem sempre a mesma premissa básica. O protagonista (ou “herói”) sofre uma grande injustiça no início do filme e partir daí parte para fazer “justiça” e se vingar de seus algozes.

O filme que de certa forma deu origem a este tipo de cinema é “Desejo de Matar”, com Charles Bronson”. Neste filme, Charles Bronson é um pai cuja filha excepcional é estuprada e morta por um bandido.

Diante de um crime tão hediondo, o protagonista está livre para fazer o que quiser com seus inimigos (matar, esfolar, queimar, mutilar) já que estes inimigos lhe fizeram um mal tão grande que é justo que ele faça isto. Mais do que isto, o telespectador está livre para torcer por ele e pode assim, vibrar com as mortes, queimaduras e mutilações, por piores que sejam, já que aqueles elementos são maus num nível inimaginável. Há uma catarse naquelas mortes, um sentimento de que a justiça foi feita. Um filme fascista, pois não?

Textos como estes servem para a mesma coisa.

Você que tem um vizinho que apoiou a deposição da Dilma ou um colega de trabalho que nunca votaria no PT não se sentiria confortável em odiá-lo por apenas uma divergência de opinião política. Seria a mesma coisa que odiar alguém por torcer pelo time adversário ao seu.

Mas se esta pessoa que diverge politicamente de você for caracterizada como alguém que perpetua a escravidão (e pense no que os senhores faziam com os escravos) ou que apoiou a ditadura (pense nas torturas ocorridas neste período) aí você já estará liberado para odiá-la. Ela não é mais apenas o vizinho ou o colega de trabalho com outro ponto de vista, ele é o escravocrata, é a elite racista, é homofóbico, misógino, odeia pobre e nordestino. O que uma pessoa como esta merece além do completo desprezo?

Interessante a parte do texto em que ele diz que “sem que se considere o outro humano, não se carrega culpa ou remorso”. Não sei se há humanização quando se diz que alguém perpetua a escravidão, é homofóbico, odeia pobre e nordestino. Na verdade há a desumanização do outro lado para que, não sendo mais humano, não haja o remorso ou culpa ao odiá-lo.

Desta forma, textos como este são confortáveis para vocês lerem porque proporcionam um momento em que se ratifica seu ódio pelo outro lado e abrem a possibilidade de continuar odiando sem sentimento de culpa, já que do outro lado só há pessoas como o texto descreve. Não há um meio termo.

Pessoas como o autor do texto devem se ressentir pelo fato de no poder a esquerda não ter feito a justiça que deveria ter sito feita.

Jessé Souza adoraria que houvesse um Charles Bronson da esquerda para fazer justiça social. E seus leitores não precisariam sentir remorso ou culpa, pois textos como este são a justificativa para o justiçamento do vizinho ou do colega de trabalho, que não apenas diverge politicamente,mas é um escravocrata, racista, que odeia pobre e nordestino.

E poderiam continuar se considerando como bons cidadãos.

    Celso

    Onde você viu no texto incitação a violência ? Desculpe , mas sua argumentação é rasa. A ideia é conscientizar as pessoas, não criar conflitos.

    Des

    Não sei se há humanização quando se diz que alguém perpetua a escravidão, é homofóbico, odeia pobre e nordestino.

    Ele é fascista mas é boa pessoa! Tem uma horta em casa! (Não, não tem.)

    “Jessé Souza adoraria que houvesse um Charles Bronson da esquerda para fazer justiça social.”

    Ele diz isso ao apontar que nossa mídia representa os interesses do mercado? Ou quando diz que Os donos da boca de fumo são o sistema financeiro e os oligopólios?

    O Charles Bronson é o capitão Nascimento, serviu em duas guerras e sofre de estresse pós traumático, por possuir um nome anglicano remete ao puritanismo e obviamente que seria “despertado” por um crime sexual (escolha dos roteiristas, com base no público americano, que fica louco para punir o estuprador, mas não passa sem a longa cena de estupro em cada filme), protegido pela polícia nos 4 filmes, sempre é perdoado (até que comece a matar novamente). Só mata ladrão de galinha, até ser contratado por Reagan para lutar contra o “Crack-cocaine”, dai o politicamente correto dos anos 90 o obriga a aposentar. Ou seja, representa o coxa médio, preocupado com o ladrão de galinhas, enquanto Meirelles JBS-Boston Bank usa a Globo para dizer que caia o presidente que cair ele permanece.

    Jesse não faz mais que reconhecer o fato de que a estrutura produtiva escravista teve impactos duradouros na superestrutura, e o fato de termos sido o último país a abolir a escravatura, e ter utilizado a acumulação de capitais para trazer uma “plêiade” de europeus para uma neocolonização, é tópico abordado academicamente reiteradas vezes em nossa história, entretanto, Jesse inaugura uma linguagem acessível, de um estudo apurado de décadas, que mesmo você que não entende um filme do Charles Bronson, se empenhado um pouco, poderia compreender. Mas disso tenho minhas dúvidas.

lulipe

Entrevista dirigida nos moldes das que ocupam as páginas da carta Capital. Hipocrisia pouca é bobagem!!

http://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/04/1875168-lula-e-mantega-pediram-ajuda-a-carta-capital-dizem-delatores-da-odebrecht.shtml

    Des

    Os pagamentos federais à Folha/UOL, nos quatro meses de maio a agosto de 2016, foram 78% maiores que no mesmo período de 2015.
    Ao mesmo tempo em que a arrecadação fiscal do governo sofre uma das maiores quedas em décadas, os repasses federais para a Editora Globo, que edita a revista Época, dispararam 586%, na comparação de janeiro/agosto de 2016 com o ano inteiro de 2015.

    Na média mensal, o crescimento foi de mais de 900%.

    Ah mas…. De grão em grão a galinha enche o papo! Vamos açoitar o tio da carrocinha de picolé da mesma forma que jamais faremos com a Nestlé, só assim a corrupção vai acabar!

    RONALD

    Lulipe, faça um favor aos leitores do Viomundo, desapareça daqui e vá deleitar os leitores da veja, da época, da isto é. Lá é seu lugar – dos que babam as partes pudendas da elite conservadora, dos latifundiários, dos donos da mídia corporativa, do inferno…

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