Emir Sader: Com vitória de Cuba, vira-se a última página da Guerra Fria
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Painel em via que liga aeroporto ao centro de Havana. Governo jamais deixou de explicitar efeitos do bloqueio dos EUA à economia da ilha. Foto: Paulo Donizetti de Souza
Cuba e Berlim eram as duas esquinas mais tensas da guerra fria. A queda do muro tirou Berlim dessa condição. A normalização das relações entre Havana e Washington fará o mesmo com Cuba
Vira-se a última página da Guerra Fria, com vitória cubana
por Emir Sader, na Rede Brasil Atual
Cuba sempre considerou que um governo democrata em segundo mandato – quando já não depende tanto da colônia cubana na Flórida – era a maior possibilidade de que essa normalização se desse. Jimmy Carter não teve um segundo mandato. No final do segundo mandato de Bill Clinton, houve intensificação das ações terroristas contra Cuba – até com um avião jogando panfletos sobre Havana –, o que levou a que Cuba derrubasse um desses aviões, com a morte de dois tripulantes e, nos Estados Unidos, aprovação de leis ainda mais duras do bloqueio econômico.
Agora, intermediado por outros fatores – a prisão de um empresário norte-americano que levava materiais de comunicação a setores da oposição clandestina em Cuba e a campanha pela libertação de três dos cinco cubanos que ainda permaneciam nas prisões norte-americanas – confirmou-se a previsão: é um presidente democrata que protagoniza o restabelecimento das relações, no seu segundo mandato.
A ruptura de relações e o bloqueio, já há mais de meio século, eram instrumentos com os quais os Estados Unidos achavam que asfixiariam o então novo governo cubano. Havia um dogma até aquele momento segundo o qual “sem cota, não há país”. Isto é, se os Estados Unidos deixassem de comprar a cota de açúcar, o país faliria.
Quando os EUA suspenderam a compra do açúcar cubano, uma parte da burguesia do país trancou suas casas e foi para Miami esperar a queda do regime de Fidel Castro. Cuba sofreu duramente essas medidas. Todos os países da América Latina – com exceção do México, que manteve só relações diplomáticas com Cuba – fizeram o mesmo, rompendo relações com a ilha. Para qualquer compra que o país tivesse de fazer, teria de apelar para algum país europeu.
Cuba sofreu a tentativa de invasão de 1961, o cerco naval de 1962, uma enorme quantidade de ações de terrorismo, inúmeras tentativas de assassinato de Fidel, sanções econômicas que bloqueiam sua capacidade de desenvolvimento econômico. Mas conseguiu resistir.
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Os Estados Unidos não contavam que a URSS os substituísse, comprando o açúcar cubano, além de fornecer o petróleo que Washington também deixava de entregar. A inesquecível imagem de um imenso navio soviético, com a foice o martelo, entrando no porto de Havana, era um gesto de audácia que começava a romper o bloqueio à ilha.
Com o passar do tempo, países da América Latina foram restabelecendo relações com o governo de Fidel, primeiro diplomáticas, depois comerciais, até que a situação se reverteu. Se Cuba havia estado isolada no começo do bloqueio, eram os EUA que passariam a estar isolados, de forma que nas votações da ONU de condenação do bloqueio, só contavam com o voto de Israel e de alguma ilha meio desconhecida do Pacífico; sendo a esmagadora maioria contra a posição de Washington. O isolador se tornava isolado.
Agora, ao mesmo tempo, Cuba consegue duas grandes vitorias: resiste ao bloqueio, rompe o bloqueio, não cede em nada frente às ameaças e ataques da maior potência imperial da história da humanidade, consegue o restabelecimento das relações diplomáticas, nos termos que sempre propôs – com o respeito entre iguais, como nações soberanas. E, ao mesmo tempo, consegue o retorno dos espiões cubanos que estavam presos nos Estados Unidos, condenados depois de serem descobertos em operações de investigações contra ações terroristas de anti-castristas da Flórida, com anuência de Washington.
Entre os temas das densas discussões que se desenvolverão a partir de agora, estará seguramente Guantânamo. Esse pedaço do território cubano apropriado pelos americanos quando desembarcaram em Cuba com o pretexto de pacificar o conflito entre a ilha e a Espanha, quando os cubanos estavam prestes a expulsar aos antigos colonizadores e se tornarem independentes. A apropriação de Guantânamo se deu no marco das sanções impostas pelos Estados Unidos à Espanha, junto com a incorporação das Filipinas e das Ilhas Gwan.
O que foi imposto como uma ocupação de um século, tornou-se permanente – diferentemente do Canal de Panamá, cuja soberania retornou aos panamenhos. Como a base militar de Guantânamo não tinha nenhuma importância, permanecia como presença soberba da potência imperial derrotada pelos cubanos. Até que mais recentemente tornou-se uma vergonhosa prisão fora de qualquer cobertura jurídica internacional para que os EUA procedessem aos selvagens interrogatórios e torturas que impuseram aos acusados – mesmo sem provas – de ações de terrorismo.
Agora não há nada mais que possa impedir que o presidente norte-americano transfira os mais de 160 presos que ainda permanecem lá, feche a base naval e devolva a Cuba o território que lhe pertence. Assim se terão normalizado totalmente as relações entre o país de Fidel e o de Obama.
Barack Obama teve de confessar que a estratégia norte-americana de tentar asfixiar a Cuba pelo bloqueio econômico e o assedio terrorista fracassaram. Os dois países voltam a ter relações diplomáticas, o imenso edifício voltado para Miami – na avenida costeira de Havana conhecida como Malecón – abrigará um novo embaixador dos Estados Unidos: e Cuba terá, no mesmo velho casarão, um embaixador no país vizinho.
Vira-se a última página da longa Guerra Fria do segundo pós-guerra. Talvez estejamos começando outra, com caráter e dimensões distintas, mas aquela agora está definitivamente terminada. E da melhor maneira possível para Cuba e para todos os que lhe apoiaram na luta contra o injusto bloqueio.
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